Por Luis Gabriel Nunes1
Existe um debate atual em torno da dialética sobre a mudança climática que há tempos vem me incomodando. Primeiro porque dialeticamente, ele acaba enfraquecendo o argumento contra o principal vilão dos tempos modernos, e desvia a atenção entre a introdução do termo e sua aplicação, levando a uma fase de contextualização, antes que seja incorporado na ação militante de movimentos populares, atores políticos, sociais e comunicadores. Segundo, porque não incorpora todos os elementos da história humana e da história natural do Homo sapiens para manter-se nos limites da terminologia geológica, mesmo a presença dessas espécies sendo essencial para a época proposta. E por fim, porque a defesa do termo antropoceno, não aborda uma visão de materialismo histórico que se apoie na escola de Epicuro, adotada por Marx a partir de um período, como descrito por John Bellamy Foster em seu livro, “A ecologia de Marx; Materialismo e natureza”. Foster descreve;
1) o materialismo ontológico, que afirma a dependência unilateral do ser social em relação ao biológico (e mais genericamente físico) e a emergência daquele a partir deste;
(2) o materialismo epistemológico, que afirma a existência independente e a atividade transfactual [isto é, causal e legiforme] de pelo menos alguns dos objetos do pensamento científico;
(3) o materialismo prático, que afirma o papel constitutivo da agência transformadora do homem na reprodução e transformação das formas sociais.
E ainda destaca;
A concepção materialista de história de Marx era principalmente focado no “materialismo prático”. “As relações do homem com a natureza” foram “práticas desde o início, isto é, relações estabelecidas pela ação”. Mas, nesta concepção materialista mais geral de natureza e ciência, Marx abraçou tanto o “materialismo ontológico” quanto o “materialismo epistemológico”. Essa concepção materialista de natureza era, na visão de Marx, essencial na busca da ciência.
Além desses pontos importantes, que pretendo abordar nesse texto, também acho oportuno destacar que, a língua exerce poder, e a evolução da linguagem ao longo da história do Homo sapiens deixa isso muito evidente. Não apenas quando a antropologia destaca o surgimento da fala e da comunicação verbal como um marco na nossa história evolutiva. Mas também na vastidão de registros históricos que temos, de dialetos, línguas e idiomas inteiros, surgirem, desaparecerem, se modificarem, ou serem incorporados uns aos outros, seguindo a dinâmica de interação e/ou dominação entre povos, ao longo do tempo. No entanto, esse é um assunto que renderia ao menos uma década de projetos de doutorado e elaboração de tese, ou mais, e não será o foco da nossa argumentação, apesar de o destacarmos como um fator importante a se considerar, portanto, um nome (ou palavra), nunca é apenas isso.
Seguindo então as questões apontadas e a argumentação, uma das evidências para exemplificar e demonstrar a falha dialética na defesa do termo antropoceno, para além das questões técnicas da geologia, foi o texto publicado no site da insurgência, no início do mês de abril 2. Ele traz a divulgação de um trabalho recém publicado, que descreve as mudanças provocadas em um conjunto de 27 ilhas estudadas, a partir de métodos e dados da palinologia.
Neste artigo de divulgação científica, o texto deixa uma impressão de que o estudo reforçaria o argumento do antropoceno, e isso não faz muito sentido, talvez a interpretação seja mais no sentido oposto. A ecologia descreve muito bem o efeito de inúmeras espécies nos seus respectivos ecossistemas, e toda ação específica, leva a uma interação entre outras espécies, e/ou meio ambiente físico. Adotando uma visão que não seja antropocêntrica, devemos reconhecer isso, e entender que nossa espécie se dispersou e colonizou todos os ambientes do planeta, e obviamente, causou diferentes impactos nos locais por onde passou – aliás, o maior evento de dispersão foi entre 1820 e 1930, já durante a sociedade capitalista industrial, onde 50 milhões saíram da Europa, em direção as neoeuropas3[Crosby, 2011].
