A noção de “ACTs eventuais” como discurso de legitimação do Capital

por Adalberto Teodosio Tabalipa1

Introdução

Quem acreditaria que dentro da sede de um sindicato de professores uma categoria terminológica que marginaliza os professores substitutos seria utilizada e legitimada pelas instâncias sindicais para enfraquecer estes trabalhadores em relação a seus direitos de sindicalizado — um grupo tão fragilizado pelas políticas do governo? E mais: como se poderia conceber que tal ação viria de um sindicato que divulgou um estudo apontando que quase 30% dos trabalhadores da educação entrevistados no Estado passaram por crises psicológicas que levaram à ideação suicida; que se encontram endividados pela falta de recomposição salarial; que são vítimas de assédio e violência, tanto por parte do Estado quanto de elementos da extrema-direita que atacam os professores no dia a dia? Uma afirmação como essa exige uma contextualização para ser compreensível — e é isso que buscamos fazer aqui. Antes, porém, adiantamos: sim, isso é possível. O título do livro organizado em 2005 por Lucia Neves, Esquerda para o capital, direita para o social, publicado pela Xamã, é bastante elucidativo para entendermos situações como essa. O conteúdo da obra, assim como diversos estudos reconhecidos sobre políticas educacionais, ajuda a demonstrar como estratégias criadas em nome dos interesses do capital, muitas vezes, contam com o apoio de representantes dos próprios trabalhadores, transformados em peças-chave na construção da hegemonia e reprodução dos interesses capitalistas.

Esse quadro pode também ser explicado pela situação de barbarização vivida em muitos estados, especialmente em Santa Catarina, onde a política negacionista tem se mostrado extremamente forte e influente. Essa postura, que nega a ciência, a educação crítica e os direitos dos trabalhadores, também incide na formação dos próprios trabalhadores da educação. A ideologia dominante, que busca reduzir a educação a uma mercadoria e enfraquecer a capacidade crítica da classe trabalhadora, infiltra-se no terreno ideológico, alterando a postura e a atuação de representantes sindicais.

A aristocracia operária, representada pelas cúpulas sindicais, muitas vezes se vê capturada por essa lógica de colaboração com o capital, o que resulta em uma atuação que, ao invés de defender os direitos dos professores e da educação pública, acaba por reforçar as políticas que contribuem para a precarização do trabalho docente e o esvaziamento do conteúdo crítico do ensino. Esse fenômeno é um reflexo de como, em um contexto de barbárie e desinformação, até mesmo os movimentos que deveriam ser de resistência e luta podem ser cooptados ou enfraquecidos.

Vamos aos fatos, de forma sucinta: em uma eleição sindical, uma das chapas contestou a candidatura de um concorrente alegando que não poderia se candidatar por ser um tipo distinto de ACT (Admitido em Caráter Temporário), chamado, no recurso apresentado, de “ACT eventual”. O coletivo com o nome bonito “Quem luta, educa” conforme o seu recurso, trata do “ACT eventual” como aquele que, ao fim de seu contrato com o Estado, busca outras formas de sustento fora do magistério, ou seja, não permanece desempregado dada a fragilidade do vínculo contratual de professor substituto.

Desde agosto de 2024 não atuou como professor na rede Estadual. Como o próprio professor falou na reunião do Conselho Deliberativo de 08/03/25, atua na rede privada onde é sua maior carga horária. Não estamos questionando a opção de trabalho em qualquer rede de qualquer professor, muito menos questionando o direito do professor ACT, já precarizado, de participar do pleito para direção do SINTE – Regional de Florianópolis ou qualquer outra regional. No entanto, para concorrer são estabelecidos critérios, os quais o professor em questão não cumpre. A carência estabelecida no artigo 12 do Estatuto do SINTE SC, se refere ao professor DESEMPREGADO, lhe dando garantias mínimas no período do desemprego. Art. 12 – O(a) filiado(a) desempregado(a) tem direito à assistência jurídico-trabalhista pelo período de 12 (doze) meses após o rompimento do vínculo empregatício. § 1º- Aos ACTs serão assegurados todos os direitos de filiado, inclusive de direção, até um ano após cessado o vínculo com o Estado, sujeito a análise do Conselho Deliberativo, desde que não tenha culpa comprovada judicialmente pela sua não contratação. (RECURSO DA CHAPA QUEM LUTA, EDUCA, 2025)

A interpretação que a chapa e a comissão eleitoral — com anuência da direção executiva do SINTE —2 fazem do estatuto restringe direitos a uma condição idealizada de desemprego absoluto, desconsiderando a realidade concreta de sobrevivência de muitos professores que, entre vínculos temporários e bicos ou alternativas de renda, tentam se manter no mercado de trabalho. Essa leitura ignora que o desemprego a ser considerado é em relação ao ente empregador da categoria — o Estado — e não a ausência total de qualquer ocupação e reforça sua crítica à instrumentalização política de critérios visando esvaziar o sentido de proteção coletiva do estatuto.

