Crise do PSOL e conjuntura 2022

Por Pedro Perpétuo Viegas1

Antes de mais nada, gostaríamos de dizer que escrevemos esta breve análise ainda sob o impacto da dura notícia da morte do trabalhador congolês Moïse Mugenyi Kabagambe2, um jovem de apenas 24 anos, negro, que foi amarrado e espancado até a morte do modo mais covarde, no dia 24/01, no Rio de Janeiro. O rapaz, que trabalhava como ajudante de cozinha no quiosque Tropicália, foi atacado por cinco homens armados com porretes, no momento em que exigiu seu pagamento. A família também denuncia que, ao chegar ao IML, Moïse não tinha alguns de seus órgãos… A morte de Moïse é resultado direto do racismo sistêmico e da xenofobia de nossa sociedade. Nesse sentido, só podemos nos somar ao esforço que clama por justiça por Moïse, lembrando que infelizmente este não é um caso isolado, mas o resultado de mais 500 anos de racismo e da política genocida representada por Bolsonaro e sua gangue genocida.

Mal pudemos descansar de 2021 e já vimos, no finalzinho de dezembro, terríveis enchentes na Bahia que deixaram o estado em situação de emergência por boa parte de janeiro de 2022. Ao todo, foram 165 municípios que decretaram situação de emergência, 26 mortes totalmente evitáveis e um total de 850.424 pessoas afetadas pelo temporal que atingiu o estado. Foram mais de 26 mil desabrigados e 61,5 mil desalojados3. Por mais que a mídia burguesa insista em dar uma cara de catástrofe natural para o desastre, é sabido que estas cidades carecem de estrutura urbana capaz de suportar as chuvas e que, especialmente no sertão nordestino, esta cena se repete sempre que chove. Isso evidencia a necessidade de lutar por uma reforma urbana que permita que, diante de temporais, os mais pobres não se transformem em sem-teto. O urbanista das cidades é o capital, e a tendência é a falta de estrutura para suportar algo tão simples e previsível quanto um temporal.4

Diante de tantas notícias ruins, tivemos duas notícias auspiciosas neste início de ano:

  1. A morte do guru, charlatão e mentor ideológico da ultradireita brasileira, Olavo de Carvalho, vítima da Covid-19, doença que ele afirmava não existir. Foi a morte mais comemorada da história da rede social twitter, com 70% de manifestações comemorativas e apenas 30% de lamentos (segundo dados da arquimedes);
  2. A Covid-19 pode deixar de ser uma emergência em 20225, segundo o diretor da OMS Tedros Ghebreyesus, que afirma que a fase mais aguda da pandemia pode chegar ao fim neste ano de 2022. Um motivo de esperança que não é uma justificativa para pensar que a pandemia já acabou ou que podemos baixar a guarda com os cuidados individuais, mas que causa algum alívio. 

Diante da pandemia, o fundamental é saber que a Ômicron segue em curso, e que já se sabe que até março metade da população mundial terá sido contaminada por ela6. Enquanto isso, Bolsonaro brinca de se esfarelar com farofa nas redes sociais e coloca suas hordas para espalhar fake news sobre a vacinação de crianças, pondo em risco a vida destas.

Frente a isso, a política dos revolucionários deve continuar exigindo vacina para todos. E mais além, devemos exigir que o Estado e a burguesia paguem pela crise sanitária e social que se instalou no país, posicionando-nos na luta contra as três principais mazelas sociais dos últimos anos: o desemprego, a inflação e a fome. O legado da pandemia em curso é o escancaramento da desigualdade e do crescimento insustentável proposto pelos ricos deste país.

Hoje, o desemprego é a principal preocupação dos trabalhadores brasileiros7, o que provavelmente vai ser um dos fatores mais importantes na decisão do voto dos eleitores na esperada eleição de 2022. O Brasil provavelmente terá 14 milhões de desempregados em 2022, de acordo com a projeção divulgada pela Organização Internacional do Trabalho (OTI) em 17/01 de 2022. A perspectiva é de que o país retorne ao índice de desemprego de antes da pandemia apenas em 2023 e 2024.

 A inflação também segue sendo um dos principais problemas, com nova previsão de aumento, pelo mercado financeiro, para este ano. Tal como aponta a projeção do Boletim Focus, divulgada dia 31 de janeiro pelo Banco Central, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) deve fechar 2022 em 5,38%, enquanto há uma semana a projeção do mercado era de que a inflação terminasse o ano em 5,15% e há quatro semanas a previsão era de 5,03%… Ou seja, uma hiperinflação que nem em ano eleitoral dá trégua.8 Outro dado importante é que a inflação é 15% maior para os mais pobres do que para os mais ricos, segundo o IPEA9. Isso acontece porque os preços dos produtos da cesta básica foram os que tiveram maior aumento.10

A fome e a insegurança alimentar tornaram-se o dia a dia de mais da metade da população durante a pandemia. Cerca de 19 milhões de pessoas passaram fome no Brasil em 202111, em razão da crise econômica e sanitária12, e mais da metade da população vive em insegurança alimentar. Vale lembrar aqui que a fome é responsabilidade política de Bolsonaro, mas também da burguesia brasileira, que privilegia o agronegócio, setor incapaz de gerar empregos, considerando-o o principal motor da economia nacional.

Frente a este cenário desolador, a maior parte da esquerda aposta em um projeto exclusivamente eleitoral13 de apoio incondicional (ou ainda que crítico, um crítico envergonhado e escorregadio) ao projeto da frente amplíssima proposto por Lula e o PT. Este projeto teve como último acontecimento relevante a proposta de Federação partidária PT/PSB, tendo como marco vergonhoso a figura de Alckmin (ex-PSDB e inimigo impiedoso da classe trabalhadora) como vice de Lula. Neste ponto, é importante lembrar que somente uma agitação praticamente “para inglês ver” contra a aliança com Alckmin, atitude adotada por algumas correntes do PSOL e da esquerda, é uma política totalmente insuficiente.