É certo que o Homo sapiens faz isso desde muito antes dos 5 mil anos datados nesse estudo, pra dar uma ideia, a domesticação dos cães pode ter se iniciado muito antes de 100 mil anos, bem antes da agricultura, e se deu a partir da interação entre duas espécies, um canídeo e um hominídeo, que levou a mudanças em ambas. Então, sendo o efeito de hominídeos no meio ambiente uma via de mão dupla, os ecossistemas exercem seu poder de seleção não apenas em nossos traços culturais, mas também anatômicos. Posso usar muitos exemplos pra isso, mais resolvi escolher a descrição do Homo floresiensis, por se tratar justamente de uma espécie de hominídeo que evoluiu sob os efeitos de um ambiente insular, e sob esses efeitos foi uma espécie com o tamanho corporal muito menor em relação aos outros hominídeos já descritos.
Além desse efeito ser recíproco, também é inevitável destacar, a luz de um materialismo histórico no sentido relatado por Foster, que existe apontado na literatura biológica inúmeros registros, tanto descritivos, quanto estatísticos, de espécies que exercem efeito de ampliação da biodiversidade (engenheiros do ecossistema), em diversas escalas – um bom exemplo são os castores e suas represas de contenção de água, que aumentam a diversidade de espécies onde são construídas. É verdade que nenhuma destas espécies tornou-se cosmopolita como o ser humano. Mas nem sempre atuamos como diminuidores da biodiversidade, comunidades indígenas ameríndias proporcionam a dispersão de diversas espécies vegetais, e também podem aumentar a capacidade nutritiva do solo, aumentando assim o suporte de mais espécies, ou de mais indivíduos (na mesma área) de populações de espécies locais, vegetais e animais.
É importante entendermos que nós somos seres únicos, em um planeta único (até então), e a tomada de consciência de nossa espécie sob sua existência e seus impactos na sua casa comum (planeta Terra), é o que nos separa do restante dos seres, e nos coloca grandes responsabilidades. Por isso devemos tornar nossas ações e planejamento político, consequência dessa análise materialista, dando razão científica a nossa ação programática, como essencial para nossa sobrevivência. Portanto, a espécie humana tendo consciência de estar destruindo a biodiversidade e a sua própria casa, deve planejar o comportamento coletivo para se tornar promotor da biodiversidade, como uma espécie engenheira do ecossistema, agora cosmopolita. E ainda, racionalizar a produção e sociabilidade, para uma interação saudável, entre todos os seres vivos, e todos sujeitos da transformação social humana.
Apesar do uso de antropoceno não admitir, necessariamente, o mesmo peso da responsabilidade na mudança climática para os países e populações dos diferentes hemisférios do planeta (tampouco ele aponta essas diferenças), ele também não incorpora fatores importantes da nossa ecologia e história natural, como pontuou décadas atrás Murray Boockin, que estão profundamente emaranhadas com nossa história social – sobre a história humana de uma perspectiva social e dos fatores históricos, podemos mencionar o artigo de Eduardo de Sá Barreto 4 e ainda o livro do Jason Moore [Moore, 2016]. No entanto, o que mais me incomoda não seria o pressuposto do peso atribuído aos países do sul e do norte na crise atual da biosfera, mais esse peso atribuído de forma equânime as diferentes formas de organização da vida e da sociabilidade humana, pelo menos ao longo de 12 mil anos. Esse aspecto da adoção do termo não pode ser ignorado.
Nós já conseguimos identificar um acúmulo de CO2 atmosférico (e outros GEE) a partir da revolução industrial, e isso pode, inclusive, ter levado ao acúmulo de gases necessário para ser o “start” da Grande Aceleração (GA). Esse mesmo acúmulo não aconteceu com a reprodução da vida de nenhuma das sociedades no período de ao menos 11500 anos, mas foi possível nos últimos 300 anos. Isso foi por causa de todas as formas de organização social das pessoas que viveram nesses períodos, de forma equitável? Claro que não!
