10 de setembro de 2022: entre uma renovação feminista do campo democrático-popular e uma oposição de esquerda masculinizada

O ato “A Esperança Vai Vencer o Medo”, organizado em 10 de setembro de 2022, havia sido marcado um mês antes, para ser uma resposta de movimentos sociais à manifestação bolsonarista do 7 de setembro. Da mesma forma como ocorreu no último protesto da esquerda[1], não foi criado nenhum evento no Facebook, pouquíssimas páginas estavam divulgando o protesto nesta rede social, a ponto de muitas pessoas nem terem ficado sabendo da sua existência (conversando com amigos e colegas, as pessoas demonstravam surpresa e afirmaram que teriam participado se tivessem sabido com antecedência). A convocatória do protesto contava com a assinatura de vários movimentos populares (CMP, MMM, MST, MTST, MNU, UNEGRO e UBM) e sindicais (CUT, Força Sindical, UGT, CTB, NCST, Intersindical e Pública – Central do Servidor).[2] Contudo, poucos atores organizados fizeram algum esforço para divulgar o evento: CMP, MTST, Frente Povo Sem Medo, Esquerda Online[3] e as candidaturas de Sônia Guajajara[4] a deputada federal e Bancada Feminista[5] do PSOL a deputada estadual (basicamente, uma parte da esquerda do PT e setores da direita – como a Primavera Socialista – e do centro – como a Resistência – do PSOL). Eu inclusive tive dificuldades de encontrar a confirmação do local (MASP) e do horário (15h) da concentração do ato.

Com estes severos problemas de divulgação (o que deve ser lido como uma decisão consciente de algum centro decisório de não investir tempo, energia ou recursos na ocupação das ruas de São Paulo), agravados pela existência de um comício em Taboão da Serra no mesmo dia pela manhã com a presença de Lula, Alckmin e Haddad, o resultado não poderia ter sido outro: o ato foi ainda mais esvaziado do que o da noite de 11 de agosto. Se eu havia contado cerca de 2 mil pessoas em agosto (com pesos bastante equilibrados entre o bloco da frente do ato – do que eu chamei de “nova oposição de esquerda” – e o bloco do fundo do ato – que eu chamei de “campo democrático-popular renovado e ampliado”), desta vez contei logo na saída da concentração em torno de 1.500 pessoas, com forte predomínio dos lulistas e presença extremamente minoritária de socialistas (aproximadamente uma centena de pessoas). Importante ressaltar que o ator social que teve um papel de onipresença – nômade e desterritorializada – que lulistas e o PT exerceram em 02 de outubro de 2021[6] foi, nesta ocasião, o MTST, garantindo não apenas centenas de pessoas para que o ato não fosse ainda mais humilhante diante da aparente massividade dos comícios eleitorais bolsonaristas no 7 de setembro (embora a manifestação em São Paulo tenha sido menor em 2022[7] do que no ano anterior[8]), mas também algum caráter popular da base de manifestantes.[9]

O esvaziamento foi tamanho que o ato foi quase um não-acontecimento. Desta vez[10], por exemplo, o Brasil de Fato nem buscou produzir uma “fake news do bem”, como fez em 11 de agosto, quando escreveu que havia uma “multidão” de “10 mil pessoas” com “coesão ideológica”[11], sendo que o que eu observei foi o contrário: não havia multidão, apenas duas milhares de pessoas, com tão pouca coesão ideológica que havia um abismo físico de meio quarteirão entre um bloco lulista e um bloco socialista.

