O coronavírus desvela impudicamente a face real e horrível do Brasil sob o capitalista triunfante. Um rosto assustador que vai ficar ainda pior após sairmos da atual emergência epidêmica. E só o bom deus sabe como e quando encerraremos a crise pandêmica. Então, poderemos voltarmos a viver a tranquilidade de todas as demais catástrofes sanitárias e sociais do dia a dia, igualmente terríveis, mas silenciosas, socialmente seletivas e não tão galopantes. Em verdade, o que há de realmente novo no Covid-19 é que ele é como sanguessuga, que gruda nas pernas do peão e do fazendeiro ao atravessarem o arroio infestado, logicamente muito mais na panturrilha índio campeiro, pois o patrão calça sempre elegantes botas de canos longos.
Sob os golpes duros dos infortúnios da vida, idealizamos e romantizamos o passado, mesmo o mais sombrio. Deixemos de conversa, minha gente. O que está aí, grandote e crescendo, já nascera e tomara corpo, bem alimentado, há muito, e foi criado com atenção, com cuidado e com diligência pelas nossas mal denominadas elites. Não foi invenção do golpe de 2016, nem castigo de deus chegado da China, como propõem o menino Ernestinho, que recebeu para brincar as Relações Exteriores, e o Salomão, o analfabeto funcional de nome bíblico no comando da Educação nacional. O Brasil é um monstrengo aleitado e embalado com carinho também pelas nossas classes médias, hoje enfurnadas em suas casas, apavoradas, sem nada mais compreenderem.
Um País Inventado pela Escravidão
O Brasil é organização estatal construída pela unificação de uma miríade de colônias luso-brasileiras mantidas juntas, em 1822, apenas para não pôr em perigo o tráfico e a ordem escravistas. O glorioso país da bandeira verde-amarela, do Império e da República, nasceu apenas para manter os negros trabalhando como animais, sob a disciplina do látego, em favor de seus negreiros, que já viam submissos a parte do leão da festança partir para o estrangeiro.
Um passado, diga-se de passagem, embelezado por uma cáfila de intelectuais acadêmicos, com destaque para muitos de meus colegas historiadores, que construíram descrições tão róseas e risonhas da escravidão que propõem consensual – onde os cativos trabalhavam pouco, comiam muito, apanhavam nunca -, que dá vontade de irmos ajoelhados e de mãos juntas pedir ao STF que revogue a Lei Áurea! Digo essa abnormidade com medo, já que minha finada mãe me proibia de verbalizar coisas ruins, por que sempre há, por detrás de uma nuvem, um anjo sapeca que pode dizer: – Amém!
Torturados e Torturadores
Por mais de trezentos anos, o Brasil foi terra de escravizados e escravizadores, de torturados e torturadores. Onde surrar os trabalhadores não era apenas um direito, mas um dever, dos negreiros, os antepassados dos nossos atuais empresários. Comportamento sancionado e abençoado pela Igreja, pela Justiça, pelo Estado, pelo Exército, pela Marinha, pela imprensa e pelo que poderíamos chamar da “opinião pública” de então. Praticamente durante todo aquele longo período, à exceção das últimas décadas antes de 1888, os negros trabalharam, resistiram, morreram sem que ninguém lhes estendesse a mão.
A Abolição, nossa grande e única revolução social vitoriosa, libertou uma multidão de ex-cativos despossuídos quanto à cultura, aos bens materiais, à língua, a laços familiares, às técnicas avançadas de trabalho. Cativos tidos, havidos e tratados como preguiçosos e criminosos, após labutarem para seus exploradores praticamente do nascimento até a morte. Eles passaram então a integrar as camadas de livres pobres, a “ralé”, a “corja”, a “patuléia”, a “chusma”. A denominação de “povo” era reservada para os que tinham alguma “eira e beira”, ou seja, que possuíam alguma propriedade e relações, sem pertencerem à aristocracia proprietária. Qualquer coisa como as classes médias de hoje.
República de Araque
A República foi proclamada por alguns altos oficiais ambiciosos, apoiados pelo que havia de mais conservador na época – a oligarquia agrária das grandes províncias, praticamente toda ela ligada e militando no Partido Conservador. Além de aumentar o salário dos altos oficiais, ela pôs tudo de pernas para o ar, para deixar tudo como era dantes, nesse nosso eterno e terrível quartel de Abrantes. As oligarquias das províncias transformadas em estados embolsaram o poder, no contexto de ordem geral anti-democrática e anti-popular. Os estados ricos avançaram explorando os estados pobres, com a cumplicidade das oligarquias das regiões exploradas, satisfeitas em reinar sobre os quintais da nação.
