#19J — O Impeachment é para ontem: nós queremos o Futuro!

O que podemos esperar — e como não nos iludirmos — com o #19J?

por: Bruno Cesar Cassani Medeiros1

Imagem de @dnegojustino

Há pouco mais de duas semanas saímos às ruas no #29M. Fazia tanto tempo que não ia a um Protesto, com “P” maiúsculo, que senti a necessidade de contar os dias: para o meu estranhamento, foram 730 dias de marasmo. Minha última ida a um protesto havia sido em Campinas, no ato de 31 de maio de 2019. Exatamente dois anos antes.

Isso me faz pensar que o Brasil realmente seja o país das coincidências. Enchemos as ruas mas, “coincidentemente”, no dia seguinte aos atos o Estadão estampava na sua capa de domingo não o povo, mas o turismo de home-office. O Globo foi ainda mais cínico: “PIB reaquece, e empresas desengavetam R$164 bilhões em projetos”. A não-cobertura da mídia mostrou que há um consenso nos grupos que controlam e organizam a sociedade civil de que a pressão contra o Bolsonaro não será vocalizada se vier das ruas. O que é sintomático, porque se não vier das ruas, não será legítima. E de onde virá, então?

Em uma entrevista recente à Carta Maior2, Vladimir Safatle trouxe um bom questionamento, que ajuda a remover esse véu de normalidade do mundo, da nossa vida em pandemia e das perspectivas políticas do nosso país, dilacerada nesses últimos anos de repressão:

… a gente sabe que não houve eleição em 2018. Foi uma eleição de República Velha, completamente forjada. A gente viveu um golpe dito em baixa voz e prolongado. Não foi um golpe gritado. Foi um novo modelo de golpe. É um golpe em câmera lenta. Ele vai sendo feito durante anos.

Penso que aqui há uma pista importante na compreensão do silêncio ao nosso redor. O golpe – qual?: o de 2014, o 2016, o de 2018, o de 2021?  – foi televisionado, mas parece que todo dia é “O dia do Golpe”, sempre com seu clímax adiado de última hora para o dia seguinte, a espera de uma decisão que ainda não veio, seja do Supremo, do TCU, do TSE, da Câmara, do Senado e agora da CPI. E é esse “novo normal” que faz nosso dia a dia nos últimos dois anos, tempo esse que, coincidentemente, também transcorreu sem grandes manifestações populares por todo o país.

Mas bem sabemos que não é pelo crescimento econômico, estabilidade política e bem-estar social que vivemos essa era de ruas caladas e silenciosas – mas, de forma alguma, vazias. Vale lembrar: acontece agora uma crise sanitária e social sem precedentes. Somavam-se mais de 209 milhões de pessoas vivendo em situação de pobreza na América Latina no final de 2020 – é um Brasil de pobres! São mais de 500 mil lutos só em nosso país desde o começo da pandemia. Em meio ao caos, o auxílio emergencial foi reduzido à 150 reais: é a política da morte.

Crise humanitária em São Paulo. @pejulio | https://twitter.com/pejulio/status/1401265806391091201?s=20

Foi por tudo isso que voltamos às ruas no #29M, movidos por um desejo radical e inconformista, uma vontade mais subterrânea de transformação dessa realidade mórbida que nos envolve. Uma coisa é certa: queremos mudança! Mas esse desejo é também ambíguo e ansioso, pois é muito reprimido. Bloqueio esse que aparece desde os tempos remotos da escravidão, na eterna violência a serviço de quem manda, há tempos encapada de violência policial, como atestou a reação primitiva da Polícia Militar sobre manifestantes no Recife-PE3 e que, no fundo, é o material formativo daquelas “coincidências” que, aqui no Brasil, constroem a imagem perpétua do protesto como um espaço violento, gerador das reações mais descabidas: uma amiga me contou que ficou tão nervosa antes do ato que chegou a vomitar na rua! Acho difícil imagem mais significativa e escatológica da ânsia & angústia que marcou o #29M.

