Tá difícil de respirar, mas não são as máscaras caseiras ou cirúrgicas que sufocam, é o sistema e seu conjunto de coisas absurdas. Num dia você dorme com uma notícia ruim e no outro já acorda com o coração saindo pela boca. Imagino que seja assim que esteja a mãe de Miguel.
Sem coração, imagino que seja a patroa da mãe de Miguel. Ela fazia as unhas enquanto a sua empregada doméstica passeava com seu cachorro. Fico me perguntando quantos erros cabem nessa cena, certamente bem mais do que no jogo dos sete erros. Mas um, apenas um resume. Miguel morreu de negligência por ser uma criança negra, filho de empregada. É racismo o nome disso. Essa palavra que tantos negam, esse problema que já anunciaram ter sido abolido, mas permanece gritando e matando vidas negras. Ainda choramos por João Pedro, por George e tantos outros e agora mais um. Miguel. 5 anos.
A patroa que não vivencia o pior da pandemia de Covid-19 e submete outras mulheres a riscos, para lavar a sua sujeira ou limpar as suas unhas, representa quantas patroas do Brasil da ‘democracia racial’? Outro dia, vendo os protestos na tevê, fiquei pensando, estamos numa fase tão ruim, mas tão ruim da história, que gritamos DEMOCRACIA como palavra de ordem. E em um mundo gerido pela desordem do Capital, Democracia significa mesmo muita coisa, não é? Ou quase nada?
Queria gritar para essa patroa maldita que a mãe de Miguel também deveria ter o direito de ficar em casa, que a manicure dela também deveria estar em casa, que todos os serviços não essenciais deveriam estar parados. E a mania de Sinhá que ela carrega em seus hábitos somente é essencial ao seu umbigo e à sanha do Estado genocida. Aliás, quantos trabalhadores do serviço essencial são negros? Fizeram as contas? Novamente maioria? Quantos não têm casa e são negros? Vocês fizeram essa maldita conta? Quantos entregam os seus deliverys e são negros? Quantos estão presos e jogados à própria sorte e são negros? Quantas das mortes de Covid-19 são de pessoas negras? Calcularam? As notícias sobre a pandemia quase não têm cor, nem gênero, nem classe. Mas a gente sabe quem está morrendo mais, não sabe?
Miguel estaria no colo de sua mãe ou brincando se não tivesse sido abandonado sozinho no elevador. As pessoas são racistas ao ponto de achar que uma criança negra se vira sozinha. É isso mesmo? Ainda está rasgando enquanto as palavras ocupam as linhas, tá rasgando por dentro e não tem como ser diferente. Miguel não morreu por conta da pandemia, morreu por conta de uma sociedade decadente. Tão decadente quanto a patroa. Homicídio culposo? Homicídio por culpa, culpa de um sistema que condena umas aos deleites de outra. Egoísmo nojento e mesquinho. Nem mesmo uma pandemia fez essa mulher parar de achar que alguém teria que fazer os seus serviços domésticos e de beleza. Deve ser alguém, aliás, sem um pingo de beleza. Sem um pingo de gente por dentro. O choro do garoto incomodou a patroa, então melhor que ele fosse SOZINHO em busca de sua mãe, que levara Miguel ao trabalho porque a creche está fechada devido à pandemia. Mas a louça precisa ser lavada e o apartamento luxuoso precisa ser varrido. Miguel foi condenado tal qual outras crianças a ter menos carinho e menos tempo de sua mãe para ele porque era preciso garantir o sustento antes. Mesmo que não haja nada que possa sustentar um baque desse. A pandemia tem dito muito sobre coisas que estavam talvez mais escondidas, não é? A mãe de Miguel, o corpo negro. A dor, a alma negra. Queria botar essa mulher no colo porque nada pode ser mais cruel para uma mãe do que a dor de nunca mais poder ter em seus braços o seu filho.
Miguel. O nome que teria escolhido para um filho meu. Miguel morreu cedo demais e era só um menino. Uns dirão que Miguel vai virar anjo, gostaria mesmo que ele virasse um Erê e nos ajudasse a tocar fogo no sistema racista. Miguel, que a gente só passou a conhecer porque morreu enquanto sua mãe passeava com o cachorro da patroa. Sua mãe que não pôde ficar em casa, porque tinha outra casa para cuidar. À mãe de Miguel, todo amor. À patroa homicida sentimento algum além do desprezo.
A luta antirracista é urgente. Justiça para Miguel!
Bárbara Nascimento, jornalista. 5 de junho de 2020.