59 anos de contrarrevolução preventiva
O golpe de 1964 inaugurou uma sequência de ditaduras no Cone Sul destinadas a preparar as sociedades dos países da região para novas e mais intensas formas de dependência e sangria de riquezas. Precisavam desobstruir o fluxo, que seria maior e mais intenso.
Dentro do novo padrão de dominação para a região, que exigia uma reprimarização das economias, para o Brasil estava reservado um papel um tanto diferente. Uma industrialização rápida, puxada pela indústria automotriz de transnacionais, combinaria com grandes projetos extrativos e a modernização do agronegócio, com o pacote tecnológico da assim chamada “revolução verde”. As cadeias automotrizes, pressionadas pela concorrência, precisavam renovar seus parques industriais já obsoletos e ainda não amortizados. O Brasil foi lugar de desova dessa maquinaria, cuja falta de competitividade podia ser compensada pela superexploração do trabalho.
A introdução de tecnologias da “revolução verde”, com sua mecanização, concentrava a propriedade da terra, expulsando do campo pequenos e médios agricultores, assim como assalariados rurais. Ao mesmo tempo, a industrialização rápida precisava de uma força de trabalho crescente. Pronto, iria dar certinho! Só que era preciso assegurar que as velhas práticas de luta dos trabalhadores não contaminassem essas jovens levas que ingressavam nas fábricas. E que os trabalhadores rurais não resistissem à expulsão de suas terras.
A população urbana passou de 30% a 85% em duas décadas. Setenta milhões de pessoas migraram. Isso envolveu a sociedade inteira e precisou de uma imensa coerção econômica e altas doses de violência. Houve uma reconfiguração das classes trabalhadoras. Mas, antes, e para receber as novas levas, as fábricas organizaram a produção com novas rotinas: nada de assembleias dentro dos espaços de produção. Nem circulação dos trabalhadores pelas diferentes seções. Instituiu-se o uso de crachá. Os patrões fizeram sua parte, criando rotinas de vigilância articuladas com o Estado. A repressão internalizou-se nas empresas até à minúcia. Não só visava os militantes, mas qualquer gesto de resistência à nova organização da produção. Havia que blindar o capital da possível articulação de resistência de um operariado jovem, sem disciplina fabril e numericamente tão forte que podia se sentir capaz de enfrentar essa nova forma de organização do trabalho.
As grandes obras de infraestrutura de produção e energia, e de logística também, mobilizaram enorme quantidade de braços, deslocando trabalhadores em grande número para os canteiros de obras. Gentes de todas as regiões do Brasil que precisavam ser disciplinadas à ponta de fuzil, para cumprir com os prazos e deixar o território brasileiro pronto para que o sangue de suas riquezas pudesse ser extraído e exportado.
Mas os fuzis eram insuficientes para disciplinar. Era preciso agir sobre a alma dos brasileiros. As cadeias de televisão e rádio precisavam funcionar em uníssono, feito orquestra bem afinada, fazendo da ordem e do desenraizamento uma positividade. Surgiu a rede Globo. A expansão da educação básica vinha junto com uma ação ideológica em prol dessa nova ordem. Escolas e mídias apresentando o consumo como a felicidade da vida.
As forças armadas brasileiras não se limitaram ao Brasil. Treinadas pelos Estados Unidos, compuseram com certo protagonismo a articulação da repressão no Cone Sul: o Comando Condor.
Quando seu serviço estava concluído, organizaram uma retirada parcial e blindada. Aquilo que o general Golbery do Couto e Silva, ideólogo da ditadura e ex-chefe da Casa Civil, chamou de “transição lenta, gradual e segura”. Dois dispositivos garantiriam essa transição: a lei de anistia aos repressores e a manutenção da militarização da Amazônia. Se a primeira foi explícita, a segunda permaneceu sem muito escândalo como “cláusula pétrea”. Os sucessivos governos civis mantiveram a ordem do padrão de dominação imposto durante a ditadura a ferro e fogo. As empresas que procuraram na ditadura um caminho para otimizar os lucros são as mesmas que se beneficiaram com os sucessivos governos civis.
Hoje, a dinâmica do capital vai desenvolvendo um novo modelo, com redes de acumulação de alcance planetário e cada vez mais elos dessas cadeias extraindo riquezas pelo recurso à pilhagem. A implantação desse novo modelo não pode ser levada adiante senão com um certo grau de militarização das áreas de extração e a rede de conectividade logística e de energia. Os dispositivos estão aí, intactos. As ações preventivas para blindar o novo modelo, a postos. Nenhum governo civil os desmontou. É melhor estar alerta.