Por mais que possamos admitir todo o desmatamento, extinção e modificação de paisagem (principalmente em ilhas) do período de expansão marítima. E até mesmo antes disso, quando a utilização do arado, inventado na Mesopotâmia de 6 mil anos atrás, provocou grandes perturbações no solo do velho mundo, isso só passou a ser um problema de maiores proporções, a partir da industrialização da agricultura. Podemos até citar os eventos conhecidos como Dust Bowl, nos EUA da década de 1930. Ainda assim, apesar de todas essas mudanças, a dinâmica ecológica e de sucessão vegetal e de espécies poderia absorvê-las, em um determinado grau, e caso não houvesse a intensificação da era industrial, que agora é global. A questão é, a partir de quando começamos a produzir e reproduzir a chamada falha metabólica entre humanidade e natureza, como ela nos colocou na atual dinâmica de sociabilidade planetária e como sairemos dela?
Outro argumento pela defesa do antropoceno, diz que da mesma forma que adota-se capitaloceno, pela lógica, poder-se-ia adotar “socialoceno”. Essa lógica não é aplicável à realidade. Não existe possibilidade dessa comparação. Claro, como ecossocialista, e corroborando o fracasso da lógica produtivista, eu diria “bem feito”, mesmo achando isso uma injustiça. Injusto, já que esse modelo só foi adotado em alguns países, nunca globalmente, com proporção geográfica significativa para exercer influência no clima da Terra, enquanto que o capitalismo se espalhou por todo globo. Segundo, porque o socialismo real, como já é reconhecido, reproduziu a mesma lógica de produção capitalista, mais com sua própria forma de “gestão política” do estado, e não incorporando uma razão ecológica central, no sentido programático, para os países onde foi adotado.
Além do que, e isso é explícito, o termo antropoceno é extremamente antropocêntrico. Como mencionamos, é evidente que espécies modificam seus ambientes, e ambientes selecionam modificações nas espécies, e toda história de evolução da vida e dos ecossistemas, se trata exatamente disso. Algumas espécies quando introduzidas podem causar impactos extremamente agudos. Existem registros de gatos domésticos exterminando todas as aves em ilhas pequenas, a Austrália (mas não só lá) está repleta de exemplos de introduções acidentais e programadas, que levaram a desequilíbrios de décadas nas comunidades biológicas locais. A expansão (e retração) de populações, concêntricas ou não, faz parte do cotidiano dos ecossistemas. Portanto, a espécie humana ser cosmopolita, é algo perfeitamente natural, assim como ela exerce efeito nos ecossistemas onde está. Da mesma forma que será natural, o efeito gerado pela própria ação do Homo sapiens, nos levará à extinção.
O que seria surpreendente, é que apesar de sermos a única espécie do planeta a adquirir consciência de todo esse processo, e de sua posição nele, mesmo assim não fizemos nada para mudar esse cenário. E pior, estamos fazendo no sentido de piorá-lo.
Vejamos o exemplo do fogo; o domínio desse fenômeno físico é destacado por diversas ciências. O fogo foi usado de inúmeras formas pela nossa espécie ao longo dos séculos, do cozimento de alimentos, até a abertura de áreas para habitação e/ou produção. É usado ainda hoje por muitas comunidades tradicionais, e não se tem registro de mudanças atmosféricas marcantes e permanentes por efeito do fogo ligado à ação humana nos 10 mil anos, mesmo que seu uso modifique bastante a paisagem, e por períodos de anos ou até décadas. No entanto, hoje não se tem mais controle do fogo (e atualmente no Brasil nem se quer ter esse controle, tanto que leis e fiscalização foram afrouxadas) em determinados períodos, pois sua aplicação é feita sob orientação da ganância expansionista, e dos lucros imediatos, e não da necessidade imanente do ser humano expandir seu território – até porque toda comida que precisamos, pode perfeitamente ser produzida nos territórios já ocupados pela agricultura.
Um outro exemplo, a fim de materializar a necessidade de usar o poder dialético e apontar nossas armas para onde elas realmente precisam estar focadas, se quisermos sobreviver, e não subestimar a capacidade de todo um sistema econômico que se apoia em bilhões de seres humanos para garantir sua dinâmica. O uso dos compostos de clorofluorcarbono, que acarretou o buraco na camada de ozônio, cujo o mais conhecido é o freon, e que só passou a ser comercializado a partir de 1928, e foi banido na década de 1980. Pouco mais de meio século de produção e comercialização industrial, e tempo suficiente para ser capazes de tamanha magnitude de mudança na camada de ozônio.