De forma similar, porém com o sinal invertido, enquanto a manifestação bolsonarista de 7 de setembro na Paulista foi um comício eleitoral anti-Lula[12], o ato da esquerda de 10 de setembro foi, majoritariamente, um comício lulista. Identifiquei a distribuição de santinhos de candidatos a deputados federais e estaduais dos seguintes partidos: PT, PCB, PCO, PSB, PSOL, PCdoB e UP. Da mesma forma como na noite de 11 de agosto, o protesto de 10 de setembro se organizou em dois blocos, separados por um vazio físico entre eles (menor agora – poucos metros – do que um mês antes – meio quarteirão). Contudo, em 11/08, o primeiro bloco era homogeneamente socialista e o segundo bloco era lulista; já em 10/09, o bloco do fundo do ato era centralizado por um carro de som dos atores tradicionais do campo democrático-popular (com receptividade para novos ou velhos aliados que se reaproximaram do PT: o PSB e a federação PSOL/REDE). Enquanto o bloco da frente do ato perdeu sua característica de oposição de esquerda, por meio de um interessante fenômeno de “entrismo” do PSOL. Se em 11/08 o PSOL estava se esforçando (com exceção do Juntos!) em se auto-diluir no campo democrático-popular, desta vez, principalmente por conta da ausência ou presença muito fraca de PSTU[13] e UP, o PSOL de certa forma tomou conta do 1º bloco, com o auxílio central do MTST. O PCB estava, de certa forma, como único representante da oposição de esquerda, em um número bem abaixo do que havia mobilizado em agosto.

Qual foi a principal consequência para este deslocamento do PSOL do fundo do ato para sua frente, nesta espécie de “entrismo” que quebrou o monopólio da oposição de esquerda na frente do ato? Enquanto no fundo do ato o carro de som seguiu com discursos eleitoralistas (isto é, que a vitória de Lula no 1º turno é o caminho mais curto e seguro para “derrotar o fascismo”) bastante burocráticos e sem ressonância emocional na base do ato (o máximo que eu observei foi um “olê olá Lula Lula”, mas de baixa intensidade emocional), o PSOL e o MTST seguiram em seu papel de renovar e ampliar o campo democrático-popular, injetando mais emoção, porém não no fundo do ato e sim na frente. Com equipamentos de som no chão do ato, a Bancada Feminista do PSOL e o MTST puxavam músicas conhecidas (como Zeca Pagodinho), adaptadas (substituindo “negro” por “povo” na canção “Pedro e Tereza” de Teresa Cristina: “Se o povo soubesse o talento que ele tem / Não aturava desaforo de ninguém”) ou originais (“O povo de São Paulo não elege mais fascista, é Lula e Haddad e a Bancada Feminista”), garantindo com sambas e batucadas um engajamento emocional bem mais intenso dos manifestantes ao seu redor do que era capaz de fazer o carro de som localizado na frente do MASP.

Se o grande significado do ato era um comício eleitoral para todos os atores engajados na eleição de Lula e de deputados federais e estaduais, desde o PSB até o PSOL, passando por PT e PCdoB, o único ator político que estava construindo o ato e interpretando-o em sentido diverso era a ala minoritária do PCB, como comprova a faixa na qual os símbolos da suástica nazista, do sigma integralista e do cifrão capitalista são esmagados pelo símbolo da foice e do martelo, isto é, a derrota do fascismo não se daria nas urnas com Lula, mas nas ruas com o comunismo. Embora Sofia Manzano, candidata à presidente pelo PCB, tenha comparecido em certo momento na frente do ato, o mais significativo deste sub-bloco comunista era sua organização quase militarista (em fileiras) e sua composição quase exclusivamente masculina. Portando um megafone, uma liderança com estilo fitness garantia com gritos agressivos a similitude do sub-bloco, com todos os homens repetindo palavras de ordem sobre “poder popular”, “socialismo”, “greve geral” e “revolução”. Aqui, a intensidade emocional – ausente no carro de som burocratizado e presente no entrismo do PSOL com sambas e batucadas feministas – era garantida com a unidade pseudo-militarista das vozes graves gritando em uníssono.

A UP não estava presente no ato de setembro com o mesmo peso que em agosto. Mas tive uma conversa relativamente longa com uma paciente militante que me contou um pouco da trajetória do partido, desde o processo de criação e formalização junto ao TSE, a manutenção do PCR como partido de vanguarda paralelo à UP como partido de massas, a centralidade do trabalho de base e dos movimentos populares e até uma bem-sucedida história de conversão de uma mulher da periferia, de bolsonarista a liderança do partido. Depois que eu perguntei sobre as diferenças entre PSTU, PCB e UP (em especial devido ao debate[14] que vai ser realizado em 17 de setembro pela CSP-Conlutas com seus respectivos candidatos à presidência: Vera Lúcia, Sofia Manzano e Leo Péricles), a jovem militante me explicou que muita gente tem esta dúvida e que a principal divergência está com o PSTU (pois a UP é “marxista-leninista” e reivindica Stalin contra Trotsky) enquanto tem uma maior proximidade com o PCB e discordâncias menores (em especial com relação à China e ao grau de centralização que um partido marxista deve ter).[15]

