Alienação e Automação: O Impacto das IAs e do GPT no Mundo do Trabalho

por Héric Moura1

A revolução algorítmica2 causada pela popularização e ampla aplicação da Inteligência Artificial (IA) e, sobretudo, de modelos de linguagem como o GPT (Generative Pre-trained Transformer) está mudando radicalmente o mundo do trabalho. Mas, como exatamente essas tecnologias estão afetando a produção, o valor do trabalho e as relações sociais? Como concretamente as IAs têm transformado as relações de trabalho? 

Para refletirmos sobre essa realidade ainda tão nova é preciso dar um passo atrás e refletir sobre algumas leis gerais de nosso modo de produção. 

Toda nova invenção que permite produzir em uma hora o que antes se produzia em duas deprecia todos os produtos similares que se encontram no mercado. A concorrência força o produtor a vender o produto de duas horas pelo mesmo preço do de uma hora. A concorrência realiza a lei segundo a qual o valor relativo de um produto é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-lo. O tempo de trabalho que serve como medida de valor relativo transforma-se assim em uma lei de depreciação contínua do trabalho3.

O valor relativo de uma mercadoria, qualquer que seja ela, não é determinado por uma escolha aleatória de quem a vende, nem simplesmente por uma lei de “demanda e procura”, como muitos ainda acreditam.

Uma mercadoria não possui em si mesma um valor de troca. A determinação do valor de uma mercadoria sempre ocorre através de relações sociais. As mercadorias são comparadas e trocadas entre si. O que todas as mercadorias têm em comum é que são frutos de trabalho. Portanto, o valor da mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la. Afinal, o que determina o valor não é o tempo de produção de uma coisa, mas o mínimo de tempo no qual ela pode ser produzida, e este mínimo é constatado pela concorrência.

Da mesma forma, o salário da pessoa que produz é determinado pelo tempo de trabalho necessário para garantir a subsistência de quem trabalha. Em outras palavras, o salário é definido pelo tempo necessário para produzir tudo o que o(a) trabalhador(a) precisa para viver. A mais-valia relativa, uma categoria central para pensar sobre as IAs, refere-se ao aumento do valor excedente obtido pela redução do tempo de trabalho necessário para produzir mercadorias.

Quando novas tecnologias são introduzidas, o tempo de produção diminui, aumentando a produtividade e, consequentemente, a mais-valia para o capitalista. E não foi nem o subversivo, revolucionário e comunista Karl Marx quem primeiro falou sobre essa diminuição no valor da força de trabalho conforme o tempo necessário de trabalho diminui. Vejam só, David Ricardo, filho de um banqueiro e economista político liberal, já havia escrito o seguinte em 1817:

“Reduzam-se os custos de fabricação dos chapéus e o seu preço acabará por se reduzir ao seu novo preço natural, embora a demanda possa dobrar, triplicar ou quadruplicar. Reduzam-se os custos de manutenção dos homens, reduzindo o preço natural da alimentação e das roupas que garantem a vida, e os salários acabarão por se reduzir, embora a demanda de braços possa crescer consideravelmente.”4

E como refletiu Marx: “A linguagem de Ricardo não poderia ser mais cínica. Colocar no mesmo plano os custos de fabricação dos chapéus e os custos de manutenção humana é transformar o ser humano em chapéu. Mas não protestemos tanto contra o cinismo; o cinismo está nas coisas, não nas palavras que as exprimem”. 

É pertinente lembrar ainda que a introdução da IA no mundo do trabalho gera também uma expropriação do conhecimento tradicional dos(das) trabalhadores(as). 

Assim como nos tempos da Revolução Industrial, em que o processo de trabalho foi despedaçado de tal forma que o operário na fábrica, por sua tarefa parcial, simples e repetitiva, mal reconhecia o produto final de seu esforço, hoje a inteligência artificial eleva ao quadrado este aspecto da alienação laboral. Os processos de trabalho estão sendo subdivididos, a reflexão humana automatizada em maior medida. 

Exemplifica isso o fato de que, num passado recente, para realizar uma entrega, um(a) trabalhador(a) que executa este serviço detinha um conhecimento específico da cidade, suas ruas e os horários de trânsito. Esse conhecimento tornou-se desnecessário, porque agora é o aplicativo de geolocalização que orienta o entregador. Em outro caso, o(a) trabalhador(a) de um escritório de advocacia que antes escrevia um número x de documentos, agora terá que produzir uma quantidade de x² de documentos. Dominando cada vez menos os aspectos técnicos de seu trabalho. A IA transforma e modifica o aspecto criativo do trabalho. O ser humano passa a ser um operador de prompts, um intermediário entre a máquina e a mercadoria. 

Com a Revolução Industrial, as máquinas reduziram drasticamente o tempo de produção, aumentando a produtividade e transformando completamente o trabalho. Esse processo não apenas aumentou a mais-valia relativa, como também mudou toda a estrutura das relações de trabalho e intensificou a alienação do trabalho. Com a revolução algorítmica o trabalho humano é ainda mais alienado, o que pode levar a salários mais baixos e ao aumento do desemprego.