Mesmo assim, insistimos em dizer que um sistema econômico, em poucos séculos, não tem essa capacidade de mudança? Se um único produto sob esse sistema, difundido pela sua cultura de consumismo, e maximização de lucros, foi capaz de mudar a estratosfera do planeta (até 50 km da superfície).
Na argumentação de Crutzen e Stoermer (2000), eles adotam como data limite para o Antropoceno, o século XVIII, e mencionam a máquina a vapor como tecnologia que marcou a dinâmica social. Isso obviamente está diretamente ligado à história do capitalismo.
A humanidade encontrou formas de ampliar a capacidade de suporte do planeta em vários momentos (Nekola et al., 2013), e com isso aumentar seu tamanho populacional, e sua capacidade de dispersão – superando a ideia colocada por Malthus -, e é aí que reside um fato histórico que não podemos negar, do ponto de vista dialético. Muito diferente dos milênios anteriores, os principais avanços que proporcionaram esse aumento da capacidade de suporte nos períodos mais recentes (Motor a vapor, Motor de combustão interna, Vacinas, Aviões, Plásticos, Antibióticos, Computadores e a “revolução verde”) (Nekola et al., 2013), mesmo que criados pelos humanos, atenderam a dinâmica do sistema industrial.
Portanto, seja no tamanho e dispersão da população, seja na produção de mercadorias (úteis e inúteis), seja na circulação delas, todo o “progresso” e acúmulo advindo das mudanças na dinâmica da população humana nesse período, não foi racionalizada do ponto de vista ecológico para o antropo, para a Terra, ou para ecossistemas específicos, mais do ponto de vista do capital, e para garantir e ampliar sua dinâmica e influência.
O exemplo da vacinação da população durante a pandemia da covid-19 não poderia ser mais didático. A produção e aplicação da vacina é direcionada para que a produção fique parada o mínimo possível, e garantindo que ainda tenham pessoas capazes de desenvolver determinada atividade produtiva, e não para se preservar o máximo de vidas possível. Outras mudanças sociais e tecnológicas anteriores, como a domesticação de animais, a roda, formação de cidades, domínio da fundição de metais, uso de irrigação etc (Nekola et al., 2013), não seguiram essa mesma lógica, quando surgiram na história, justamente porque a dinâmica e organização social eram muito diferentes da sociedade industrial globalizada. Os avanços surgiram de necessidades imanentes à espécie humana.
Da mesma forma que o marcador proposto no ano 2000 por Crutzen e Stoermer, outros podem ser adotados, mas exceto aqueles do período da expansão marítima, ou do surgimento da agricultura, o restante está situado no período de tempo que compreende o capitalismo. E mesmo que o marcador proposto para o período de expansão ultramarina, seja resultado do acúmulo de perturbações ao longo do tempo pregresso, foi um período em que o tamanho da população se manteve relativamente estável, e sua dispersão muito mais limitada, então os efeitos antrópicos eram absorvidos pela resiliência dos ecossistemas com muito mais facilidade e rapidez. Assim, para congregar dialeticamente e tecnicamente todo conteúdo que precisamos, e facilitar a massificação da informação, é essencial ir além da geologia. Ao mesmo tempo que expressamos de forma emergencial, e em abrangência teórica o que significam tais conceitos e o período que vivemos, para as pessoas assimilarem essa percepção ao cotidiano, e se movimentarem quanto a tudo isso.
Pois uma certeza em meio a tanta dúvida, é que podemos afirmar categoricamente, com tudo que se sabe atualmente, e com todos os efeitos que já observamos no dia-a-dia em todos os continentes, se continuarmos com essa dinâmica de expansão e exploração, a espécie humana irá ser extinta. Porém, essa dinâmica só foi estabelecida a partir da sociabilidade industrial sob domínio do capital, e isso deve estar incorporado na etimologia dos conceitos adotados.
