A ousada aposta de Bolsonaro - Contrapoder

A ousada aposta de Bolsonaro

Por Daniel Monteiro

O atual presidente brasileiro, Bolsonaro, nunca escondeu sua faceta autoritária. Ao contrário, sempre fez questão de afirma-la. Há tempos, seu projeto é liderar um novo ciclo ditatorial no país. Ao chegar ao governo, deu um importante passo nessa direção. Todavia, apesar de seu ardente desejo (quase uma obsessão), ainda não conseguiu reunir as condições políticas  para tal. Falta-lhe, especialmente, o apoio da maior parte da classe dominante (e, consequentemente, de parcelas decisivas do aparato estatal burguês, como as forças armadas). Mas não há dúvidas de que, mesmo diante das dificuldades, continua a perseguir esse objetivo.

Com a explosão da pandemia do novo coronavírus, muitos acreditaram que o ex-capitão seguiria os exemplos de outros governantes de direita e de extrema-direita [1] e, com a justificativa de combater a doença, restringiria de modo mais acentuado as liberdades democráticas e concentraria poderes em suas mãos. Seria uma forma de avançar na trilha autoritária, com alto respaldo popular.

Porém, Bolsonaro adotou um caminho diferente. Chamou o vírus de “gripezinha” e conclamou a população – com exceção dos grupos de risco – a não ficar em isolamento social. Seu bordão, repetido desde então, é: “a economia não pode parar”. Num primeiro momento, esteve alinhado com Donald Trump, que também minimizava a epidemia. No entanto, após o presidente estadunidense mudar de atitude, reconhecendo a gravidade do problema, o chefe do governo brasileiro manteve a postura negacionista. Qual é o seu objetivo? Burrice pura e simples? Aposta na explosão de casos – o “quanto pior, melhor” – para, em meio ao caos daí resultante, angariar apoios para um golpe?

Uma aposta ousada

Unificada em torno do ajuste fiscal, da retirada de direitos e do socorro com fundos públicos aos grandes negócios, a classe dominante está dividida em relação às medidas sanitárias de enfrentamento ao Covid 19. Parte significativa dela considera que são necessárias iniciativas duras e imediatas de combate ao vírus, para evitar a explosão de casos (com perdas imensuráveis na cadeia de acumulação de lucros e possíveis levantes populares contra os poderes estabelecidos) e garantir um retorno mais breve à “normalidade” (do processo de acumulação capitalista, não a volta aos padrões de vida social anteriores) [2]. Os meios de comunicação coorporativos tradicionais (Globo, Folha de São Paulo etc.),  o STF e a maioria dos governadores e do Congresso Nacional estão alinhados com esse setor. Outra parcela, minoritária, não quer medidas pesadas contra a doença, que tenham efeitos econômicos drásticos [3]. Estão em sintonia com tal parcela, por motivos diferentes, a minoria dos governadores e congressistas, os fundamentalistas religiosos [4] e vários grupos de extrema direita.

O setor da classe dominante adepto do enfrentamento duro ao Covid 19 não ficou parado. Começou a adotar iniciativas por conta própria, independentemente do governo federal.

Diante desse cenário, e levando em conta a queda de popularidade e as dificuldades políticas experimentadas antes da crise do coronavírus, Bolsonaro decidiu arriscar. Escolheu apostar que a pandemia terá um impacto reduzido, em relação à crise econômica (que já vinha de antes, vai se agravar e vai continuar após o fim da epidemia). Conta com um número “pequeno” de mortes [5], sem maiores colapsos nos sistemas funerário e de saúde, num país (mal) habituado a conviver anualmente com milhares de óbitos por conta da violência urbana, de acidentes de trânsito e de doenças curáveis [6]. Ônix Lorenzoni e Osmar Terra, duas figuras próximas ao presidente,  revelaram em conversa vazada a opinião de que devem morrer “entre 3 e 4 mil”, “ menos gente de coronavírus do que da gripe sazonal” [7]. Em outras palavras, o ex-capitão acredita que o descalabro econômico (desemprego em massa, falência de pequenos negócios etc.) terá um efeito muito maior do que o Covid 19 no ânimo das classes sociais.

Espera então jogar a responsabilidade da crise econômica nos adversários (Globo, Folha de São Paulo, STF, Congresso, esquerda…), que teriam impedido sua gestão de adotar as medidas corretas, entre elas, o isolamento vertical; aumentar seu apoio popular, que está em queda hoje; e ganhar credibilidade junto ao conjunto da classe dominante. Fortalecido, num contexto de grave degradação econômica e social, aguardará um pretexto, real (um levante  de massas contra as péssimas condições de vida) ou forjado (um atentado terrorista fabricado por seus apoiadores e atribuído à esquerda, por exemplo), para ganhar a classe dominante para a saída ditatorial.

Vale notar que tal escolha não foi feita ao acaso. Foi condicionada. Buscou manter a conexão com o núcleo duro da base social bolsonarista. Mais do que isso: procurou  ativa-lo, num momento em que esta estava na defensiva. A outra opção provocaria uma desmobilização desse setor, que constitui o principal patrimônio político do ex-capitão.

Equilíbrio instável

O presidente pagou um preço por sua escolha. Sofreu ataques frequentes dos principais veículos tradicionais da mídia coorporativa. Perdeu apoio no Congresso Nacional, no STF e entre os governadores. Sua popularidade diminuiu. Passou a ser alvo de panelaços intensos e constantes.

