A ideia de um destacamento de vanguarda disciplinado, eficiente, levou Lênin a formular, nas condições históricas da Rússia de 1917, o princípio do centralismo democrático. Essa é, portanto, uma formulação não marxista, mas leninista. E mais: essa ideia tornou-se a pedra de toque da concepção leninista (e não marxista) do partido de novo tipo.
Lênin colocou o problema em termos relativamente simples. Quando o partido precisa tomar uma decisão, deve reunir seus membros, promover um debate livre, amplo, profundo, que permita o exame exaustivo da questão, para, finalmente, como coroamento do processo de discussão, colocar em votação as diversas posições em disputa. Esse é o momento da democracia. Uma vez consolidada uma maioria, a minoria a ela deve subordinar-se. Esse é o momento do centralismo. Daí a fórmula leninista do centralismo democrático.
O princípio é cristalino. Mas que partido era esse? Ele foi pensado como instrumento para a realização de qual tarefa política? Sem me alongar, acho que posso dizer que esse era um partido para a insurreição. E foi eficaz no que se propunha. Era um partido talhado para a luta política nas condições históricas do que Gramsci chamou de “Oriente”, nas quais o Estado era tudo e a “sociedade civil” gelatinosa, o que permitia que a luta política fosse conduzida como uma “guerra de movimento”. Lá, o Estado era fundamentalmente um aparelho repressivo. A tomada do poder burocrático-militar de Estado colocava-se como o objetivo central. O requisito era a presteza de agrupar forças no momento e no ponto decisivos. Em contrapartida, dizia Gramsci, no “Ocidente” só a “guerra de posição” é viável. Porque aí o Estado é “sociedade política + sociedade civil”, é “coerção + consentimento”. Tem-se uma formação social solidamente articulada pela ideologia. Em consequência, os aparelhos ideológicos de Estado assumem uma importância estratégica. O poder de Estado se legitima em uma zona de hegemonia que abarca toda (ou quase toda) a sociedade. É preciso, nessas condições, ter um partido capaz de disputar a hegemonia na sociedade. E então já não se postula um destacamento de vanguarda disciplinado, eficiente, porque isso já não teria eficácia nas condições da democracia política.
Nessa nova situação, ganha o primeiro plano a necessidade de um partido de massas, articulado por quadros intermediários, capaz de realizar tarefas de convencimento. Um partido necessariamente de massas, porque a capilaridade, a disseminação, é condição indispensável para fazer o trabalho de convencimento em toda a extensão da sociedade. O requisito é a capacidade de argumentação, a perseverança para persuadir e a tolerância com a diferença. Nesse partido, o centralismo democrático não tem mais vigência. É um anacronismo. A unidade desse partido não se faz pela subordinação imposta administrativamente pela maioria à minoria, mas pelo consenso tecido em torno das questões capitais para o desenvolvimento da luta política.
Isso do ponto de vista da eficácia, da organização servindo à política. Mas a questão pode e deve ser analisada sob diversas angulações. A da liberdade, por exemplo. Como se sabe, a questão da liberdade é central para o comunismo de Marx: a utopia comunista não é a igualdade (que, no máximo, é um pressuposto), mas a liberdade do homem. E é por esse prisma que também é preciso discutir o princípio da subordinação da minoria à maioria. Que liberdade é essa na qual a minoria é obrigada a calar suas convicções em nome de uma decisão da maioria? Então o militante socialista luta para ser amordaçado quando mais precisa expressar suas opiniões, que é exatamente quando discorda da maioria? Mas a ideia de centralismo democrático, objetivando a unidade de ação, não apenas obriga o dissidente a calar suas opiniões. Quer mais: quer obrigá-lo a pronunciar as palavras que repudia. Não há violência maior. Como diria Roland Barthes, “o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”.
Historicamente, o centralismo democrático tendeu para o centralismo burocrático. Essa tendência degenerou na concepção stalinista de partido. Houve o deslocamento do centro da discussão política das organizações de base para as direções. E chegou-se ao cúmulo de o Secretário-Geral decidir sem contestação. Consequentemente, a escolha das direções passou a ser operada por cooptação. Nesse formato, é a direção que legitima as bases e estabelece o controle sobre elas, invertendo a dinâmica democrática. Desse modo, a vontade da organização se forja de cima para baixo, autoritariamente.
Nas condições de dura clandestinidade, impostas aos lutadores contra a ditadura, a unidade de ação era imprescindível. A menor divergência colocava em risco a coesão do grupo clandestino submetido à pressão aterrorizante do aparelho repressivo do Estado. Nessa situação asfixiante, compreende-se que o centralismo fosse exercido de forma burocrática, autoritária, com o mínimo de discussão e o máximo de disciplina. A organização assumia feições militares. E não podia ser diferente. Nas condições da democracia política, entretanto, a ninguém pode ser imposto sequer o silêncio, quanto mais a obrigação de defender aquilo que repudia, seja em nome do que for.
Um partido socialista, num contexto de democracia política, precisa ser uma organização democrática de massas. Tem a tarefa de produzir na sociedade o consenso em torno das suas ideias. Para isso, ele precisa chegar a esse consenso internamente. Sua unidade terá que ser arquitetada como unidade de pensamento e ação, e não apenas de ação, pois é a unidade de pensamento que pavimenta a unidade de ação. E isso não se resolve com a subordinação da minoria à maioria. É bem mais complicado. Requer o exercício da persuasão.
A unidade de pensamento só pode ser entendida como uma unidade na diversidade, um pacto entre diferentes que preserve a livre expressão do pensamento. Por isso, a edificação de um pensamento coletivo é uma negociação, o que não descarta a divergência, mas busca harmonizá-la pela tecedura de uma teia consensual inclusiva em torno das questões centrais para o desenvolvimento da luta política. E não devemos esquecer que o pensamento coletivo sempre é uma síntese dialética, portanto provisória, inconclusa, um devir, um fluxo que nunca alcança o seu termo, pois está em permanente reprocessamento.
Que não se queira, pois, resolver divergências políticas quer pelo princípio leninista da subordinação da minoria à maioria (o que obriga a dizer), quer pela imposição do silêncio misericordioso de inspiração papal (o que proíbe de dizer). Muito menos quando se trata de questões que mobilizam convicções de foro íntimo (religiosas ou não).