Segundo o estatuto do próprio sindicato, há garantias de assistência jurídica e sindical a professores desempregados. No entanto, a interpretação aplicada neste caso considera que tal compromisso não se estende ao “ACT eventual”, sob o argumento de que, ao procurar garantir sua sobrevivência por outros meios de trabalho, esse professor se torna menos merecedor de apoio. Em contrapartida, o ACT que permanece desempregado teria apenas direito à assistência jurídica, ao passo que outros ACTs manteriam os direitos dos professores efetivos. Ocorre, contudo, que o mesmo artigo do estatuto prevê a estabilidade por até um ano após o término do vínculo, desde que não haja justa causa comprovada judicialmente. Ou seja: todo professor, em algum momento, estará desempregado. E se buscar, nesse período, alguma forma de sobrevivência, essa busca será interpretada por parte destes sindicalistas como suficiente para negar-lhe direitos políticos e sindicais.

Pode-se argumentar que a figura do “ACT eventual” é uma criação do governo, que negligencia concursos públicos e precariza o trabalho docente, como evidenciado pela ampla maioria de professores ACTs em Santa Catarina. No entanto, a interpretação adotada pela chapa sindical, ao defender que o ACT perde automaticamente o direito à estabilidade caso busque outras fontes de renda, alinha-se à lógica governamental. No recurso supracitado alegam não se opor à busca de subsistência pelos ACTs em contextos de desemprego, mas afirmam que essa iniciativa os tornaria inelegíveis aos benefícios estatutários, como se a estabilidade fosse uma assistência concedida apenas aos desempregados absolutos e não um direito inerente à condição de trabalhador. Essa postura reduz um direito conquistado a um favor condicional, desconsiderando que a estabilidade é parte fundamental da proteção trabalhista, especialmente em um contexto de precariedade estrutural.

Poder-se-ia objetar que se trata apenas de uma manobra eleitoral para favorecer uma chapa em detrimento de outra, algo de menor importância e não possível de ser apontada com um objeto a ser estudado, como um processo estruturante que ajuda a explicar a complexidade das políticas educacionais no capitalismo contemporâneo. Quais as consequências de uma posição como essa, vinda do sindicato, no caso uma chapa eleitoral com respaldo da comissão eleitoral indicada pelo conselho deliberativo da entidade e não do governo? Em um contexto em que um governo neoliberal atua para privatizar, precarizar e militarizar a educação, com parlamentares que defendem a política de vouchers, a passividade da direção sindical em se posicionar diante desta injustiça, agora legitimando essas exclusões, é particularmente grave.

É importante destacar que, além da chapa que apresentou o recurso e da comissão que o aprovou, um áudio do advogado do sindicato durante a reunião da comissão eleitoral foi apresentado visando corroborar a tese. Além da tese do “Act eventual”, outros argumentos foram levantados para justificar pedidos de impugnações aceitos pela comissão eleitoral estadual – inclusive referendando atos patronais, como a derrubada de desconto de filiações feitas unilateralmente pela Secretaria da Educação contra trabalhadores -inclusive contra dirigentes do sindicato, ACT´s, que fazem regularmente o desconto da sua liberação sindical diretamente ao sindicato..

Condição do ACT: vínculo precarizado, presença silenciada

A maioria dos filiados ao sindicato é aposentada; depois dela, vem o restante dos efetivos. Professores ACTs que se aposentam sequer podem se manter filiados à entidade. Isso seria culpa dos próprios ACTs por não se organizarem? Por não entenderem a importância da filiação sindical? Como explicar, então, o protagonismo dos ACTs nas greves, mesmo sendo o elo mais frágil da categoria? Protagonismo, muitas vezes, apesar do sindicato. Na última greve, quando o governador Jorginho Mello ameaçou demitir ACTs grevistas, uma liminar favorável — com prazo de validade — foi conquistada. Ainda assim, o sindicato convocou assembleia e colocou seu setor jurídico para alertar sobre os riscos de continuar a greve após o vencimento da liminar. A mensagem foi clara: era hora de desmobilizar, mesmo sem que os direitos políticos da categoria tivessem sido alcançados. Para cada fato, esses dirigentes burocratizados apresentam uma argumentação que visa justificar a passividade e a cumplicidade com governos e Estado burgueses. 

