A urgência de um programa político de esquerda para a cultura.

Bruno Pacífico*

Nas últimas semanas, temos visto o aumento vertiginoso do desemprego por conta da Covid-19. Desde de 2011, o Brasil vem crescendo em número de pessoas desempregadas. A crise aberta em 2007/8 não foi fechada nem mesmo com as medidas de austeridade impostas pelo FMI e aplicadas pelos governos de centro-esquerda e de direita. A Emenda Constitucional 95 e as contrarreformas trabalhistas, promovidas por este governo e os anteriores, são exemplos de como essas medidas não solucionaram a crise e ainda aprofundaram a precarização da classe trabalhadora. Diante deste cenário, a Covid-19 é apenas um acréscimo de dano ao sistema financeiro e produtivo do capitalismo.

Tudo isso afeta, de maneira direta, trabalhadores da cultura (artistas, produtores culturais, técnicos do setor) que representam 2,64% do PIB nacional e é uma das categorias mais atacada pelos governos capitalistas. Além da censura, agora, em meio à pandemia, trabalhadores da área estão enfrentado ajustes por parte do atual governo de extrema direita. Deste modo, é preciso um programa político-econômico que mude esta realidade dos trabalhadores da cultura. Antes de falarmos deste possível programa, precisamos escalonar os problemas enfrentado pelo setor da cultura no capitalismo.

No Brasil, a área cultural nunca passou pela necessária transformação estrutural. O acesso à cultura sempre foi tratado com pouco respeito. A contribuição para a cultura recebe, ou recebeu, o mínimo de investimento – tanto no governo atual quanto nos anteriores –, somente para garantir aos governos que não perdessem o completo respeito desta categoria que é policlassista. Assim, ela também serve como uma espécie de moeda eleitoral.

Ao fazermos um balanço sobre os investimentos no setor cultural brasileiro, vemos que foram pouco efetivos. Podemos citar os programas de incentivo à leitura e os pequenos investimentos em bibliotecas de cidades do interior do país. Estes nem de longe garantiram a aceleração do desenvolvimento da leitura no Brasil. Vemos aí uma boa explicação para o abismo que há entre leitores e produtores de literatura, como mostram os números da última pesquisa realizada, em 2016, pelo instituto Pró-Livro, para saber quanto há de leitores no país. A pesquisa indicou que 43% dos brasileiros não leem por falta de tempo. Contudo, entre os passatempos que os entrevistados citaram, ler um livro (papel ou digital) não aparece à frente de assistir televisão ou filme, ouvir música, usar o whatsapp ou ler jornal. Os dados estão disponíveis no site www.prolivro.org.br. A pesquisa também indicou que a brasileira e o brasileiro leem, em média, o equivalente a 4,96 livros por ano. A Bíblia foi citada como o gênero mais lido entre aqueles que não estão estudando, sendo citada por 50% dos entrevistados com este perfil.

Já a matéria do jornal especializado no mercado de livros no país, o Publish News do dia 10 de dezembro de 2018, mostra um dado impactante: o número de livrarias fechadas nos últimos doze anos é superior a vinte mil unidades em todo o país. Estes dados podem ser associados aos ínfimos aumentos salariais e aos crescentes cortes de investimento na educação pública, desde 2015. Este ano, a educação começou com cortes de 20 bilhões e, em meio à pandemia, houve cortes de 50% nas bolsas para pesquisadores da área da ciência. É importante reafirmar que a cultura e a educação são áreas indissociáveis e que são afetadas por mudanças na economia, pois baixos salários e cortes na educação têm potencial para afetar o acesso à cultura de modo geral. E, especificamente, afeta a venda de livros tanto pela queda do potencial aquisitivo quanto pela não formação de novos leitores. Tudo isto, além de afetar uma parte do mercado de livros, afeta diretamente os que mais precisam e não possuem amparo ou direitos trabalhistas: autoras e autores de ficção, poesia e demais gêneros literários.

