por Veridiana Zurita1
No dia 21/05 Jean Wyllys anunciou sua entrada no PT. Em grupos internos do PSOL a troca de mensagens recorrente era “vai com Deus”, e claro, se na esquerda brasileira Deus é Lula, é “vai com Lula”.
O que me interessa refletir aqui não é o Jean Wyllys em si; sua atuação partidária e suas polêmicas – apesar desse histórico nos dar indícios sobre a previsibilidade e “coerência” de sua entrada no PT – mas a linha de raciocínio político que ele usa pra justificar sua movimentação partidária.
Em entrevista ao jornal Estadão, o ex-deputado justifica sua filiação ao PT “em meio a uma divisão interna no PSOL, entre partidários de uma candidatura própria e defensores do apoio à candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. Wyllys não quer participar do desgaste que ele considera ser promovido pelas disputas internas no PSOL e diz “quero liberdade plena pra fazer desde já o que eu acho certo e melhor para o país” (negritos meus). Mesmo com sua saída do partido, Wyllys acredita que dirigentes psolistas vão se esforçar pra “que o partido desista do sectarismo, abandone o complexo de édipo que o levou ao antipetismo” e se integre “à coligação antifascista que vai derrotar Bolsonaro e eleger Lula em 2022”. Wyllys ainda reafirma sua narrativa caricata – daqueles que acreditam ser contra a polarização mas nessa crença a fortalecem – e diz “minha única prioridade é derrotar o fascismo e por isso vou me engajar muito na campanha do Lula”.
A linha de raciocínio do ex-deputado denuncia uma cultura política que, pelo visto, transborda o senso comum de um eleitorado de esquerda moderada e toma conta da razoabilidade de um parlamentar, até então representante de um partido socialista e que nasce (também) a partir de rupturas programáticas dentro do PT. Acreditar que derrotaremos o fascismo pela via eleitoral é a narrativa heróica de uma social-democracia, contra-revolucionária e funcional ao redimensionamento do capitalismo. Todes nós, na vasta imensidão das esquerdas, queremos derrotar o bolsonarismo. Mas é preciso entender que parte de sua força é também fomentada pela hegemonia dentro da esquerda, historicamente forjada pelo PT e pelo Lulismo. Não compreender o primeiro turno como espaço de demarcação de um projeto de governo de esquerda próprio e fora da lama conciliatória por onde os governos do PT já escorregaram (pra não dizer atolaram) é perder a chance de desanuviar o eleitorado embriagado entre Lula e Bolsonaro. Fomentar a narrativa abstrata de “derrota do fascismo” no primeiro turno significa sufocar toda e qualquer construção de um projeto político de esquerda que supere o Lulismo. E fazer essa demarcação tem ligação direta com um processo que supere o bolsonarismo, já que sua ascensão também acontece pela falta de um projeto de esquerda que não seja aquele coordenado pela hegemonia do PT.
O senso comum de Wyllys, replicado pela narrativa funcional (o bem contra o mal) da social-democracia e de manutenção da hegemonia na esquerda (no Brasil orquestrada pelo PT), são parte dos debates e disputas internas do PSOL. Somente alguém que não participou da construção partidária interna, pra além de uma política-da-figura-pública, pode celebrar “a liberdade” de fazer aquilo que “eu acho certo e melhor para o país”.
É urgente que façamos um balanço sobre o sentido das disputas internas no PSOl, pra alinharmos horizontes e canalizarmos tais disputas em uma construção política comum. Mas, esse balanço não consegue produzir síntese coletiva alguma quando feito individualmente, através de uma militância voluntarista. Fugir das disputas internas do partido significa não encarar o desgaste até mesmo pra fortalecer o campo que se alinha aos anseios eleitorais de Wyllys pró-Lula-no-primeiro-turno. Mais do que isso, é sintoma de uma atuação política personalista e individualizada. Toda construção coletiva tem desgaste. Todo personalismo almeja aplausos.