Isolado, mas firme em sua aposta e contando ainda com um expressivo apoio popular [8], aceitou negociar [9]. Os militares entraram em cena, como já tinham feito em outros momentos na atual gestão, para mediar o conflito no andar de cima. Chegou-se à fórmula: “governo tutelado, mas presidente liberado para falar o que quiser”. O comando operacional do executivo federal foi transferido para os militares, coordenados pelo General Braga Neto [10]. Bolsonaro passou a engolir medidas que discordava – particularmente do então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta [11] -, ligadas à ala não negacionista da burguesia. Em troca, ficou livre para defender publicamente suas posições negacionistas, mobilizando sua base social e dialogando com a população em geral.  Esse pacto, que ainda está em vigor, reflete uma situação de impasse, em que o ex-capitão é fraco demais para dar sozinho as cartas, mas forte o suficiente para não ser retirado do governo.

Para Bolsonaro, o acordo foi uma forma de ganhar tempo, sem comprometer seu plano original. Para o setor não negacionista, um meio de garantir um mínimo de combate à pandemia e de colocar o presidente nas cordas.

Todavia, esse equilíbrio é instável, transitório. O seu desenlace ocorrerá à luz da gravidade da pandemia no Brasil e da luta de classes. Se a epidemia for muito grave, como tudo até o momento indica, Bolsonaro será responsabilizado pela tragédia. Sua popularidade vai desmoronar e seus apoiadores vão perder fôlego. Frente às inevitáveis comoções das massas, a ala não negacionista da burguesia vai sacrificá-lo como bode expiatório, via impeachment ou renúncia forçada, para aplacar a ira popular.  A chamada “solução Mourão” – uma saída por dentro da institucionalidade – tenderá a se impor, podendo assumir, dependendo da dinâmica das lutas sociais, desde um caráter de unidade nacional até um perfil claramente ditatorial. Enfraquecido, o ex-capitão vai se colocar como vítima de um complô, como fizeram Dilma e o PT, para tentar manter parte de sua base social. Não terá condições, ao menos momentâneas, de desferir seu tão sonhado golpe.

Se a hipótese bolsonarista se confirmar e o impacto da pandemia for menor do que o previsto, já sabemos a dinâmica dos acontecimentos.  

Nos dois cenários, as perspectivas são sombrias, com redução de direitos e das liberdades democráticas. A única saída progressiva passa pela mobilização da classe  trabalhadora e da juventude contra a ordem vigente, tendo como horizonte a construção do socialismo.  

Notas:

[1] O húngaro Viktor Orbán, por exemplo, está governando por decretos, graças ao Estado de Alarme aprovado pelo parlamento, e estabeleceu a pena de prisão para aqueles que espalharem “notícias falsas” sobre o Covid 19 (https://jacobin.com.br/2020/04/viktor-orban-esta-usando-a-pandemia-para-silenciar-a-oposicao-e-demonizar-as-minorias/). Já o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, outro ícone da extrema direita mundial, orientou as forças militares a atirarem para matar nas pessoas que não estiverem em quarentena, em resposta a protestos populares exigindo ajuda governamental aos mais pobres (https://exame.abril.com.br/mundo/presidente-das-filipinas-autoriza-atirar-em-quem-atrapalhar-a-quarentena/).  

[2] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/01/coronavirus-empresas-publicidade-isolamento-social-covid-19.htm

[3] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/24/empresarios-coronavirus-o-que-dizem-criticas.htm. Vale notar que vários desses empresários foram apoiadores de primeira hora de Bolsonaro.

[4] O pastor Silas Malafaia, por exemplo, afirmou em um culto: “Não vou fechar igreja coisíssima nenhuma”. O missionário R.R Soares, da Graça de Deus, disse que a população “não precisa ter medo de jeito algum do coronavírus.” Já o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, defendeu que “ao invés de você ler essas notícias que falam de morte e de quarentena, da epidemia e pandemia, olhe para a palavra de Deus e tome sua fé na palavra de Deus, porque essa, sim, faz você ficar imune a qualquer praga e a qualquer vírus, inclusive o coronavírus”: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51920196

[5] Ironicamente, conta com o sucesso das medidas aplicadas pela ala não negacionista das classes dominantes, via prefeituras, governos estaduais e imprensa.

[6] Em 2017, morreram 34.236 pessoas em acidentes de trânsito e atropelamentos no Brasil (https://g1.globo.com/especial-publicitario/inovacao-em-movimento/ccr/noticia/2019/05/22/brasil-reduz-mortes-no-transito-mas-nao-deve-bater-meta-da-onu.ghtml) . Em 2019, 41.635 pessoas foram assassinatos no país (https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/02/14/numero-de-assassinatos-cai-19percent-no-brasil-em-2019-e-e-o-menor-da-serie-historica.ghtml). Vale notar que tais números foram celebrados como avanços, pois ficaram abaixo dos registrados nos anos anteriores.

[7]  https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/04/09/onyx-e-osmar-terra-discutem-saida-de-mandetta

[8] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/17/para-64percent-bolsonaro-agiu-mal-ao-demitir-mandetta-diz-datafolha.ghtml

[9] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/isolado-bolsonaro-chora-e-busca-apoio-entre-militares-contra-crise.shtml

[10] https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/acordo-das-forcas-armadas-coloca-braga-neto-como-presidente-operacional/

[11] Não é o caso aqui de fazer uma avaliação mais detida sobre a exoneração de Mandetta. Todavia, tudo indica que ele cavou a demissão, saindo como herói/ vítima antes do pico da pandemia, e que o seu substituto terá muitos mais pontos de continuidade do que de ruptura em termos do enfrentamento ao coronavírus.  

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