Portanto, numa visão que entendo ser mais racional e dialética, o antropoceno deveria se referir ao período em que a dinâmica de forrageio e crescimento da população humana poderia ser absorvida pela resiliência e plasticidade dos ecossistemas. E por sua vez, o capitaloceno deve se referir objetivamente ao período – que pode até ser também uma das fases do antropoceno e não simplesmente conceitos excludentes – em que apesar dos sucessivos aumentos da capacidade de suporte e de locomoção que alcançamos através das inovações, nossa espécie assumiu um modelo de sociabilidade e de relacionamento com a natureza. Esse modelo levou a um aumento absurdamente expressivo na dinâmica ecossistêmica do planeta, mudando o tempo natural dos ciclos da Biosfera, inviabilizando nossa sobrevivência na Terra.
Claro que o período de expansão marítima deve ter um acumulado de emissões de GEE mais alto do que períodos anteriores, já que o desmatamento foi mais intenso. Mesmo assim, não há exatidão temporal nessa definição, nenhum período geológico tem um marco anual de início, justamente pela precisão limitada dos métodos de datação. Além do que, essa data ainda está mais próxima do marco do sistema capitalista e da sociedade industrial, do que do marco da humanidade pós-agricultura (12 mil anos), dois eventos na história que certamente contribuíram com mudanças ecossistêmicas consideráveis. Então, não temos como ignorar esse período, e achar que o termo proposto atualmente é suficiente para contemplar tudo que é necessário.
E não dá para atribuir qualquer efeito pregresso, quando a população humana era 1/6 da atual, e se relacionava de outras formas diversas com o espaço territorial, e ainda reconhecendo a magnitude dos efeitos atuais. Apesar de o crescimento populacional não ser o foco do problema atual, já que produzimos um excedente que não alcance a todos. Temos que reconhecer que nada cresce eternamente, por enquanto estamos lidando com o crescimento do sistema capitalista, que causa a ruptura sociometabólica homem x natureza. Se racionalizarmos a produção de coisas, de forma a atender a todas as pessoas, não gerando o acúmulo e desperdício de um sistema linear, funcionando em um planeta de ciclos, talvez depois tenhamos que lidar com outros problemas de crescimento, mais sem superar esse, certamente não estaremos aqui para enfrentar outros.
Também não existe hoje, nenhum argumento, nem histórico, e nem na literatura científica, que seja irrefutável, para dizer que devemos adotar antropoceno de forma universal e multidisciplinar. O fato de haver grupos de estudo que adotem a terminologia não é argumento nem científico nem político. Quem trabalha com taxonomia tem que lidar com mais de 200 conceitos de espécie – alguns com séculos de existência -, e nem por isso existe uma ideia para que um seja adotado de forma universal. As ciências geológicas não são a última fronteira de nenhum debate. Não existe problema em toda sociedade internacional de geologia adotar o termo, talvez até o façam um dia. A questão está na comunicação e no senso de urgência atual, a dialética é importante nas ciências sociais e políticas, e faz toda diferença na comunicação e assimilação da informação coletiva e de massas, e sem dúvidas ter seu prefixo nessa palavra é uma mancha na imagem, seja de um sistema político, ou de qualquer espécie.
Por mais que achemos que um sistema de sociabilidade não deixa marcas globais, já existem registros da história humana, por onde passamos, e quando passamos, para no mínimo temos ainda muitas dúvidas sobre isso. E até pode ser adotado o termo antropoceno de forma universal no futuro, melhor seria se daqui uns 100 ou 200 anos (se chegarmos até lá). Mas isso quem vai dizer é quem estiver por lá, mas agora, o uso de capitaloceno com certeza, não só é útil, como necessário. Dizer que o termo seria sectário, nos leva a cometer dois equívocos. Primeiro supor que todo um ramo da ciência irá apresentar essa sensibilidade política, e que se colocaria contra debater em torno desse termo, isso até pode ocorrer com uma parte dos cientistas, e não com outra, mais uma outra parte pode até ser atraída por esse debate. Segundo, a grande maioria das pessoas está totalmente avessa a essa questão, e não se afastará pelo termo, pelo contrário, é notório que o termo capitaloceno seria mais aglutinador e agitativo, exatamente o que precisamos nesse momento.