Neste momento de crise do Covid-19, trabalhadores da cultura estão passando por uma situação difícil, assim como os trabalhadores autônomos, sem espaços e público para suas apresentações. Nesta situação podemos ver esses problemas estruturais na cultura de maneira escancarada. As medidas anunciadas pela secretaria especial da cultura, há cerca de cinco semanas, não suprem as necessidades emergenciais que ajudariam a cultura durante a pandemia, como mostra a nota do site Le Monde Diplomatique Brasil, do dia 15 de abril. As perdas de arrecadação podem ser maiores que 100 bilhões de reais. Especialistas indicam que a linha de crédito subsidiada não é o suficiente. O setor cultural empregava cerca de 5,8 milhões de pessoas, segundo dados do IBGE de 2018. A preocupação é manter as empresas do setor e impedir a falência delas (Folha Press, 04/04/2020).

Para melhor compreender a importância do investimento público na cultura brasileira, podemos partir do exemplo dos Estados Unidos, onde a cultura está intimamente atrelada ao mercado. Em casos como este, a produção cultural de um país sofre bastante à espera de financiamento público, principalmente, em situações de crise no sistema financeiro. O investimento público em cultura nos EUA é, atualmente, baixíssimo. A matéria do jornal liberal Folha de São Paulo, do dia 03 de abril deste ano, mostra que a Indústria Cultural norte-americana (de Hollywood à Broadway) espera por um “Plano Marshall” para salvá-los. Isto porque, no período de vigência do “Plano Marshall” – após a Segunda Guerra Mundial – houve financiamento cultural massivo, que empregou milhares de artistas de diversas áreas (plásticas, literatura, música, atuação) através da criação da agência “Work Progress Administration”. A ilusão do setor com o Plano Marshall se baseia no fato de que naquele período, o setor cultural recebeu o maior investimento na história do país, germinando figuras como Orson Welles (diretor), Henry Miller (escritor), Jackson Pollock (pintor), entre outros e outras. Contudo, é importante ressaltar que o Plano Marshall não serviu como um plano benéfico para ajudar a cultura ou a reconstruir a Europa no pós-guerra, mas teve a intenção (no fundo) de reciclar a economia capitalista. Tal plano aparece num contexto de crise do sistema. O Plano Marshall apresentou uma política anticomunista, pois seu objetivo era abafar a oposição internacional ao expansionismo imperialista norte-americano. Isto teve a ver com o fato da União Soviética ter saído da Segunda Guerra relativamente fortalecida. No entanto, a própria URSS, ao mesmo tempo, permitiu a reconstrução europeia através do pacto social contrarrevolucionário, em que os Partidos Comunistas contribuíram com a reconstrução do capitalismo.

Sobre o atual momento, o governo Trump não deu qualquer passo para efetivar algum plano capitalista para o setor cultural do país. Somente as perdas previstas pelo Metropolitan, um dos museus mais visitados do mundo, chegam ao patamar de 100 milhões de dólares. Também chega a este patamar as perdas de bilheteria na Broadway – com cerca de 30 produções. É importante ressaltar que nos Estados Unidos, a indústria do entretenimento representa a segunda fonte de arrecadação econômica, perdendo somente para o setor de tecnologia aeroespacial. Os cálculos indicam que as perdas no mercado da cultura serão, em alguns casos, irreversíveis e muito maiores do que o impacto da crise aberta em 2008. Predomina hoje, assim como em 2008/10, a intervenção estatal capitalista para a manutenção das multinacionais, dos bancos e do sistema financeiro. Daí vem a necessidade de mantermos a cultura distante dos interesses puramente mercantis e incentivar a participação do dinheiro público no financiamento da sua própria cultura. Outra questão importante e que deve ser debatido à completa exaustão: abandonar a ideia de que trabalhadores da cultura são um grupo privilegiado. Esta ideia é alimentada pela ideologia burguesa, principalmente, por quem detêm os meios de produção cultural, que assim marginalizam o trabalho de quem sobrevive produzindo arte. Se ficarmos com o exemplo dos EUA, vemos o quanto esta questão ideológica atrapalha o desenvolvimento da cultura e a sobrevivência dos artistas.