Nesse cenário, o que esperar para #19J, no próximo sábado?

Difícil responder. Recuperando uma discussão de Maria Rita Kehl sobre o desejo, as utopias e o sentido de ocupar as ruas em protesto, diria que mesmo limitado pelas contingências do momento e nada revolucionário, um ato é um ato e serve de ameaça ao grupo instalado no poder, ainda que “o fim de uma grande manifestação, quaisquer que sejam suas conquistas, [seja] sempre alguma decepção” (KEHL, 1989, p. 54).

Essa frustração tem origem diversa, mas um ponto de convergência se dá, hoje, pelo sentimento de impotência que emerge do paradoxo criado entre a urgência de resoluções e da percepção de que o processo político pressupõe conquistas que são lentas e graduais –  em especial no Brasil. Saímos às ruas com a evidência de que um genocídio acontece agora no país, mas ir às ruas não significa que vamos conseguir a deposição do presidente fascista, nem a resolução dos nossos dilemas  – saúde, trabalho e educação. Inclusive, sabemos de antemão que isso faz contragosto expresso a quem pode abrir um processo de impeachment.4

Ainda assim, penso que ir às ruas é um passo para metabolizarmos a frustração em que vivemos. É caminho para nos mantermos mobilizados e reavermos o sentimento de pertencimento a um todo maior, comum a quem vive o Protesto. Permite também regenerarmos a esperança na colaboração espontânea e no bom-senso – coisas tão desgastadas depois de tanto tempo sob a (in)gerência desse grupo doentio que nos (des)governa. 

Isso porque o protesto nos coloca a reflexão sobre qual o sentido de ocupar as ruas, hoje, em pandemia. E se ele existe, qual é? – derrubar Bolsonaro? Pressionar por uma resolução da CPI? Vacina? Auxílio Emergencial? Justiça? Reformas? 2022? Arrisco a dizer que tudo isso e algo mais. Ir às ruas nos permite abrir uma “fissura na fissura”, para usar a expressão da cantora Linn da Quebrada 5, e abre a reflexão conjunta sobre o que se tem passado aqui e para onde vamos. Faz ecoar uma questão: que Futuro nós queremos e qual nos espera?

Se tomarmos como base a última década que vivemos – sombria, como qualificou a última edição da The Economist  – não podemos esperar boa coisa. Se acrescentarmos a perspectiva reacionária e violenta que carrega a expectativa sobre os próximos meses até a eleição, anunciada por Safatle e que apontamos no começo da nossa conversa, o caldo só engrossa  – ainda mais com o escancaramento de que as Forças Armadas estão dispostas a se colocar como o Exército de Bolsonaro6. Chegamos a um ponto que até mesmo os conservadores já enxergaram que “há perigo de politização” dos militares 7–  com um elemento novo: o apoio explícito das lideranças fascistas que engolfaram o Estado brasileiro, essa entidade mítica que nos governa.

Coincidência ou não, um vídeo reacionário postado por Juliana Paes8 nos últimos dias motivou uma discussão sobre as nossas utopias “comunistas” e o que desejamos como Futuro. Numa das réplicas, feita pelo ator Ícaro Silva, ele resume nosso momento atual: “o Brasil não é uma bolha; é uma poça de lama”.

Nossa utopia de Futuro poderia partir daí, da constatação dessa verdade tão dolorosa, nos despojando dessa ilusão torta de civilização e desse cinismo, que finge normalidade diante do caos que vivemos. Disso, ir às ruas no próximo sábado sabendo que esse movimento representa um adiamento do que deveria ter sido resolvido ainda ontem; conscientes de que é apenas um passo  – pequeno, porém importante. Mas que cumpre a função de fazer a mediação entre o urgente e o possível de ser feito em pandemia, encurralados pela violência fascista, que só cresce. Com isso, transformar a manifestação em um símbolo, um lembrete nosso para nós mesmos, de que mesmo sendo o desejo dos fascistas, não estamos mortos, nem ficaremos calados.

