Por: Francisco Pinto
A MP 1.031, que propõe a privatização da Eletrobras (MP do Apagão), foi encaminhada ao Congresso logo após a polêmica causada pelos seguidos aumentos nos preços dos combustíveis e pela substituição dos administradores da Petrobras. Enviada à Casa Legislativa com a intenção de acalmar o “mercado”, caso seja aprovada, a MP deve provocar no setor elétrico problema similar ao que hoje ocorre com os combustíveis, causando elevação e uma maior volatilidade das tarifas.
Entusiasta da privatização, o governo encontra dificuldade para conciliar os desafios estruturais colocados pela grave crise econômica do país, que deve ser agravada caso a medida seja aprovada, com as demandas dos grupos de interesse que dão sustentação à proposta. Tanto as questões estruturais quanto os embates na superestrutura passam pela discussão acerca da descotização das usinas da Eletrobras e pelos impactos sobre o grau de concentração de mercado resultante da privatização da Eletrobras.
Descotização é o nome que se dá à mudança do regime de concessão de usinas e linhas de transmissão mais antigas da Eletrobras. Por serem considerados ativos já amortizados, a empresa recebe pela operação e manutenção desses ativos uma tarifa muito inferior aos preços praticados no mercado. Enquanto a energia dessas usinas administradas pela Eletrobras é vendida por cerca de R$60/MWh, a média do preço praticado pelo mercado supera os R$250/MWh.
Parte do debate que vêm sendo travado na câmara se debruça sobre a tentativa de administração desse impacto. Os entusiastas da proposta nos moldes da MP 1.031 defendem que a descotização de todas as usinas aconteça o quanto antes, enquanto o governo tenta evitar a ocorrência de mais um tarifaço antes das eleições de 2022. Por isso, o governo tenta negociar uma descotização em etapas, na expectativa de diluir os impactos da medida. Além disso, propõe também o direcionamento de parte do valor arrecadado com as outorgas recebidas pela renovação das concessões das usinas para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), abrindo uma brecha para que esses recursos sejam usados para aliviar o efeito nos preços no curto prazo e para compor fundos regionais. Assim, o momento e a intensidade do impacto nas tarifas de energia elétrica resultante da descotização ainda está para ser definido, mas, diluído ou concentrado, não há dúvida que irá produzir acréscimo na tarifa de energia, que já é a segunda mais cara do mundo, quando medida pelo método da paridade do poder de compra.1
Esse tarifaço, consequência da aprovação da MP do Apagão, será apenas uma parte do problema. Isso porque a descotização deve promover também um aumento da volatilidade nos preços de energia. O fim das cotas significa direcionar a energia barata que hoje é negociada no Ambiente de Contratação Regulado (ACR) – que fornece energia a 70% da população, entre consumidores residenciais, pequenos comerciantes e indústrias de menor porte – e destiná-la para o Ambiente de Contratação Livre (ACL). Com isso, além de promover uma alta nos preços residenciais, a medida pretende incentivar a migração de consumidores para o ACL, onde a volatilidade é maior e não é raro ocorrer variações de mais de 100% dos preços em intervalos de uma semana2.
A destinação dessa energia para o ACL, ao propiciar a ampliação da liquidez nas negociações no “mercado livre” em detrimento do regulado, atende aos interesses de comercializadoras de energia (bancos que atuam na intermediação de contratos) e de grandes consumidores de energia (como a indústria eletrointensiva e os shoppings centers). Dessa forma, o projeto constante na MP, e a defesa da descotização nela prevista, agregam os interesses tanto de instituições financeiras que ambicionam ampliar sua atuação na comercialização de energia quanto o dos industriais e grandes consumidores de energia elétrica, que acreditam que se beneficiariam da ampliação da oferta de energia nesse ambiente de negociação. Além deles, os fundos de investimentos interessados nos ganhos obtidos diretamente com o processo de venda da Eletrobras e com a valorização de suas ações também se inserem neste grupo.
Esse quase consenso na superestrutura em torno da proposta e as dificuldades colocadas pela aproximação das eleições explicam a aposta no espírito “ou vai ou racha” do governo, com a edição de uma MP em regime de urgência, que precisa ser votada até o final de junho de 2021 para não perder a validade. Essa aposta reflete também a dificuldade anterior de encaminhamento via projeto de lei, que se deve em grande medida a conjuntura ter se mostrado seguidamente adversa, tendo em vista a complexa tarefa de conciliar os interesses regionais representados na câmara e senado e os desafios estruturais colocados pelo aumento de tarifas.