Para não deixarem que nascessem ilusões, no sul da Bahia, em 1897, ao som da Marseillaise, as gloriosas tropas republicanas massacraram até o último sertanejo, caboclo e “13 de Maio” -os libertos da Abolição- que defenderam heroicamente a República Sertaneja de Belo Monte. As forças armadas do Brasil se metamorfosearam através dos tempos coloniais, imperiais e republicanos, sem jamais terem deixado de marchar sobre as classes populares. Multidões de historiadores se desdobraram igualmente para ver progressismo castrense nas guerras contra os holandeses, na Independência, na Guerra do Paraguai, na República e por aí vai. Não houve sequer um oficial de destaque no movimento abolicionista. Hoje, a oposição agachada lança olhares languidos para o general vice-presidente da segunda administração golpista, verdadeiro príncipe do entreguismo.
Se Não Queremos Príncipes
Desde sempre, obedecendo o espírito dos tempos, as classes populares têm sido tratadas e educadas respeitando-se estritamente às instruções de Nietzche de que, se queremos escravos, não devemos educá-los como príncipes. Foram e são abundantes os discursos sobre uma cidadania universal e a inclusão necessária dos ditos relegados. Manteve-se porém a vala cada vez mais profunda entre o “eles”, o povo, e o “nós”, ou seja, as classes dominantes, eternamente sustentadas pelas classes médias, seus serviçais que sonham em sentar-se um dia à mesa dos grandes senhores.
A eterna patuleia brasileira é tida e considerada, em forma consciente por multidões de cidadãos e, inconscientemente, por amplíssimos segmentos ditos ilustrados e progressistas da nacionalidade como literalmente gente que pensa, que anda e que fala, mas de tipo ou raça diversa. Qualquer coisa como se o nós, os de cá, os da elite, fossem sapiens sapiens e os outros, os eles, de lá, Australopithecus aferensis ou, no limite, Neandertais. Gente que sente em forma diversa e, portanto, sem as mesmas necessidades mínimas quanto à moradia, à alimentação, à educação, à saúde, ao lazer.
Com o Covid-19, esse fosso se materializou e tomou corpo, diante dos olhos de todos, com os “nós” indo se esconder nas suas residências, de diverso grau de comodidade, e os “eles” literalmente incapazes de procederem por igual, mesmo que quisessem, sem comida na geladeira, sem poupança monetária e, não rara, sem casa, sem água, sem sabão, sem saneamento básico para efetivar uma real “quarentena”.
Vivendo Vidas Impossíveis de Viver
O salário mínimo miserável, incapaz de sustentar uma família, no melhor dos casos, com um alguma dignidade, foi mantido pelos próprios governos que se disseram dos trabalhadores. Então, se seguiu dizendo que era o máximo possível de se pagar, como se a remuneração do trabalho fosse uma concessão monocrática senhorial, como na época da escravidão. Em verdade, o mínimo miserável contou sempre com o apoio -além do empresariado, é claro- de milhões de famílias de classes médias que não imaginam a vida sem domésticas, diaristas, zeladores, lavadores de carro. Hoje, em “quarentena”, nossas classes médias comem comem comumente delivery, ou seja, mal, frio e caro, por não saber preparar sequer um ovo duro e ainda menos frito!
A escola foi sempre um divisor de água ou, melhor, de raças, entre os “eles” e o “nós”. A escola privada foi destinada às elites ou àqueles que se consideram como tal. A pública, para os filhos das classes populares, cada vez mais molambenta e literalmente faz de conta, com professores mal pagos e muitas vezes com salários parcelados. Misturar os filhos “deles” com os “nossos” era além do imaginável. Deu no que deu. Nas escolas públicas, professores trabalhando até doze horas diária, fazem o que podem, ou seja, cada vez menos. Nas escolas privadas, pais da classe média pagando mensalidades astronômicas por um ensino habitualmente meio-turno e meia-canela. Os filhos das classes dominantes possuem seus colégios de mensalidades inimagináveis ou simplesmente vão estudar no exterior. Nas avaliações mundiais da educação nos encontramos sempre na rabeira.