A matéria da Jacobin Brasil, do dia 12 de abril, expõe algumas destas dificuldades. Mostra como cada vez mais temos visto trabalhadores da área fazendo queixas por conta da falta de dinheiro. Músicos que apesar da fama, continuam trabalhando em outros empregos para fecharem as contas. Autores que enfrentam agentes da hipoteca, pagando as dívidas com a arrecadação de eventos freelances. Para os escritores, após a crise aberta em 2007/8, ficou mais difícil ter um espaço para escreverem suas histórias. A matéria ainda cita pesquisadores, como Astra Taylor, demonstrando a importância do incentivo público aos artistas; um dos principais incentivos para afastar a manifestação cultural do monopólio das grandes corporações é a intervenção política. Esta intervenção garante que a cultura seja democrática, ampliando o acesso tanto às ferramentas de criação, quanto para a sua distribuição. Ainda assim, devemos acrescentar que é preciso dizer algo mais profundo sobre esta questão: temos que defender investimentos estatais em cultura, pois deste modo, os artistas poderão produzir mais livremente, do que neste momento em que ainda estão amarrados ao capital.

Com pandemia da Covid-19, os relatos de trabalhadores culturais sem dinheiro para se manterem vivos se alastrou pelo mundo inteiro. De DJ’s a editores, todos estão sofrendo com a falta de um programa de salvação da produção cultural. No Brasil, além de afetar as categorias que mantem a cadeia de produção e a economia, artistas foram atingidos em cheio com o fechamento dos espaços públicos. Livrarias, teatros e cinemas foram os primeiros locais a serem fechadas após o anuncio da OMS sobre a pandemia da Covid-19.

Uma das saídas para esta crise econômica em meio à crise de saúde é a unidade desta categoria com as demais, para que possam se apoiar mesmo que cada uma tenha suas reivindicações específicas, mas que pode fortalecer a principal luta que é unificar a luta das/dos trabalhadores à das/dos estudantes, exigindo medidas que salvem a população de uma tragédia anunciada. É importante ressaltar que não podemos esperar por qualquer espontaneidade dos governos, nem por algum tipo de plano “Marshall” para salvação da nossa cultura. É preciso que a classe criativa se organize, seja em associações e sindicatos existentes, seja na criação de novas associações e sindicatos, e assim pressionar os governos estaduais e federal e assim evitar mais demissões no setor. Cerca de 580 mil profissionais que atuam na área podem perder seus empregos, segundo a Folha Press do dia 04 de abril. É lutando que estes trabalhadores da cultura podem adquirir direitos que lhes são historicamente negados Com ela podem garantir benefícios permanentes, como uma renda básica para toda a categoria. Isto poderia acabar com a renda igualada ao da linha de pobreza que a categoria recebe.

Outra medida que pode contribuir com o investimento público na cultura e demais áreas, como saúde e educação, é a suspensão da dívida (interna e externa). Grande parcela do dinheiro brasileiro vai para bancos e empresas no exterior. O montante, calculado por técnicos da Auditoria Cidadã da Dívida, alcança cerca de 1 trilhão de reais; dinheiro este que poderia ser revertido em forma de renda e em todo tipo de amparo à população. Devemos seguir na luta para derrotar este governo de Bolsonaro/Mourão e o pacote de ajustes de Guedes, que sufoca todas as categorias, explorando e massacrando ainda mais as trabalhadoras e os trabalhadores em geral. Derrubar este sistema econômico que se encontra em ruínas é uma das grandes tarefas da classe trabalhadora. Por isto, é preciso defendermos um governo dos trabalhadores e do povo, pois é o único meio de garantir não somente o direito ao pão, mas também o direito à poesia.

* Militante da CST, estudante de Letras e Mestre em Filosofia pela UFF

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