Ou: O que está acontecendo na Colômbia? parte 2
Por João Gabriel 1
No nosso artigo anterior, já demos elementos conjunturais para o contexto colombiano.2 De um ano para cá, vimos o empobrecimento constante de toda a população devido aos efeitos econômicos da pandemia, associado a uma política neoliberal de repasse do custo da crise aos setores mais pobres. É importante frisar que a Colômbia nunca “esteve calma”. Distintos confrontos sociais marcaram a pandemia neste país. A situação chegou ao seu limite novamente quando o governo anunciou uma nova reforma tributária como alternativa para fechar as contas. A principal causa de indignação foi a proposta de aumentar de 5% a 19% o custo da cesta básica e o crescimento do custo de água e luz. É importante destacar que essa reforma é somente uma de um pacote que acompanha a privatização total da saúde, implementando o modelo gringo, da educação e uma reforma trabalhista que debilita ainda mais os direitos laborais já quase inexistentes.
O mais importante desta questão é não pensar como uma “explosão social”, mas como uma continuidade de uma aposta esperançosa nas ruas, que começou com a Minga Indígena e as marchas estudantis de começo dos anos 2000 e se consolida com as grandes marchas para a Paz. É importante também entender que o processo chileno “irradiou” rebeldia nos jovens, em particular universitários, deste país, havendo com isso uma similaridade de táticas e estratégias. Desde aí, queríamos destacar os seguintes pontos:
Primeiro: Colômbia demonstra que existe um sujeito social conformado que excede as barreiras nacionais. Noções como Linha de Frente, ações hackers dos Anonymous, uso de lasers em manifestação, protesto extendido, apoio dos K-popers, começam a configurar um elo comum que ligam experiencias regionais como Chile e Colômbia com a Marea de Cataluña, o movimento antirracista dos Estados Unidos e os protestos de Hong Kong. É importante perceber que há uma juventude que se referencia por elementos aprendidos desde as redes sociais para a configuração de suas formas de luta, e que estão orientadas mais por referentes compartilhados desde o mundo digital que pelos partidos e movimentos sociais de seus respectivos países. É necessário perceber também que um processo que se consolida nestas experiências é a perda de esperança juvenil. Quanto mais se radicalizam os conflitos, mais ficam nas ruas os setores juvenis mais empobrecidos, com menos perspectivas laborais e educacionais.
Segundo: Existem pelo menos três processos dentro do Paro. O primeiro é o conduzido por esse setor juvenil, que ganha mais notoriedade nacional e internacional, seja porque é quem sofre mais repressão, seja por sua maior capacidade de incidir em redes sociais. O segundo são os setores populares que de maneira crescente começam a manifestar-se. Nas grandes cidades em particular, os bairros populares se transformaram em lugares de protesto, ao ponto de que em Cali, cidade que dessa vez foi o lugar mais massivo de protestos, o centro do conflito está num bairro popular chamado Siloé. E por último, setores tradicionais como o movimento de professores, sindicatos, partidos de esquerda, a minga indígena e movimentos camponeses. Desses, o único que parece ainda ter respeito e apoio de maior maneira é o movimento indígena. Em particular sindicatos e partidos de esquerda vem sofrendo um desgaste imenso, sendo carregados muitas vezes pela conjuntura.
O cenário parece otimista à primeira vista, mas é necessário entender a reação dos setores conservadores, que justifica o título deste texto. O Centro Democrático, partido de ultra direita comandado por Álvaro Uribe e que detém hoje a presidência, começou a difundir as ideias de um pensador neonazi chileno chamado Alexis López que faz uma leitura de Félix Guatari e interpreta o que ocorreu no Chile no princípio dos anos 2000 como uma Revolução Molecular Dissipada. Basicamente, interpreta as ações dos processos políticos citados como estratégias horizontais de criação de terror e caos para diluir as instituições “democráticas”. Ao que parece, isso não recebeu o eco suficiente no Chile, até porque seu ideólogo não está presente na cena política deste país nos últimos 10 anos. A questão central aqui é que na Colômbia a velha política contra-insurgente aplicada contra as guerrilhas começa a ser pensada para atacar esse novo “inimigo sem rosto”. No dia 5 de maio, o governo Duque passou a oferecer cerca de 20.000 reais por “vândalo” capturado nos protestos. Uso de sistemas para bloqueio de sinal de internet foram utilizados na noite do dia 4 em Cali. Há censura das denúncias em redes sociais, por ser considerado “conteúdo sensível”. Começam a utilizar armamento militar letal. Novos tanques capazes de lançar bombas de efeito moral foram “streadose” em Bogotá. A lógica de combate às guerrilhas toma as cidades, só que com um agravante de que, como estão perseguindo um movimento “horizontal”, qualquer um pode ser o inimigo. Isso gerou até o meio dia do dia 5 de maio 37 mortos, 831 detenções arbitrárias, 10 casos de violência sexual por parte de policiais, 222 pessoas feridas pelas forças públicas, 110 disparos de arma de fogo e um número ainda dificil de identificar, mas que supera 300, de pessoas, principalmente jovens, que estão desaparecidas.
Nas ruas colombianas hoje se está jogando o futuro da luta de classes do continente, pois se o Governo deste país consegue instituir um Estado de Exceção capaz de gerar medo e coibir as estratégias de protesto que foram ensaiadas em outros países do mundo, se vai consolidar um modelo replicável de violência de Estado. Assim como a juventude vem se conectando cada vez mais nas suas lutas, os governos conservadores também o estão. Mais que uma solidariedade em abstrato, toda América Latina necessita acompanhar de perto tanto os atos criativos no calor da luta que sejam capazes de elaborar o povo colombiano, assim como os “novos” modelos de repressão que ali estão. Colômbia é hoje um espaço de ensaio dos desafios que enfrentaremos ante uma elite sedenta de recuperação de riquezas em um contexto de crise generalizada que vivemos no continente.
Referências
- Pesquisador do Instituto de Pensamento e Cultura da América Latina, IPECAL. Doutorando em Comunicação pela Universidade Pompeu Fabra. Membro do grupo JOVIS.CO.
- Leia: O que está acontecendo na Colômbia: https://contrapoder.net/artigo/o-que-esta-acontecendo-na-colombia/