De acordo com reportagem do Brasil de Fato (2023), divulgada pelo Sinte-SC, os dados da 3ª Pesquisa Sobre a Saúde dos Trabalhadores da Educação em Santa Catarina expõem a dimensão catastrófica da precarização docente no estado. Os números não são meras estatísticas: são um retrato da violência estrutural que assola a categoria, agravada pela omissão sindical e pelas políticas oficiais excludentes. De acordo com a pesquisa, 65,7% dos trabalhadores tiveram problemas de saúde mental; 27,6% relataram ideação suicida (mais de um em cada quatro); 56,6% sofrem com doenças osteomusculares (dores na coluna, joelhos etc.); 33,6% têm doenças do sistema digestivo, muitas relacionadas ao estresse crônico; 54,4% foram afastados do trabalho por problemas de saúde em 2022; 83,3% trabalharam doentes (pressão por produtividade e medo de demissão); 51,6% desenvolveram doenças diretamente ligadas ao trabalho. A pesquisa revela que a instabilidade contratual e a sobrecarga de trabalho são combustíveis para a degradação da saúde mental. Enquanto o Sinte-SC produz pesquisas que denunciam a crise sanitária na educação, sua postura política contradiz o discurso de defesa da categoria. A entidade falha em não vincular as doenças ocupacionais às políticas de flexibilização que ela própria não só tolera, como reforça, como é o caso em discussão neste artigo. A pesquisa do Sinte-SC não apenas comprova o colapso na saúde dos trabalhadores, mas evidencia a urgência de confrontarmos os sindicatos que naturalizam essa realidade. É preciso exigir que sindicatos como o Sinte-SC parem de culpar os trabalhadores e assumam sua responsabilidade na criação de nomeações para a categoria que sejam excludentes.

Não é possível avançar nessa reflexão sem abordar as políticas educacionais que envolvem diretamente o financiamento da educação, a formação docente, a estruturação das carreiras do magistério e os processos de avaliação. Todos esses aspectos têm sido profundamente impactados pela financeirização do setor, pela lógica gerencialista e pela atuação de grupos econômicos e políticos que operam como personificações dos interesses do capital. Essas políticas vão além do desvio de recursos públicos para a iniciativa privada: elas buscam moldar a subjetividade dos trabalhadores para que aceitem, como naturais, as condições impostas pelo capitalismo em sua atual fase de crise estrutural, marcada por impasses que se traduzem em flexibilização, intensificação, precarização e superexploração do trabalho.

Na fatídica reunião, comparou-se a aprovação do recurso inviabilizando a candidatura com uma vitória de Pirro — e essa analogia é bastante precisa. A expressão remete à guerra travada por Pirro, rei do Épiro, que, ao vencer batalhas contra os romanos, perdeu tantos soldados que suas vitórias se tornaram insustentáveis. Da mesma forma, ao garantir o impedimento de uma candidatura por meio de uma interpretação excludente do estatuto, as chapas alinhadas com a direção sindical podem até ter obtido um ganho momentâneo em termos eleitorais, mas à custa da legitimidade política e moral perante uma parte significativa da categoria que deveria representar. Essa vitória, conquistada à base da exclusão dos mais precarizados, enfraquece o sindicato como um todo. Ao excluir os ACTs — justamente aqueles que, historicamente, mais sofrem com os ataques do Estado —, a direção contribui para aprofundar o fosso entre a base e a estrutura sindical. Isso não apenas desmobiliza, mas mina a confiança na entidade, fragilizando sua capacidade de articulação e resistência em momentos decisivos. Em um contexto de avanço da privatização, de reformas regressivas e de ofensivas ideológicas da extrema-direita, essa fragmentação interna é tudo que o capital deseja.