Admitir o antropoceno, é admitir que qualquer forma de vida, de sociabilidade e relação humana com seu meio, mais hora menos hora, estará fadado ao fracasso e ao colapso. Figurativamente falando, é o mesmo que “jogar a toalha”, não dá pra admitir isso, e seguir a vida da mesma forma. O ecossocialismo é a esperança de uma nova “subjetividade revolucionária” (como descreve Kohei Saito, sobre sua percepção da ecologia de Marx), e não uma conformidade com tudo que vivemos. Isso deixamos para os socialistas que adotaram a tese do Fukuyama. É hora de usarmos a sapiência do epíteto que dá nome a nossa espécie, e teorizarmos com mais profundidade a complexidade do momento que vivemos.
Por tudo isso, penso que não existe um problema em cientistas optarem por usar o termo antropoceno, principalmente sabendo que terão de concorrer em editais públicos por financiamento. Afinal de contas, o mundo é capitalista, e nem governos liberais, nem empresas, que concedem esses financiamentos, iriam estar abertos a financiar pesquisas que estudem os “efeitos do período capitaloceno na crise climática e mudanças planetárias”. Tanto é, que muitas multinacionais (principalmente do setor petrolífero) preferiram financiar por décadas ideias negacionistas, para seguirem lucrando. O que eu acho inadmissível, é a academia (ou acadêmicos), sequestrarem o debate, e acusarem qualquer movimento político ou social que adote o termo capitaloceno, de anticientífico (e até negacionista) ou sectário, isso é cientifismo puro. Ou talvez só liberalismo mesmo, ou melhor dizendo, imperialismo científico/cultural, já que o termo antropoceno vem sendo difundido com mais rapidez e menos criticidade nos últimos anos.Por fim, destaco mais uma vez aqui a lógica proposta no artigo do Eduardo de Sá Barreto [2], de que não basta reivindicar qualquer nome que seja, se não enfrentarmos a lógica do capital. Para isso é de extrema importância que o ecossocialismo tenha esse foco, e por isso não devemos tratar como trivial, ou fato consumado esse debate. E mais que isso, devemos resgatar a tradição do materialismo dialético epicurista, assumir o papel ontológico da humanidade, e reconhecer que a sociabilidade é inerente do Homo sapiens, e desenvolvida por nossa própria espécie, de uma forma ou de outra. Epistemológico, para compreender que nem sempre tivemos essa mesma sociabilidade, e a raiz do problema atual da humanidade está no atual sistema de sociabilidade. E por fim, um materialismo prático, para concentrar os esforços no real problema da sociabilidade atual – a dinâmica de acumulação, crescimento e exploração do capital.
Referência:
Crutzen, P. J. & Stoermer, E. F. (2000) The “Anthropocene”. Global Change News Letter, 41: 17-18.
Moore, J. (2016). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism. Oakland, Califórnia, PM Press. 222 pp.
Nekola, J. C.; Allen, C. D.; Brown, J. H.; Burger, Joseph R.; Davidson, A. D.; Fristoe, T. S.; Hamilton, M. J.; Hammond, S. T.; Kodric-Brown, A.; Mercado-Silva, N. & Okie, Jordan G. (2013) “The Malthusian–Darwinian dynamic and the trajectory of civilization”. Trends in Ecology & Evolution, 28 (3): 127–130.
Crosby, A. W. (2011) Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa 900 – 1900. São Paulo, São Paulo, Companhia das Letras. 375 pp
Referências
- Luis Gabriel Nunes é Biólogo, doutor em Ecologia e Conservação da Biodiversidade e militante da Emancipação Ecossocialista – PSOL
- https://www.insurgencia.org/blog/homem-alterou-biodiversidade-em-toda-a-terra?categoryId=163386
- O termo Neoeuropas foi desenvolvido por Alfred Crosby no livro “Imperialismo Ecológico” para descrever regiões específicas do planeta, que seguiram uma dinâmica ecológica e social próprias, a partir da expansão marítima europeia.
- https://contrapoder.net/colunas/antropoceno-capitaloceno-e-os-ecossocialistas/