Pensemos o #19J nos termos que sugere Maria Rita Kehl, como a possibilidade (adiada) da transformação; mas sabendo que adiar – e não renunciar – é pré-requisito para se criar alguma realidade, caminho necessário para sairmos dessa “poça de lama” paralisante, gerada pela impotência diante do que precisa ser feito. Não será possível conquistar Tudo; e devemos mesmo questionar esse desejo (utópico) de mudança absoluta, pois se ele expande os nossos horizontes para a prática política, não nos dá os caminhos para realizá-la. Somente com ele, o que conseguimos é mais frustração, angústia e desmobilização e o resultado é que matamos nossa utopia de mudança e de Futuro, mistificando o que poderia ser nossa ação política – um cenário perfeito para o fascista que nos (des)governa.

“Protestar é sobreVIVER no coletivo”, resumiu a professora Rosana Pinheiro-Machado. E entender que mesmo o protesto tem seus limites é fundamental para que seja possível abrirmos mão das fantasias de mudança absoluta em nome de algo possível, que viabilize, inclusive, expandir seu conceito e organizar essa revolta contra o caos que abate sobre nós para além dos limites “conformistas” das redes sociais, do trend topic do Twitter e do desejo de que a mídia, reacionária, paute algo além dos interesses do mercado financeiro e da miséria que faz a vida dos faria-limers spp.

Que #19J nos permita, mais uma vez, Viver – com “V” maiúsculo – o protesto e a decepção da manifestação. Que seja instrumento para transformação dessa agonia coletiva que sofremos hoje, pressionando para abertura de novas possibilidades, mais brilhantes que as que temos vivido. E, de forma especial, que seja o caminho da fundação de uma nova utopia, de um novo Futuro – possível – para o Brasil, em que coexistam soberania nacional, igualdade social e democracia.

— — — — KEHL, Maria Rita. A Razão depois da Queda (utopias e psicanálise). In: FERNANDES, Heloísa Rodrigues (org.). Tempo e Desejo: sociologia e psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1989.

Referências

  1. Bruno é economista, mestre em História Econômica pela UNICAMP, doutorando em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP e membro do PSOL.
  2. Entrevista com Vladimir Safatle: ”não houve eleição em 2018”: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Entrevista-com-Vladimir-Safatle-nao-houve-eleicao-em-2018-/4/50662
  3. Governador afasta comandante da PM de PE após agressão em protesto, em: https://www.poder360.com.br/brasil/governador-afasta-comandante-da-pm-de-pe-apos-agressao-em-protesto/ e Recife: Homem fica cego de olho atingido por bala de borracha da PM em ato ver em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/05/29/recife-homem-fica-cego-de-olho-atingido-por-bala-de-borracha-da-pm-em-ato.htm
  4. Não é caminhada de um grupo que vai fazer andar impeachment de Bolsonaro, afirma Lira, Veja em: https://www.jornaldotocantins.com.br/editorias/politica/n%C3%A3o-%C3%A9-caminhada-de-um-grupo-que-vai-fazer-andar-impeachment-de-bolsonaro-afirma-lira-1.2260498
  5. Música: https://www.youtube.com/watch?v=qElEEI_uwc8
  6. Politização das Forças Armadas é risco claro e presente, em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2021/06/politizacao-das-forcas-armadas-e-risco-claro-e-presente.shtml
  7. ‘Há perigo de politização das Forças Armadas com risco à democracia’, diz o historiador José Murilo de Carvalho, em: https://oglobo.globo.com/brasil/ha-perigo-de-politizacao-das-forcas-armadas-com-risco-democracia-diz-historiador-jose-murilo-de-carvalho-25048458
  8. https://www.instagram.com/tv/CPow9x5FKlq/?utm_source=ig_web_copy_link

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