É uma vitória que sacrifica o futuro da organização em nome de uma vantagem imediata – se assim se poderia chamá-la. Ao reproduzir a lógica meritocrática e excludente que o próprio sindicato deveria combater, abre-se espaço para que os próprios trabalhadores questionem: a quem, de fato, esse sindicato serve? Qual o projeto de educação e de sociedade que está sendo defendido? Trata-se, portanto, de uma vitória que cobra um preço alto: o enfraquecimento da solidariedade de classe, a desmobilização da base e o reforço da ideia de que não há representação possível para os mais precarizados. Uma vitória que, como na metáfora histórica, pode ter custado demais para ser realmente considerada uma conquista.

Mas por que uma decisão como essa foi tomada? Seria fruto de uma simples falta de visão política por parte dos envolvidos? Um desejo mesquinho de vencer a qualquer custo, mesmo que às custas da exclusão dos mais vulneráveis? Embora essas hipóteses mereçam a atenção devida, elas importam menos do que o esforço de compreender, em uma perspectiva de totalidade, o papel estruturante que certos setores da esquerda institucionalizada — inclusive dentro dos sindicatos — têm cumprido na manutenção do status quo. Aqui, o título do livro Esquerda para o capital, direita para o social é novamente essencial. A obra demonstra como setores outrora identificados com a luta popular passaram, ao longo das últimas décadas, a operar de forma integrada ao projeto neoliberal. Em vez de confrontar a lógica do capital, muitos passaram a geri-la. Em nome da “responsabilidade”, da “governabilidade” e da “modernização”, se adaptaram aos marcos da política burguesa e, com isso, acabaram se tornando peças funcionais na engrenagem da reprodução capitalista.

No caso dos sindicatos, isso se expressa de forma ainda mais aguda. No lugar de organizarem a classe trabalhadora para o enfrentamento, muitos atuam hoje como mecanismos de regulação do conflito social, administrando o descontentamento, canalizando a revolta para dentro de limites institucionais e esvaziando sua potência transformadora. Não se trata apenas de erro tático, mas de uma função política concreta no interior do sistema. Essa função se torna ainda mais clara quando observamos que o alinhamento político-partidário das forças que compõem o movimento sindical na educação, condenam discursivamente projetos e organizações que defendem abertamente a privatização da educação — como o movimento Todos Pela Educação, o Movimento Pela Base ou os convênios firmados com fundações empresariais, como a Fundação Lemann ou o Instituto Unibanco, porém de forma sutil incorporam várias das ideias-chave deste movimento, como evidenciaremos a seguir. Vale lembrar que essas entidades — representantes diretas dos interesses de várias frações do capital — atuam sob a narrativa da “melhoria da qualidade”, mas promovem reformas que visam a padronização, o controle, a precarização e a mercantilização da educação pública.

Decisões como a exclusão de um “ACT eventual” da disputa sindical não devem ser vistas como desvios pontuais, mas como expressões de um padrão mais amplo: a subordinação crescente da política educacional — e da própria organização dos trabalhadores — às exigências do capital. Trata-se de um projeto que não hesita em excluir, hierarquizar e controlar os próprios trabalhadores em nome de uma falsa estabilidade institucional. Um projeto que precisa, para se manter, de figuras legitimadoras dentro da própria classe trabalhadora. A vitória de Pirro, portanto, não é apenas eleitoral: é simbólica. Ela representa o triunfo momentâneo de uma lógica que naturaliza a desigualdade entre trabalhadores, enfraquece sua organização coletiva e reforça os mecanismos de dominação do capital, com o selo de aprovação de setores que ainda se dizem de esquerda. Esses setores, frequentemente oriundos da esquerda tradicional ou reformista, são compostos por dirigentes partidários, lideranças sindicais e intelectuais orgânicos que orbitam em torno do campo progressista hegemônico no Brasil, especialmente em torno do Partido dos Trabalhadores (PT) e suas organizações satélites. São aqueles que, em nome da luta contra a extrema direita, defendem a permanência e o fortalecimento de governos de composição claramente burguesa, mesmo ao custo de sucessivas concessões aos interesses do capital.