O que de fato me chamou atenção na fala do ex-deputado foi sua referência ao “complexo de Édipo”. Ele aplica uma teoria psicanalítica pra leitura da atual disputa interna no PSOL e revela, ao mesmo tempo, dois equívocos. O primeiro é o entendimento da teoria psicanalítica em si e o segundo é o diagnóstico que nasce desse entendimento falho (ou sintomático). Ele usa o mito da tragédia grega “Édipo Rei” pra falar do “complexo de Édipo” (Freud). Pois bem, são grades de leitura distintas. No mito, Édipo é atingido por uma terrível profecia: seu destino é matar o pai e desposar a própria mãe. Freud se inspira na tragédia grega pra formular o “complexo de Édipo” onde o sujeito precisa rivalizar com o pai no seu desenvolvimento psicossocial, da libido e do ego. Na psicanálise, o “complexo de Édipo” é um estágio que precisa ser superado pra que o sujeito não fique paralisado pela figura paterna como única possibilidade de identificação fálica. Resolver o “complexo de Édipo” seria deslocar a figura fálica de um “único pai” à outras instâncias. Ora Jean, me diga, que parte da esquerda é essa que não consegue se desvencilhar da figura de Lula como única e intransponível? Se há uma dinâmica política na esquerda que não consegue resolver seu “complexo de Édipo”, ou seja, deslocar sua mobilização da figura de Lula como “único pai” possível, é justamente essa esquerda que regride, assim como uma criança fixada no Édipo
A verdade, é que a leitura falha de Wyllys nos ajuda a entender a motivação que mobiliza a pré-candidatura de Glauber e a falência política de quem a percebe enquanto um “erro”. Pra ele a parte da esquerda no PSOL que fortalece uma pré-candidatura própria no primeiro turno é motivada pelo o que ele imagina entender como “complexo de Édipo”, ou seja, a necessidade continua de “matar o pai”, sendo Lula esse pai. Se era pra ser uma fala lacradora, não deu certo. Porque ao aplicar erroneamente a teoria psicanalítica Wyllys expõe um sintoma. Wyllys acertou ao identificar Lula como o “pai” da esquerda institucional brasileira, mas errou na leitura do “complexo de Édipo” em si e o que significa sua superação. O “erro” de Wyllys é sintoma da esquerda que ele celebra, sintoma de uma esquerda que não consegue enxergar outro “pai” possível além de Lula, a ponto de qualquer debate que antagonize o “pai”, seja enquadrado como antipetismo. Ao que tudo indica, quem está preso no “complexo de Édipo” é justamente quem vê em Lula o “único pai” e sem ele (e por ele) regride.
O que as partes do Psol que fortalecem e defendem uma pré-candidatura própria no primeiro turno fazem é justamente resolver o complexo, sair do mito, deslocar a mobilização partidária pra outras figuras que possam reativar o sentido da esquerda pra fora de uma “família” disfuncional fixada no Lulismo. Pra que um partido como o PSOL, fundado a partir de rupturas irreconciliáveis com o PT, não regrida como um todo pela figura fantasmática de um “pai” que não arreda o pé da hegemonia na esquerda que seu partido articula, será preciso coerência política. E nesse caso, coerência não significa morder a isca de “derrota ao bolsonarismo” a qualquer custo, mas a compreensão de que essa derrota só pode começar a ser desenhada quando um outro projeto de esquerda entrar na disputa.
Referências
- Veridiana Zurita – Artista, pesquisadora e ensaísta, bacharel em Comunicações das Artes do Corpo pela PUC-SP, mestre em Artes Visuais pelo DAI – NL. Atualmente é mestranda no Programa de Ciências Humanas e Sociais na UFABC e constrói o coletivo Tecno-Antivigilantismo. Para conhecer mais seus trabalhos acesse www.veridianazurita.com
Muito bom a análise. Principalmente eu que participei de todo o debate e das assinaturas para a legalização do Psol acompanho desde o seu inicio as disputas internas, na qual o Senhor Jean não participou. Alem disso eu tenho formação em psicologia e fiquei assustando em comparar parte da militância aguerrida do psol com Complexo de Edípo .
Muito boa a análise. E ótima invertida do argumento do complexo de Édipo. E tem razão: o equívoco de Jean é sintomático da não superação do Édipo.