Reformulo, aqui, uma questão que apresentei em meu último artigo no Contrapoder: tudo indica que, com o realinhamento da maioria das correntes do PSOL (como, de um lado, Primavera Socialista e Revolução Solidária e, de outro, Resistência, Insurgência e Subverta) em direção ao lulismo e ao campo democrático-popular, vai se consolidando uma tendência de que a nova oposição de esquerda ao PT seja protagonizada pelos auto-denominados marxistas-leninistas, isto é, por atores políticos que revalorizam o legado stalinista. Não posso deixar de imaginar quais vão ser as consequências para os grupos sociais subalternizados, seus movimentos sociais, seus canais alternativos de comunicação e suas lutas extra-institucionais por direitos.

Até pouco tempo atrás, os movimentos feministas eram protagonistas na oposição de esquerda ao PT. Em um episódio paradigmático dos conflitos com o campo democrático-popular, ainda caracterizado pelo seu governismo, meses antes do impeachment de Dilma Rousseff, o ato do 8 de Março de 2016 rachou por inaceitáveis agressões verbais e físicas a feministas que criticavam o governo do PT. Na época, produziram um balanço crítico a este governismo agressivo uma frente ampla de coletivos trotskistas, socialistas, comunistas (minha lembrança é que, nesta época, o neostalinismo não era ainda proeminente) e autonomistas.[16] Anos depois, estamos em outra conjuntura, com diversas feministas organizadas partidariamente se movendo ativamente para contribuir para a renovação e ampliação do campo democrático-popular (inclusive com práticas e repertórios que injetam ânimo, engajamento emocional e nova legitimidade política, o que é sintetizado na faixa “Ele não, Lula sim”); pelo que pude observar nas ruas em 10 de setembro, sobrou uma proporção excessiva de homens na (nova) oposição de esquerda, o que certamente tem (e terá) consequências práticas, simbólicas, discursivas e organizacionais.

Esta é uma conclusão para as consequências para alianças e antagonismos no interior das esquerdas. Mas e com relação ao conflito mais amplo com o bolsonarismo? Como eu disse, a manifestação do Bicentenário da Independência na Paulista não teve a massividade esperada pela sua organização (não sei avaliar com relação às expectativas e efetivações no Rio de Janeiro e em Brasília). Contudo, o ato da extrema-direita acabou ganhando um peso massivo e popular por W.O., diante da total ausência de investimento prioritário de energia e recursos na organização deste protesto das esquerdas tornado comício eleitoral pró-Lula. A estratégia da família Bolsonaro e dos movimentos conservadores que sustentam o bolsonarismo tem sido, de uma forma bastante clara e desavergonhada, a deslegitimação dos institutos de pesquisa, prometendo à sua base de eleitores que Bolsonaro vai ganhar as eleições, numa espécie de negacionismo, já que nega que, hoje, a maior probabilidade é a vitória de Lula, seja em 2º turno, seja em 1º. Os públicos bolsonaristas estão, uma vez mais, construindo socialmente uma realidade paralela, da qual será impossível ou improvável acordar quando vier um resultado surpreendente, decepcionante e potencialmente revoltante para seus leitores e seguidores, que podem muito bem se engajar em ações subversivas do jogo eleitoral. O projeto eleitoralista e institucionalista do campo democrático-popular encontra-se evidentemente ameaçado com relação à legitimidade das pesquisas eleitorais, das urnas eletrônicas, do resultado das eleições e da própria posse de Lula em 1º de janeiro de 2023. Qual é a chance de se disputar narrativas nas próximas semanas e meses e garantir a legitimidade da política institucional, tão prezada pela própria frente ampla lulista, sem ocupar massivamente as ruas?

Nota: Este artigo não foi revisado por nossa equipe.