Tal esquerda passou, com o tempo, a medir a política exclusivamente pelos parâmetros da institucionalidade, da governabilidade e da viabilidade dentro do sistema, abandonando qualquer horizonte de ruptura real. Nessa lógica, tudo que ameaça a estabilidade do arranjo político — mesmo que essa estabilidade signifique a manutenção da miséria, da exploração e da destruição de direitos — é considerado inviável, irresponsável ou “de extrema esquerda”. Essa visão política é o que justifica o apoio a reformas neoliberais “menos cruéis”, “civilizadas”, como a da previdência aprovada por governos ditos progressistas; a aceitação da política de metas e avaliações de desempenho na educação, baseadas em modelos gerencialistas do setor privado; a manutenção de alianças com setores do agronegócio, das mineradoras, dos bancos e do centrão em nome da “governabilidade”; o silêncio ou mesmo apoio à presença de fundações empresariais no interior das políticas públicas de educação, saúde e segurança. Posições assentadas na ideia de “realismo político”, que consiste basicamente em adaptar-se aos limites impostos pela correlação de forças, sem qualquer esforço para transformá-la. Com isso, terminam funcionando como correias de transmissão da lógica capitalista, travestida de política progressista.

Dentro dos sindicatos, esses grupos cumprem o papel de frear mobilizações mais radicais, esvaziar greves combativas, priorizar agendas institucionais e sufocar qualquer oposição interna que defenda uma linha de independência de classe em relação ao Estado. São, muitas vezes, os mesmos que criminalizam a base quando esta se rebela contra os acordos de cúpula, acusando de “divisionismo” qualquer crítica à burocracia sindical. E é exatamente nesse contexto que decisões como a exclusão de ACTs por critérios que beiram o absurdo jurídico e político se tornam compreensíveis: não se trata de um erro isolado, mas de uma coerência com a estratégia de preservar a ordem — mesmo que isso signifique marginalizar ainda mais os mais explorados.

Neoliberalismo e captura das políticas educacionais

Um exemplo paradigmático sobre posição comprometida com o capital é o silêncio do campo político governista nas entidades sindicais da educação sobre a escolha de Tabata Amaral como presidente da Comissão de Acompanhamento do Plano Nacional de Educação (PNE). O protagonismo de Tabata é extremamente revelador do avanço — ou melhor, da consolidação — de projetos neoliberais no interior das políticas educacionais brasileiras, inclusive sob governos ditos progressistas.3

Essas fundações têm um projeto claro: transformar a educação pública num campo de negócios, articulando o projeto do capital a partir do Estado como anuente de tal negociação – vide as parcerias público-privadas -. precarizando a carreira docente e esvaziando o sentido crítico e emancipador da educação. Ao mesmo tempo, promovem uma retórica de “eficiência”, “inovação” e “foco no aluno”, que mascara os reais interesses da classe capitalista. A execução do PNE tem sido cada vez mais capturada por organizações privadas, que passaram a ocupar conselhos, comissões e até cargos de gestão nos ministérios. A escolha de Tabata é, portanto, mais um sintoma da hegemonia de um projeto neoliberal no campo da educação, legitimado inclusive por setores que dizem combater a extrema direita, mas que, na prática, naturalizam e aprofundam as concessões ao capital. Evangelista e Kenji (2025) citam trabalho de Costa sobre o espaço dado pelo governo federal à Fundação Lemann para participar de decisões avaliadas em R$ 6,6 bilhões na área educacional.

Organizações como o Todos Pela Educação difundem a ideia de que o problema da educação brasileira está na “baixa qualidade docente” e que seria necessário avaliar professores com base em desempenho. Isso se desdobra em práticas como propostas de carreiras docentes com gratificações por “mérito”; defesa da formação continuada baseada em resultados e monitoramento individual; incentivo à avaliação de desempenho atrelada à remuneração e permanência no cargo. A Fundação Lemann e seus projetos propõem que o docente se torne um empreendedor do próprio desempenho, assumindo metas, indicadores, relatórios, planos de aula padronizados. Essa lógica se concretiza localmente em experiências como a da entrada do TpE em Santa Catarina, especificamente em Florianópolis. Sob a justificativa de apoio técnico e melhoria da aprendizagem, essas ações impactam desde a formação de professores até a gestão curricular e pedagógica. Evangelista e Kenji (2025) destacam que “esse é um dos ingredientes secretos do TpE: combinar a desautorização e a submissão do saber docente à concentração do poder de enunciação político-pedagógica nas organizações privadas”.