Vendendo Canudos
As universidade públicas encerraram-se e encerram-se na defesa corporativista do que conquistaram, semi-cegas para com o mundo exterior, sem jamais terem avançado um projeto educacional, real e realístico, para a sociedade como um todo. Enquanto isso, o ensino superior privado avançou a passos de gigante, sobretudo na Era Petista, para terminar sendo engolido, mais e mais, por corporações internacionais. A educação transformou-se em um mega-negócio, vendedora em boa parte apenas de ilusões, ou seja, canudos de papel, verdadeira caixa de Pandora que promete abrir-se liberando horrores inimagináveis nos tempos pós-Covid-19.
Enorme parte da população vive de fato ou virtualmente à margem da educação. Seus filhos passam como meteoros pela escola pública ou são escolarizados formalmente. A mídia globalizada, as igrejas caça-níqueis, a milícia e os cartéis penetram nos poros mais recôndidos da sociedade, responsabilizando-se pela socialização, disciplina, educação de milhões de nacionais. Essas escolas e universidade que repartem a barbárie obedecem rigidamente as necessidades do grande capital globalizado, que conformam suas ações. O que é novo em nossa história.
Um Terrível Novo Mundo
São milhões de nacionais literalmente idiotizados no individualismo extremado; no consumismo, no sensualismo e no hedonismo irresponsáveis; em um atualismo imprevidente descolado do passado e do futuro; no culto à violência, à ignorância, ao anti-intelectualismo etc. Mergulhados em uma visão realmente fantástica da realidade, de viés religioso ou laico. Realidade que expressa, no mundo das representações, os novos laços frágeis, instáveis, imprevisíveis, violentos, no mundo da produção, para multidões de trabalhadores cada vez mais vastas. Através do país toma corpo uma enorme parcela da população que escapa aos quadros tradicionais nacionais de sociabilização e submissão. Um fenômeno, repetimos, novo.
Dezenas e dezenas de milhões de brasileiros vivendo no interior do país e nas periferias das grandes cidades habitam um mundo duro, violento, volátil, desorganizado, alienado, engendrado, como apenas proposto, pelas novas relações de dominação e submissão a que estão submetidos. O golpe de 2016 nasceu dessa nova realidade, para impô-la plenamente, como exige a nova “ordem colonial globalizada” que se instaura no país.
Uma realidade que desorganiza as antigas formas de dominação e gestão das classes subalternizadas, para o espanto de políticos, intelectuais e classes médias que sentem esfumarem suas certezas e amarras. O PT e Lula da Silva geriam enormes parcelas das classes miseráveis a golpes de bolsas famílias e outras medidas anestesiantes, aplicados no contexto de uma endurecedora campanha midiática. Os mesmos setores sustentam agora Bolsonaro, devido à concessão de seiscentos reais, que vêem como dádiva governamental e dos céus, e o do apelo Energúmeno Perfeito para que todos saiam para a rua, onde em geral o povaréu obtém o ganho quotidiano.
Novos Zumbis
O novo comportamento zumbi não é questão de falta de escolaridade. Ele domina multidões de pequenos, médios e grandes empresários, verdadeiros adoradores do Belzebú privatista, eletrizados pela promessa do golpismo de redução dos trabalhadores nacionais a uma escravidão assalariada. Seguem aplaudindo abestalhados a destruição da sociedade e da nação, mesmo quando, obrigados, começam a fechar as portas de suas empresas, despedindo trabalhadores sem a esperança de que retornem algum dia. Idiotice política que levou os pequenos, médios e grandes empresários da construção civil a aplaudirem a destruição das mega-empreiteiras nacionais, que lhes pisavam os pés, mesmo intuindo que, muito logo, a bola da vez seriam eles.
Imbecilizarão geral registrada pelos dirigentes do comércio que aplaudiram semi-histéricos as propostas do general Mourão, no Rio Grande do Sul, de pôr fim ao décimo-terceiro salário, pensando em ferrar sua meia dúzia de empregados, sem pensarem nas multidões de consumidores que deixariam de sair às compras ao não receberem a complementação salarial. O contraponto da rendição geral da oposição parlamentar ao golpismo é certamente a inexistência de sequer uma associação ou liderança empresarial que se oponha à liquidação geral da autonomia nacional que mantiveram historicamente em suas mãos no período imperial e republicano, mesmo no contexto de uma ordem semi-colonial.