[1]  https://contrapoder.net/artigo/11-de-agosto-de-2022-uma-noite-de-distanciamentos-e-realinhamentos-na-esquerda-brasileira-uma-nova-oposicao-de-esquerda-e-um-renovado-campo-democratico-popular/

[2] https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSeLEdwgF0WKuaUXcN5znV0xiWUfCJSBRvtvkGE6WWUF7Yy61Q/viewform 

[3]  https://esquerdaonline.com.br/2022/09/06/movimentos-sociais-convocam-grito-dos-excluidos-e-atos-em-10-de-setembro-em-resposta-ao-golpismo-7-de-setembro/

[4]  https://www.facebook.com/GuajajaraSonia/posts/pfbid06nWM9c7KJrLVLoW9tr2RmDYk6uP2zmbbwcbxWs27rFMdr1sZBdTDZ5pYDfm2MCpWl

[5]  https://www.facebook.com/bancadafeministapsol/posts/pfbid02SfSHwwwtg5gHQPyuEM3tNYsDBXnZhA7cG8DzYCcv4YG2Hwe66paeZiJh4PtRt7sDl

[6] https://www.poder360.com.br/opiniao/ato-de-2-de-outubro-foi-um-protesto-das-esquerdas-escreve-jonas-medeiros/

[7] https://www.poder360.com.br/opiniao/o-bicentenario-da-independencia-na-avenida-paulista/

[8] https://www.poder360.com.br/opiniao/protesto-bolsonarista-perfil-social-valores-e-emocoes-por-jonas-medeiros/?a-z

[9] Não apenas havia militantes do MTST com camisetas, bonés e faixas desde a frente até o fundo do ato, como havia bandeiras identificando nominalmente diferentes ocupações por toda a breve extensão do protesto (ocupações como João Cândido, Chico Mendes, Paulo Freire e Maria Bonita).

[10] https://www.brasildefato.com.br/2022/09/10/em-contraponto-ao-7-de-setembro-atos-por-lula-e-fora-bolsonaro-acontecem-neste-sabado-10

[11] https://www.brasildefato.com.br/2022/08/11/manifestacao-reune-dez-mil-pessoas-na-paulista-contra-ataques-de-bolsonaro-a-democracia

[12] https://www.poder360.com.br/opiniao/o-bicentenario-da-independencia-na-avenida-paulista/

[13] Se, em agosto, o PSTU estava presente de forma mais intensa, agora em setembro só identifiquei a Bancada Anticapitalista, candidatura coletiva ao Congresso Nacional do grupo Socialismo ou Barbárie, que era uma corrente do PSOL e agora se filiou ao PSTU para disputar estas eleições.

[14] http://cspconlutas.org.br/n/16748/dia-17-debate-com-presidenciaveis-abrira-reuniao-da-coordenacao-nacional-da-csp-conlutas

[15] Até onde entendo, o PCB evita defender o stalinismo tão abertamente quanto a UP, seja por algum resquício das normas de decoro do discurso público no interior da própria esquerda brasileira, que já foi hegemonizada por um forte anti-stalinismo, seja pelo que os seus próprios militantes se referem como ausência de um “centralismo teórico” em suas fileiras (https://www.facebook.com/alexandre.vasilenskas/posts/pfbid0Sr2mYq4CA8RFGrsq5n48mJEvpYEMdmcJCYek29dTrQHH6wS9ovbgJJVCVKM6pJFzl). Já no caso da UP, a aberta reivindicação de Stalin não é exclusiva da sincera militante que conversou comigo, estando, por exemplo, em um tweet do perfil “Unidade Popular @UP80BR” em 05 mar. 2022: “Hoje completam 69 anos da morte de Josef Stalin.Revolucionário comunista, construiu o partido Bolchevique e  liderou os exércitos da URSS na vitória contra o nazismo!”, disponível em: https://twitter.com/up80br/status/1500218000967876611

[16] “Movimento Mulheres em Luta, Movimento Luta Popular, Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, Coletivo Juntas, Grupo de Mulheres Pão e Rosas, Coletivo RUA Juventude Anticapitalista, Juventude Vamos à Luta, Coletivo Construção, Insurgência-PSOL, LSR-PSOL, CST-PSOL, PSTU e do PCB, e vários coletivos de mulheres autônomas e independentes”, cf. https://www.esquerdadiario.com.br/8-de-marco-tem-que-ser-independente-e-nao-pode-ser-sequestrado-para-defender-o-governo

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