Pelo menos quatro pesquisadores da Rede Municipal de Ensino (RME) têm se debruçado sobre essa entrada do TpE em Florianópolis: Melgarejo (2019), Santos (2019), Faust (2023) e Santos (2023), que analisaram, respectivamente, os impactos na formação docente, nos vínculos laborais, na autonomia pedagógica e nos processos de gestão escolar. Todos apontam para o avanço de uma racionalidade gerencial e tecnocrática que têm em vista despolitizar o debate educacional e reconfigurar o papel do magistério, naturalizando a perda de autonomia e a precarização da profissão. Analogamente, tais políticas são reproduzidas no meio sindical da educação. Alguns representantes sindicais, ao criar e reforçar divisões internas entre os próprios ACTs — como a distinção entre aqueles que permanecem disponíveis após o término do contrato e os que buscam outras formas de sustento — reproduzem a lógica neoliberal que fragmenta a classe trabalhadora e estabelecem hierarquias entre os mais e menos “merecedores” de representação.

Essa lógica moralizante transforma direitos coletivos em privilégio de poucos, julgando como menos comprometidos aqueles que, diante da instabilidade e da ausência de garantias, precisam buscar alternativas de sobrevivência. Ao contrário de fortalecer a unidade da categoria frente à precarização estrutural, essa postura enfraquece a capacidade de mobilização coletiva, justamente o que interessa aos projetos privatistas e aos gestores do capital na educação.

Análise Crítica do Discurso: a naturalização da precariedade

A Análise Crítica do Discurso, tal como proposta por Norman Fairclough (2001), parte do princípio de que o discurso não apenas reflete a realidade social, mas também a constrói e a transforma. O discurso é compreendido como uma prática social que interage dialeticamente com outras práticas sociais e com estruturas sociais mais amplas. Nesse sentido, categorias discursivas que emergem em contextos institucionais, como a noção de “ACTs eventuais” cunhada dentro do sindicato dos trabalhadores da educação em Santa Catarina, devem ser analisadas como construções que participam ativamente da produção e reprodução de relações de poder e dominação.

Fairclough destaca que o discurso pode funcionar como um instrumento ideológico, capaz de legitimar práticas sociais naturalizadas, mesmo quando estas operam em favor da lógica do capital. A designação de docentes como “eventuais”, por exemplo, opera no nível do vocabulário como uma estratégia de recontextualização da precariedade, diluindo seu caráter estrutural e transferindo para o campo da normalidade o que é, na verdade, expressão de uma política sistemática de desvalorização do trabalho docente. Sob essa perspectiva, o sindicato, ao incorporar e disseminar essa categoria, reproduz o discurso hegemônico do capital e enfraquece sua própria função contra-hegemônica.

Do trabalhador eventual à precarização estrutural: a reinvenção discursiva do capitalismo flexível

O termo eventual, no mundo do trabalho, tem um sentido técnico e jurídico relativamente consolidado. No sentido original: refere-se a um trabalhador que não possui vínculo empregatício contínuo, sendo contratado esporadicamente, sem previsibilidade, e geralmente sem direito à estabilidade, carreira ou continuidade da função. No Direito do Trabalho brasileiro, por exemplo, um trabalhador eventual é aquele contratado para serviços específicos e transitórios, sem habitualidade. Ele não é empregado no sentido clássico da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Esse processo tem um contexto. A partir da década de 1970, o modelo fordista de organização da produção – baseado na padronização industrial, estabilidade dos empregos e políticas estatais de bem-estar – entrou em colapso. A crise estrutural do capitalismo nesse período, marcada por queda da lucratividade e estagnação econômica, gerou uma reconfiguração da dinâmica de acumulação. Em resposta, emergiu uma nova forma de organização econômica pautada na flexibilidade, tanto produtiva quanto laboral, promovendo um deslocamento do centro de gravidade das relações de trabalho e das instituições que as regulavam. O novo paradigma de acumulação, identificado por David Harvey como “acumulação flexível” (1992), caracteriza-se por uma drástica reestruturação das relações de trabalho. Práticas como terceirização, subcontratação, informalidade e rotatividade foram intensificadas, tornando o vínculo laboral cada vez mais instável. O ideal de trabalhador se transforma: deixa de ser o operário estável e protegido e passa a ser o trabalhador “disponível”, adaptável, multifuncional, convocado sob demanda. É nessa transição que o conceito de “eventualidade” ganha centralidade, funcionando como um dos eixos da nova morfologia do trabalho.