De janeiro a março de 2023, quase 85 mil trabalhadores(as) foram demitidos(as) no setor de tecnologia globalmente. No Brasil, empresas de tecnologia como iFood, Loft, Neon, C6 Bank e PagSeguro também fizeram cortes significativos. Entre janeiro e março de 2023, 6,1 mil trabalhadores foram demitidos no Brasil, sendo que 2,6 mil deles vieram de “startups” e “unicórnios” brasileiros. Essas demissões foram, em parte, impulsionadas pela automação e a adoção de novas tecnologias, que reduziram a necessidade de força de trabalho humana5.

Unicórnios são Startups que alcançaram uma valorização de mercado de pelo menos 1 bilhão de dólares, destacando-se pelo que chamam de “inovação disruptiva e potencial de crescimento extraordinário”. Na verdade, as novas relações de produção através do uso das IAs são tão recentes que não acontecem de forma homogênea, permitindo a expropriação de uma mais-valia extraordinária por algumas empresas. 

A mais-valia extraordinária é obtida quando uma empresa consegue aumentar o tempo de trabalho excedente antes de seus concorrentes, permitindo-lhe produzir a um custo menor enquanto vende a um preço de mercado baseado em custos mais altos. “O capitalista que emprega o novo método de produção vende a sua mercadoria abaixo do valor social médio da mesma, mas acima do seu valor individual, obtendo assim uma mais-valia extraordinária.”6

Essas tecnologias aumentam a produtividade e reduzem custos, ampliando assim a acumulação de capital, enquanto intensificam a alienação dos(as) trabalhadores(as), a superexploração, a precarização do trabalho e aumentam o desemprego. A redução do tempo necessário para a produção de mercadorias deprecia o valor do trabalho humano, levando a salários mais baixos e ao aumento do desemprego. Esse fenômeno não é novo; já na Revolução Industrial, as máquinas reduziram drasticamente o tempo de produção, mudando a estrutura das relações de trabalho, criando um exército industrial de reserva, composto por pessoas que não conseguem emprego e acabam pressionando constantemente os(as) trabalhadores(as) empregados(as), o que empurra os salários ainda mais para baixo.

Como sintetizado aqui, no último editorial do Contrapoder: A incorporação das novas tecnologias da informação nos processos produtivos provoca uma transformação significativa na composição técnica do capital, acentuando a disparidade entre o crescimento das forças produtivas e a geração de empregos. Esse descompasso altera profundamente a relação de poder entre capital e trabalho, uma vez que a apropriação do conhecimento dos(as) trabalhadores(as) pela revolução algorítmica e a arbitragem salarial global dificulta qualquer possibilidade de aumentos reais nos salários. Nesse contexto, a acumulação capitalista se desvincula completamente da mobilidade social e do bem-estar material dos(as) trabalhadores(as). O aumento do subemprego e a expansão de trabalhos precários, temporários, mal remunerados e informais tornam-se características marcantes do capitalismo7.

A Inteligência Artificial e a automação intensificam a ofensiva do capital sobre o trabalho, aumentando a miséria, o desemprego e o subemprego. A alienação do trabalho alcança novos patamares, onde o saber acumulado pela classe trabalhadora é expropriado e convertido em capital, reforçando a dominação do capital sobre o trabalho. Sem mudanças éticas e políticas profundas nesta nova forma de produção que assegurem uma distribuição justa dos benefícios e impulsionadas pelos de baixo, o futuro será sombrio sobretudo para a classe produtora de toda a riqueza do mundo.

Referências

  1. Héric Moura é graduando em Serviço Social na Universidade Federal de São Paulo e membro do Grupo de Estudo em Marxismo e Ecologia (GEEM). Contato: heric.moura@unifesp.br.
  2. Editorial Contrapoder. Era das Catástrofes e Desafios da Luta de Classes. Disponível em: https://contrapoder.net/editorial/era-das-catastrofes-e-desafios-da-luta-de-classes/
  3. Marx, K. (1847). A Miséria da Filosofia. São Paulo: Boitempo.
  4. Ricardo, D. (1817). Princípios de Economia Política e Tributação. São Paulo: Editora Nova Cultural..
  5. 4 StartSe. “Quase 85 mil Colaboradores Demitidos no Setor de Tecnologia”. Disponível em: https://www.startse.com/artigos/veja-quantas-pessoas-ja-foram-afetadas-pelas-demissoes-em-massa-em-2023, McKinsey & Company. “Transformações Digitais no Brasil: Insights sobre o Nível de Maturidade Digital das Empresas no País”. Disponível em: https://www.mckinsey.com/br/our-insights/transformacoes-digitais-no-brasil
  6. Marx, K. (1867). O Capital: Crítica da Economia Política, Livro I, Capítulo XII. São Paulo: Boitempo.
  7. Editorial Contrapoder. Era das Catástrofes e Desafios da Luta de Classes. Disponível em: https://contrapoder.net/editorial/era-das-catastrofes-e-desafios-da-luta-de-classes/

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