por Tariq Ali1
Tradução: Marino Mondek e Fernando de Oliveira Lúcio2
Em 1985, todos os ex-primeiros-ministros vivos da Grã-Bretanha foram convidados à 10 Downing Street (sede do governo e residência do primeiro-ministro), para marcar o 250º aniversário do edifício. Macmillan, Douglas-Home, Wilson, Heath, Callaghan e a então titular Thatcher estavam todos lá. Para quebrar o gelo, Callaghan supostamente perguntou a eles o que achavam que tinham em comum. “Falta de princípios”, respondeu Macmillan imediatamente. A podridão no topo aprofundou-se consideravelmente desde então. Thatcher entregou milhões de bandeja a seu filho em propinas por ele facilitar as vendas de armas aos sauditas. O governo de Major envolveu-se em intermináveis escândalos de interrogatórios comprados no Parlamento e outros de natureza sexual, o próprio primeiro-ministro conduziu assuntos tórridos na sede do governo, enquanto seu secretário-chefe do Tesouro, Jonathan Aitken, acabou preso por perjúrio ao negar que Riad havia acertado suas contas no Ritz Hotel em Paris.
Blair e Brown, ambos acusados de mentir sobre isenções legais para corridas de Fórmula 1 depois de uma doação de um milhão de libras de Bernie Ecclestone, passaram a se acusar mutuamente em relação ao escândalo “cash-for-peerages” (“dinheiro por títulos de nobreza”), que viu a Scotland Yard bater em várias portas ministeriais; para não falar na morte ainda não explicada do delator David Kelly e na mentira ao Parlamento sobre a invasão do Iraque. Cameron estava profundamente envolvido no escândalo do hackeamento de telefones de celebridades envolvendo a imprensa de Murdoch e sua amiguinha próxima Rebekah Brooks. Theresa May, sempre discreta quanto a suas declarações de impostos, revelou estar ligada por meio de seu marido aos esquemas de evasão fiscal dos Panama Papers.
E Jonhson? Festas no escritório durante o lockdown ou passar a mão na cabeça de Pincher não são nada comparativamente. Afirmar não saber que o notório Sr. Pincher (o líder de sua bancada) andou acariciando os traseiros de rapazes em seu clube foi uma decisão estúpida, mas seria uma infração digna de demissão? O domínio sagrado do Clube Carlton certamente já testemunhou coisa pior. A indignação espumosa dos especialistas liberais britânicos – “tóxicos”, “venenosos”, maculando “pessoas boas” de acordo com a coluna Bagehot da The Economist – faz com que nos perguntemos o que essas pessoas sabem de sua própria história.
As comparações entre Johnson e Trump sempre foram forçadas. Trump é uma novidade disruptiva que conseguiu criar uma espécie de movimento político à direita na política dos EUA: numericamente muito pequeno, talvez, mas capaz de explorar a dinâmica radicalizante criada no sistema bipartidário estadunidense graças à predominância de distritos unipartidários mantidos à base de manipulação do mapa eleitoral. Johnson – de inclinação socialmente liberal, que presidiu o gabinete mais diverso da história britânica (uma litania de oportunistas e idiotas úteis, muitos dos quais agora disputam o cargo mais alto) – é muito diferente. Estando mais para um político cafajeste da velha guarda com um toque popular, o equivalente estadunidense mais próximo seria um Chris Christie de classe alta. Johnson não tem movimento extraparlamentar. Ele surfou na onda do Brexit; não a criou.
Ver Johnson como uma excrescência populista de direita sobre a bela face da democracia liberal é categorizá-lo erroneamente. Se por um lado o Daily Mail se levantou em defesa de Johnson – “O que diabos eles fizeram?”, “Conservadores oficiais perderam suas bolinhas de gude”, “Antigo curral trabalhista se revolta contra traidores conservadores”3 –, por outro, o Daily Telegraph o tem atacado pela direita por transformar o Partido Conservador em um “partido semissocialista” com benefícios sociais típicos de “Estado máximo” e aumentos de impostos. Qualquer que seja o motivo de sua demissão, definitivamente não é uma revolta de baixo. Se Johnson tivesse tomado a iniciativa no início da semana passada e convocado uma eleição antecipada, os eleitores provavelmente teriam lhe dado uma maioria muito reduzida. Há boatos de que a rainha hesitou em concordar em dissolver o Parlamento e convocar uma nova eleição. Então, BJ hesitou em bater de frente com sua monarca. Esta é a Inglaterra, afinal. Em meio a inflação e taxas de juros crescentes, há muito descontentamento no país, como mostrou o amplo apoio aos ferroviários grevistas e a seu líder franco, Mick Lynch. Mas Starmer4 está desesperado para evitar qualquer associação com isso, proibindo os deputados trabalhistas de se juntarem aos piquetes dos trabalhadores ferroviários, marítimos e dos transportes, adotando todas as políticas conservadoras que pode. Johnson, é claro, conduziu uma política externa predatória e é sádico em relação aos refugiados, mas isso é uma política de continuidade na Grã-Bretanha.