Neste embate que se dá na superestrutura, a exceção é o setor mais tradicional, ligado às empresas que atuam no setor elétrico, que têm manifestado certa preocupação com a MP do Apagão. Essa preocupação se justifica pelo temor das empresas de serem atropeladas por esse novo grande player privado. Por isso, reclamam que a MP mantém a alta concentração no mercado de energia elétrica e reverberam críticas sobre os riscos associados à grande influência que uma Eletrobras privada teria sobre os preços da energia elétrica, caso o modelo atual seja levado adiante.
Alguns dos pontos levantados por esse setor merecem atenção. Para se ter uma medida do tamanho da Eletrobras, basta observar que a empresa detém cerca de 30% da capacidade instalada do segmento de geração e mais de 45% no segmento de transmissão. A segunda e terceira maiores empresas do segmento de geração, a francesa Engie e a chinesa CTG, representam 6% e 5%, respectivamente, do mercado de geração. A capacidade instalada de geração da Eletrobras é superior à soma das nove maiores empresas do país atuantes nesse segmento, o que revela o alto grau de concentração dessa indústria.3
É certo que a privatização da Eletrobras vai criar a maior comercializadora de energia do setor elétrico, com grande poder de mercado e influência sobre a trajetória dos preços da energia elétrica. É nessa linha que está montada a defesa, por parte das empresas do setor interessadas nos ativos da Eletrobras, de um modelo alternativo de privatização, em blocos, com a venda de usinas e linhas de transmissão de forma separada, que, segundo argumentam, evitaria a grande concentração e tornaria o setor mais competitivo, além de ter maior potencial de arrecadação de recursos para o governo.
Essa preocupação, que expõe parte das disputas no interior da burguesia, ignora os principais riscos que decorrem da privatização, seja qual for sua forma, como o aumento das tarifas e de sua volatilidade e aspectos ligados à importância estratégica da Eletrobras.
Essa importância estratégica fica mais clara quando se observa que hoje, no Brasil, à semelhança do que ocorre em todos os países com forte participação de fontes de base hidrelétrica na sua matriz de energia elétrica (EUA, Noruega e Canadá), a maioria absoluta dos grandes reservatórios de água é controlada por empresas estatais (Eletrobras, Cemig, Cesp, Copel e CEEE), sendo que as usinas da Eletrobras, sozinhas, concentram mais de 50% dos reservatórios do país.
Importa notar que as usinas hidrelétricas possuem a característica peculiar de aliar a capacidade de armazenagem de energia elétrica (na forma de água) com alto grau de flexibilidade da geração. Por isso, num sistema de base hidrotérmico como o nosso, elas funcionam ao mesmo tempo como reserva de energia e estabilizadoras do sistema. A transferência para o setor privado de mais de 50% dos reservatórios de água das usinas hidrelétricas do país, em importantes bacias, será um grande salto no escuro, pois, o que para nós, consumidores, se apresenta como uma grande vantagem das hidrelétricas frente a outras fontes de energia, o mercado vê como uma oportunidade de apropriação privada de uma renda extra.
No fundo, o propósito da MP do apagão é permitir a apropriação privada de gigantescas rendas extras oriundas de ativos estratégicos, em especial da renda hidráulica, em um processo que acarretará necessariamente no aumento das tarifas de energia elétrica e em sua maior volatilidade, no crescimento da especulação, no sucateamento dos ativos, sem falar nas demissões e na precarização do trabalho, comuns aos processos de privatização.
A resistência dos trabalhadores, que tenta ganhar força a partir da sua reunião em fóruns e comitês em conjunto com os trabalhadores de outras empresas públicas sob ataque, como Petrobras, Correios e Caixa, tem o potencial de sua reação limitada tanto pelo esvaziamento dos sindicatos ocorrido nos últimos anos quanto pela gravidade da pandemia, que desencoraja a tomada das ruas. Apesar disso, a situação parece ter ganho novos contornos com o desandar da pandemia e o acirramento das contradições, tornando a tarefa de conciliação dos desafios estruturais e da concertação na superestrutura ainda mais complexos, elevando a incerteza sobre o resultado final da aposta do governo. Diante desse quadro, colocar a mobilização do conjunto de trabalhadores das estatais, dos servidores públicos e das massas pelo impeachment no centro da ação política parece ser o caminho mais promissor contra a onda de privatizações e reformas.
Referências
- https://www.iea.org/reports/energy-prices-2020 (acesso em 17/03/21)
- A variação média dos preços (para cima ou para baixo) entre uma semana e outra está acima de 15%. Em 2021, na semana de 28/11/20, o preço do submercado nordeste, por exemplo, sofreu aumento de 185%. Essa volatilidade tende a se elevar com a implantação do preço horário que já começa a entrar em vigência.
- Fonte: Demonstração financeiras das empresas (2019)