André L. A. Miguel *
Nas últimas semanas vimos a escaladas do preço dos alimentos básicos no país todo. O MST segurou o preço dos seus alimentos nos pontos onde comercializa diretamente entre as suas cooperativas e os consumidores. Trocou uma margem maior pela publicidade dos seus produtos e aproveitou para mostrar o compromisso social no fornecimento de alimentos. Uma decisão política, como são todas as decisões da vida, desde a individual, na escolha daquilo que compramos para nos alimentarmos, até a orientação das políticas nacionais que influenciam a produção, armazenamento, transporte e comercialização de alimentos no país. E foram justamente das políticas nacionais, ou mais precisamente do desmonte das políticas existentes e mesmo da ausência histórica de algumas delas, a culpa pela variação nos preços dos alimentos que colocam em risco a capacidade das famílias, especialmente as de mais baixa renda, de terem acesso à uma alimentação de qualidade.
A divisão internacional do trabalho, coloca historicamente para o Brasil o papel de exportador de commodities agrícolas e minérios. Depois dos ciclos da madeira, ouro, açúcar, borracha e café, hoje a pauta de exportações é composta majoritariamente pelo complexo soja (soja grão, farelo de soja e outros derivados), petróleo, minério de ferro, celulose, milho, complexo carnes, café e suco de laranja. Mas pior que exportar apenas produtos primários é não ter no país uma política estruturada e efetiva que garanta Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional para nossa população. Em resumo, não temos planejamento nem ações de incentivo ou regulação que garantam que nossa população vai ter alimentos de qualidade disponíveis. Estamos à deriva, sensíveis às pressões e lobbies de todo tipo.
Com o câmbio depreciado – outra decisão política – nossa pauta de exportação passa a ser mais atrativa no mercado e remunera melhor os produtores de commodities. Soma-se ao fator câmbio a disputa comercial entre EUA x China, que influencia também as cotações em dólar das commodities. No campo, os produtores de grãos recebem hoje, em reais, o dobro pela saca de soja do que recebiam a pouco mais de um ano atrás. Nessa situação o primeiro impulso de quem planta é tentar aumentar a área plantada. Isso pode ser feito de duas maneiras, desmatando e avançando sobre as áreas de floresta que ainda ocupam a maior parte do país (agora sem muita preocupação com uma repreensão vinda de Ricardo Salles ou Bolsonaro) ou convertendo em áreas de cultivo das commodities as áreas ocupadas com outras culturas como pastagens – que é o caso mais relevante -, mas também sobre as áreas de arroz, feijão, frutas e hortaliças.
Em uma manifestação recente, quando o preço do arroz disparou nas prateleiras, as organizações nacionais representativas do setor do arroz comemoraram o resultado de levantamento informando que seria muito pequeno o aumento de área cultivada no país, o que muito provavelmente manteria os preços elevados e a rentabilidade das lavouras. Um completo absurdo, mas evidencia também a falência das políticas nacionais destinadas à agricultura e à produção de alimentos importantes na nossa matriz alimentar.
Os agricultores, mesmo os familiares, sem políticas efetivas que os protejam dos intempéries climáticos, flutuações de preço de insumos e dos seus produtos na comercialização, lhes garantindo uma renda mínima, acabam cedendo e abandonando a produção de alimentos para se integrar ao processo de produção de commodities, na esperança de conseguir uma renda e qualidade de vida próximas daquilo que os trabalhadores da cidade conseguem. A crise atual do campo é profunda, com um forte êxodo rural em curso, associado a processos de envelhecimento e masculinização da população rural, que em poucos anos podem agravar e muito a produção de alimentos no país.
Não bastasse a insegurança fruto da ausência de políticas capazes de garantir alimentos básicos a preços acessíveis para toda a população, o modus operandi de “passar a boiada” segue a todo vapor, desmontando as poucas políticas e conquistas conseguidas com muita luta nas últimas décadas. Não bastasse a extinção por decreto do CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional-, espaço que permitia o controle social das políticas que envolvem a alimentação no país, o Ministério da Agricultura ameaça agora o Guia Alimentar para a População Brasileira, pedindo que seja suspenso. O Guia, que foi lançado em 2014 e aclamado mundialmente como um dos melhores guias alimentares existentes, tendo como linha central a orientação para que a população consuma “comida de verdade” – alimentos in natura ou minimamente processados – e evite produtos ultraprocessados. Até que demorou para que a indústria alimentícia percebesse a sensibilidade do governo aos lobbies e o interesse em desmontar todo tipo de regulamentação existentes nos mais diferentes setores. Esta é mais uma batalha, certamente muitas outras ainda virão nos próximos anos por meio de lobbies dos mais diferentes setores, percebendo que o governo tem as portas abertas.
Garantir uma alimentação adequada e saudável, um direito humano básico segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira, para toda a população brasileira exige mais do que a construção de uma política nacional – que já ensaiamos mas que foi desmontada em alguns meses -, exige um projeto de país que entenda e se preocupe com todos os atores envolvidos da produção ao consumo. Um grande desafio a ser enfrentado para assegurarmos a nossa própria existência nas próximas décadas.
André Miguel é engenheiro agrônomo, produtor orgânico e extensionista rural no Paraná.