No Brasil, país situado na periferia do sistema capitalista global, esse processo se deu de maneira particularmente intensa. A partir dos anos 1990, o Estado, para responder à crise do capital, adere ao receituário neoliberal com políticas de austeridade, privatizações e enfraquecimento da legislação trabalhista. A crise global de 2008 acelera esse movimento e o discurso da “modernização” passa a justificar reformas que aprofundam a precarização. O trabalhador flexível – amplamente presente na informalidade – começa a ser incorporado institucionalmente, inclusive no setor público, como resposta às demandas fiscais e à pressão por eficiência. Nesse cenário de transformações, o termo “eventual” sofre um processo de deslocamento discursivo. Originalmente associado a uma função transitória, sem habitualidade, designa agora posições permanentes sob contrato frágil, sobretudo no setor público. A linguagem jurídica cede espaço a uma linguagem político-institucional que “normaliza” a precariedade. A criação da categoria “ACT eventual” é exemplar nesse sentido: naturaliza a fragmentação do trabalho docente e escamoteia a condição precária com um termo de aparência técnica, reforçando uma lógica que desresponsabiliza o Estado enquanto empregador.

A penetração desse discurso no setor público, especialmente na educação, explicita a profundidade do processo. Tradicionalmente associada à estabilidade, à carreira e à valorização profissional, a educação pública passa a incorporar dispositivos da lógica flexível. A contratação por tempo determinado, sem garantias, torna-se regra em muitos estados. Mais grave, porém, é quando o próprio movimento sindical – historicamente defensor de direitos e da estabilidade – adota essa nomenclatura e a utiliza em suas pautas. A luta por melhorias no contrato eventual, e não sua extinção, sinaliza um deslocamento ideológico que aproxima o sindicato da lógica do capital.

O professor eventual nas políticas educacionais dos Estados

Existem inúmeros estudos sobre a categoria professor eventual, cunhada em documentos de estado, como mostra Silva (2019) sobre a experiência de São Paulo:

A resolução nº 97/2008 da Secretaria de Educação de São Paulo, permite “a atribuição de vagas para admissões em caráter eventual, sem vínculo empregatício, aos candidatos inscritos no processo [de distribuição de aulas anuais]. Esses professores candidatam-se anualmente […] são classificados de acordo com sua experiência no magistério e com seus diplomas. Os de maior pontuação recebem aulas ou classes e são contratados em caráter temporário; aos demais resta o trabalho intermitente ou eventual. Os professores eventuais não têm aulas ou classes, mas sim uma vaga em uma escola para substituir professores. Eles são formados em diferentes campos disciplinares e alguns ainda são estudantes universitários, não sabem em que horários trabalharão nem quantas aulas ministrarão por semana ou por mês, muito menos em que disciplina trabalharão (SOUZA apud SOUZA, p.240).

Citando Aranha, Silva relata que

Os professores eventuais atuam em mais de uma escola, migrando de uma escola para outra num intuito de pegar aulas provenientes da ausência de professores titulares de disciplina. Muitas vezes o professor eventual fica com o telefone celular ligado esperando que alguma escola o chame para substituir algum professor. […] quando não está substituindo um professor responsável por disciplina ausente, aplica seu tempo em fazer serviços bancários para a escola, uma espécie de office boy. Também, não raramente, o eventual se submete a fazer serviços diversos dentro da escola, tirar fotocópias, ajudar a olhar alunos no pátio, acompanhar alunos em passeios, organizar festas na escola ou torneios esportivos (Freitas apud Silva, 2019, p.242)

Vemos que o conceito invocado por integrantes de chapa para (des)classificar professores ACTs como eventuais acelera o processo em curso de desmonte da educação. Como demonstra Silva, baseado em Freitas, há uma clara tendência para

a “charterização e a uberização” como formas destruidoras de profissões, afirmando que é muito provável que a uberização avance pelas “charters online”: escolas que distribuem conteúdos e que usam “tutores” online para apoiar os estudantes em seu estudo, seja quando estão na plataforma de aprendizagem, seja fora dela, sob demanda. (Freitas apud Silva, 2019, p.242).

Embora esse conceito de “eventualidade” seja utilizado em um sentido um pouco diverso dentro das eleições sindicais do SINTE-SC, ao legitimar a precarização do trabalho docente por meio da flexibilização dos contratos, se envolve com a lógica descrita acima, contrariando a razão de ser do sindicato como instrumento de organização da luta dos trabalhadores.