O que estamos testemunhando é uma revolta interna no Partido Conservador, desencadeada por alguns dos inimigos pessoais de longa data de Johnson: o ex-mandatário do Ministério das Relações Exteriores Simon McDonald, o enérgico Cummings. O verdadeiro enigma é por que os parlamentares conservadores perderam a cabeça dessa maneira e defenestraram um de seus poucos líderes capazes de galvanizar o apoio popular. É verdade que os conservadores sempre foram implacáveis ao descartar os primeiros-ministros vistos como um passivo eleitoral (em contraste absoluto, os Trabalhistas são apenas implacáveis ao remover qualquer líder que represente uma ameaça aos valores do extremo centro: antes de Corbyn, havia George Lansbury, considerado demasiado radical e substituído por Attlee). Mas os conservadores não estavam indo tão mal nas pesquisas e estão se saindo pior desde a derrubada de Johnson. Suas profundas divisões quanto aos cortes de impostos thatcheristas ou as verbas especiais dos partidários da “Inglaterra Unida” ainda os impedirão de apresentar um programa coerente ao eleitorado.
Por que então os conservadores estão se comportando tão irracionalmente? Parece ser um caso galopante da entropia pós-imperial diagnosticada por Tom Nairn muitas décadas atrás, através da qual “o establishment conservador inglês começou a se autodestruir”. Enoch Powell já era um sinal precoce disso, como disse Nairn: “sintomático da crescente paralisia e deterioração do próprio consenso.” Apresentando-se como a resposta ao mal-estar britânico, Thatcher conseguiu renovar os retornos sobre o capital e esmagou a classe trabalhadora organizada por duas gerações como força política. Mas o radicalismo que ela injetou na política conservadora – combinado à dizimação da base provincial dos Conservadores, composta da pequena nobreza local, gerentes de banco e empresários, por meio das ondas de aquisições e privatizações transatlânticas que ela desencadeou – deixou o Partido Conservador permanentemente danificado. As tentativas de Cameron de remodelá-lo com base no Neo-Trabalhismo5 abriram um vácuo à sua direita, instantaneamente preenchido pelo UKIP6 e pelos novatos do European Research Group.
A globalização thatcherista, juntamente com a abdicação da soberania internacional formalizada por Blair e Brown, produziu uma série de desconexões entre facções da classe governante, interesses empresariais, intelectuais cosmopolitas e eleitores provincializados, que se manifestaram no pedido pelo Brexit e agora nesta deserção febril do líder, sem ter um candidato melhor a postos. A Noite das Facas Curtas começou, com os candidatos Conservadores esfaqueando-se uns aos outros pela frente. Uma eleição nos aguarda, provavelmente ainda no próximo ano. Os conservadores serão punidos por isso eleitoralmente, o que é merecido; mas, fora isso, a saída de Johnson não oferece muito para a esquerda comemorar, já que Starmer defende praticamente as mesmas políticas, sendo até mesmo bastante entusiasta da guerra contra a Rússia, a China ou qualquer outro lugar. Uma coalizão Liberal-Trabalhista com apoio do Partido Nacional Escocês, esperando amarrar o Reino Unido mais firmemente com um novo acordo em relação à Escócia e uma reaproximação com a UE quanto à União Aduaneira, mas perdendo, com isso, mais apoio no Norte, levaria a entropia a um estágio adiante.
Referências
- Tariq Ali é um escritor, jornalista, historiador, realizador e ativista britânico, de origem paquistanesa. Mais sobre Tariq: https://web.archive.org/web/20071001020955/http://www.contemporarywriters.com/authors/?p=auth164
- texto original em: https://newleftreview.org/sidecar/posts/adieu-boris-adieu
- A expressão usada é “red wall” (“muro vermelho”). Trata-se do nome dado às regiões do norte da Inglaterra historicamente conhecidas por votar no Partido Trabalhista. Nas eleições de 2019, vários distritos dessa região votaram nos Conservadores pela primeira vez em décadas.
- Keir Starmer, líder do Partido Trabalhista.
- Movimento de “renovação” conduzido por Tony Blair no Partido Trabalhista a partir dos anos 90, que o puxou radicalmente para o centro, distanciando-o de suas raízes de esquerda.
- UKIP – UK Independence Party (Partido da Independência do Reino Unido), agremiação ultranacionalista.