Ela Chegou para Ficar
A pandemia Covid-19 abraçou em forma forte, desigual e desarticulada o país continental, com protagonismo em pontos determinados. Em Manaus, no sul da Bahia, em São Paulo, no Rio de Janeiro, as mortes já se dão aos borbotões, sobretudo entre as classes desprotegidas, com a mídia e a própria oposição corroborando com a minimização consciente do governo do número de falecimentos. Já se morre em casa, nas portas dos hospitais, nas enfermarias desprovidas de quase tudo que é necessário. Enterra-se em valas comuns e, muito logo, em sacos de lonas pretas.
Em uma situação nacional enquadrada pela ação criminal do governo federal e medidas meia-boca de diversos graus dos governadores, que mentem desbragadamente, contando sempre com o silêncio cúmplice da mídia, a pandemia se estenderá, em ritmo e dimensão impossíveis de se prever, através de um país onde a quarentena sempre foi meia canela e os empresários forçam agora para encerrá-la totalmente. Golpeará sobretudo com dureza extremada regiões onde praticamente nunca houve -e não haverá agora- rede pública de saúde -e mesmo privada- capaz de fazer mesmo timidamente frente ao desastre.
Em recente entrevista, o Secretário de Saúde do Estado do Rio de Janeiro anunciou que o sistema público -não falou da requisição do sistema privado- chegou ao extremo e que não há o que se possa fazer, mentindo despudoradamente que todos os países do mundo enfrentaram o mesmo nível de situação de braços caídos. Nova York passou por terrível explosão do vírus sem que ninguém ficasse à margem do tratamento possível. Dois jornalistas tudo ouviram sem nada agregar, procurando apenas retirar da boca do secretário que o sistema de saúde entrara em “colapso”, para fazer de conta que participavam da entrevista bem comportada.
Deixar rolar, deixar morrer
A política dominante no país é deixar rolar, deixar morrer. Jamais se pensou pôr a indústria nacional a serviço do combate da pandemia. Sempre esteve fora de questão produzir as centenas de milhares de ventiladores pulmonares que ficariam sub-utilizados após salvar talvez algumas dezenas de milhares de plebeus ignaros. A Folha de São Paulo, tão na oposição, acaba de parabenizar Bolsonaro por afastar, ao menos por agora, a proposta micro-desenvolvimentista do Pró-Brasil, do general Braga Netto, também querendo encenar que algo faz.
As classes médias progressistas ou conservadoras assustadas encerraram-se em grande número em suas casas, indignadas com o apoio, ainda que passivo, que os segmentos mais miseráveis acordam a um governo que segue sendo algo distante de suas existência. Não compreendem, comumente, por que multidões de populares seguem nas ruas, sem entender a gravidade da ameaça e, sobretudo lutando pela existência ou não tendo como e onde se esconder, como proposto.
Em grande parte entregues a si mesmos, essas enorme frações populares são incapazes de reflexão precisas sobre a realidade que vivem, enquadradas, como vimos, em um mundo de violência, medo, fantasia em que foram submergidos. Vão seguir vendo vizinhos e parentes morrer, se adaptando e suportando tudo, é difícil saber até quando, como se adaptaram à zika, ao dengue, à febre amarela, à chikungunya, à tuberculose, à diarréia, ao salário mínimo, à falta de saneamento básico, aos transportes caros e precários, à violência policial.
Les aristocrates à la lanterne
A oposição parlamentar não se encontra neutralizada e colaborando com o governo devido apenas ao esforço em manter os privilégios que gozava e ainda goza. Ela é, por sua natureza profunda, incapaz de compreender, de se solida rizar, de interpretar e de orientar as massas desesperadas, já que estas últimas fazem parte dos “eles” e as classes políticas, sindicalistas, intelectuais – com as raras exceções que confirmam a regra – do “nós”. Nesse Primeiro de Maio, aproveitando a ausência física da população, realizaram verdadeiro bacanal das indecências, refestelando-se ao lado dos maiores bandidos políticos de nossa sociedade.
A superação será difícil. Nascerá necessariamente das classes trabalhadoras organizadas. Ela exige uma verdadeira refundação dos instrumentos políticos e orgânicos dos trabalhadores,. Essa rearticulação dificilmente será apenas nacional, nesse mundo globalizadao. A crise é mundial, talvez apenas menos grave e geral do que no Brasil. Nada disso se realizará sem que a patuleia desvairada ganhe as ruas e leve para a Praça da Revolução, os ditos dirigentes nacionais, para penarem por seus pecados imperdoáveis, subindo no patíbulo em direção à guilhotina. Registro que se trata de uma imagem apenas simbólica da libertação social e nacional brasileira. (Duplo Expresso, quinta-feira, 30 de abril de 2020).