Conclusão: Sindicato ou Gestor da Precariedade? O discurso sindical macabro na subalternização dos trabalhadores e a urgência de uma nova organização independente, classista e construída pela base

A categoria “ACTs Eventuais” não representa um desvio isolado na prática sindical, mas integra um projeto político do capital, mais amplo, cujo objetivo é fragmentar a classe trabalhadora e naturalizar a exploração estrutural. Ao reproduzir hierarquias internas que segregam professores temporários entre “merecedores” e “não merecedores” de direitos, o sindicato em questão deixa de cumprir seu papel histórico de resistência contra-hegemônica, tornando-se instrumento funcional à lógica do capital. Instala-se, assim, uma condição macabra: o espaço que deveria ser de organização da luta de uma categoria social fundamental transforma-se em um ambiente de exclusão, em que práticas sindicais reproduzem a barbárie contra os próprios trabalhadores que deveriam defender. Essa inversão de sentido corrompe o propósito do sindicato; ele torna-se gestor da precariedade, abandonando a tarefa crucial de enfrentá-la.

Essa dinâmica evidencia uma crise profunda: entidades que deveriam defender a unidade da categoria alinham-se a discursos que legitimam a flexibilização e a fragmentação do trabalho. Diante desse cenário, o horizonte de luta exige a reconstrução da organização sindical com base na solidariedade de classe, rompendo com alianças que subordinam os trabalhadores a interesses burgueses. É urgente combater não apenas as políticas governamentais de precarização, mas também as estruturas discursivas que transformam direitos coletivos em privilégios condicionais. A crítica ao termo “ACT eventual”, por exemplo, revela como a linguagem pode naturalizar a desresponsabilização do Estado e a mercantilização da educação.

A luta, portanto, não se limita à esfera institucional: ela depende da mobilização direta da base, da rejeição a projetos que hierarquizam os trabalhadores e da recuperação do sindicalismo como ferramenta de emancipação coletiva. Somente assim será possível reverter a atual correlação de forças e construir uma educação pública verdadeiramente democrática, distante das garras do capital.


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.


Referências

BRASIL DE FATO. Em SC, 27% dos trabalhadores da educação já tiveram pensamentos suicidas, diz estudo. São Paulo, 20 out. 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/10/20/em-sc-27-dos-trabalhadores-da-educacao-ja-tiveram-pensamentos-suicidas-diz-estudo/. Acesso em: 7 maio 2025.

EVANGELISTA, Olinda; KENJI, Allan. O TpE desembarca na Ilha de Santa Catarina: tecnocracia, hegemonia e a negação do magistério em Florianópolis. Contrapoder, 2025. Disponível em: https://contrapoder.net/colunas/o-tpe-desembarca-na-ilha-de-santa-catarina-tecnocracia-hegemonia-e-a-negacao-do-magisterio-em-florianopolis/. Acesso em: 7 maio 2025.

FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. 2. ed. London: Longman, 2001.

HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

NEVES, Lúcia M. W. (Org.). Esquerda para o capital, direita para o social: o novo modo de regulação educacional. São Paulo: Xamã, 2005.

SILVA, Amanda Moreira da. A uberização do trabalho docente no Brasil: uma tendência de precarização no século XXI. Revista Trabalho Necessário, Niterói, v. 17, n. 34, p. 229–251, set./dez. 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/38053. Acesso em: 7 maio 2025.

SINTE-SC. Recurso da chapa QUEM LUTA EDUCA sobre elegibilidade de professor ACT eventual: decisão da Comissão Eleitoral Regional de Florianópolis em 06 de maio de 2025. Florianópolis: Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina, 2025. Documento aprovado.

SINTE-SC. Estatuto do Sindicato dos Trabalhadores em Educação na Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina. Florianópolis: SINTE-SC, 2017.


Referências

  1. Adalberto Possui graduação em pela Universidade Federal de Santa Catarina (2010) e mestrado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (2015). É professor efetivo no Instituto Federal de Santa Catarina.
  2. E posteriormente da maioria do conselho deliberativo da entidade e também da assembleia estadual que referendou por maioria tal decisão.
  3. Tabata Amaral tem uma trajetória fortemente vinculada a organizações do chamado “terceiro setor educacional” que, na prática funcionam como tentáculos ideológicos e operacionais dos vários braços do capital dentro da educação pública. Ela é cofundadora do Movimento Mapa Educação, que surgiu com apoio e financiamento de fundações empresariais como Fundação Lemann, Instituto Unibanco, Todos Pela Educação, entre outras. Todas essas organizações compartilham uma visão gerencialista da educação, baseada em metas, avaliações padronizadas, meritocracia e gestão por resultados — e muitas vezes atuam como formuladoras, influenciadoras e implementadoras diretas das políticas públicas no setor.

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