Vale a pena questionar essa mesma esquerda se, para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo e para enfrentar de forma consequente a extrema-direita e todos os ataques neoliberais burgueses, nós devemos assinar um cheque em branco e entregá-lo a esta chapa Lula/Alckmin. Vale questionar se esta chapa é uma panaceia capaz de resolver todos os nossos problemas, já que este tem sido o tom de tantos ativistas que em outros momentos foram absolutamente respeitáveis… Precisamos mesmo ter que relembrar que os governos do PT fortaleceram o agronegócio, as forças armadas, o judiciário corrupto e atrasado e até os neopentecostais? Não podemos fechar os olhos para a responsabilidade de Lula e do PT e para o fato de que suas capitulações abriram alas para toda a podridão ideológica e política representada por Bolsonaro e sua gangue genocida.

Portanto, do nosso ponto de vista, a esquerda socialista e radical deve se posicionar neste ano de uma maneira decidida, debatendo sobre como é fundamental derrotar Bolsonaro nas urnas e nas ruas, usando todas as táticas cabíveis para tanto, inclusive empregando o voto crítico em Lula no segundo turno para derrotá-lo eleitoralmente. Mas também mobilizando e organizando a classe, como procuramos fazer durante vários momentos nos últimos dois anos, seguindo o exemplo chileno e americano e, no processo, tendo que enfrentar a desmobilização promovida pelos próprios setores ditos de esquerda e “progressistas”, que decidiram não mobilizar para conseguir apoio do mercado financeiro durante o processo eleitoral que pretendem ganhar em 2022. Com isso, foram dois anos sem que Lula participasse das mobilizações e sem que o PT e a CUT empregassem toda sua influência para derrubar Bolsonaro a partir das mobilizações nos locais de trabalho e nas ruas.

Antes de qualquer coisa, é preciso ter claro que o projeto Lula/Alckmin não é um projeto do povo, da periferia, das mulheres, dos negros: não é projeto dos trabalhadores. É, sim, um projeto neoliberal, que pretende arrancar o nosso couro. De um modo menos brutal que o proposto por Bolsonaro, é verdade, mas que ainda negociará nossa pele no mercado e a venderá a um preço bem barato.

Aqui vale um debate tático e político: o voto contra Bolsonaro no segundo turno é pensado somente no sentido de impedir um novo governo Bolsonaro, mas não deve jogar qualquer ilusão no governo Lula/Alckmin. Pelo contrário, devemos ter a atitude de acabar com as ilusões do povo e preparar o terreno para que uma alternativa à esquerda se fortaleça e possa acumular a referência para se tornar porta-voz da revolta que certamente virá diante da manutenção dos ataques neoliberais que Lula e Alckmin jamais revogarão. Se não surgir uma alternativa da esquerda radical e socialista capaz de capitanear esta revolta, ela será uma revolta falsificada pelo fascismo ou outras alternativas de extrema-direita, tal como a Virgínia Fontes aponta ao descrever o próprio bolsonarismo.14

É preciso derrotar este governo de caráter bonapartista, autoritário e com retórica e ideologia fascistas. Para fazer isso, mais que apostar em sua derrota eleitoral, devemos lutar para que os trabalhadores entrem em campo e tomem as rédeas da situação, de tal modo que a esquerda não fique paralisada à espera de um salvador. Um momento que poderá ser importante para a construção desse protagonismo da classe trabalhadora é a Greve Nacional da Educação pelo pagamento do reajuste. Devemos intervir neste processo buscando semeá-lo com ideias radicais, ou seja, combatendo a lógica economicista15 e buscando politizar a greve.

A esquerda brasileira precisa de um programa socialista e dos trabalhadores para a sociedade brasileira. Este programa poderia muito bem ser mostrado nas eleições de 2022 pelo PSOL, o partido socialista com maior visibilidade na esquerda brasileira atualmente. Conquistamos este espaço pelo talento e esforço de nosso ativismo e militância, que se envolveu ativamente nas lutas e campanhas dos últimos anos. Este programa socialista poderia começar por:

  • Quebrar as patentes de insumos e vacinas para Covid-19, tal como foi feito no passado com o exemplo bem-sucedido dos genéricos, levando-se em conta que apenas a manutenção de privilégios e a ganância por lucros bilionários são os entraves para que isto ocorra, como alertam os próprios especialistas do Conselho Nacional de Saúde;16
  • Ajustar os salários ao nível da inflação do mês, evitando-se a queda do poder real de compra das famílias, como parte do esforço contra o fome;
  • Garantir uma renda mínima para os desempregados no valor do salário mínimo;
  • Construir um plano de contratação dos desempregados em projetos estatais de reforma urbana que ajudem a impedir tragédias como a que vimos na Bahia e garantam casas populares para o povo brasileiro, visto que, por exemplo, em São Paulo, a população de rua aumentou 31% durante a pandemia;
  • Revogar todas as contrarreformas neoliberais, privatizações e a lei do teto de gastos, que atacam os trabalhadores desde 2016. Atenção especial aqui para a importância da revogação da reforma trabalhista e a da previdência;

No entanto, o seguidismo ao PT e a esperança ingênua e quase mística de que é possível delegar nosso futuro a um salvador que, no dia que ganhar as eleições nos permitirá dormir tranquilos, tem feito com que o PSOL abdique de sua própria razão de existência. 

No último congresso, vimos o debate sem peso material de que era preciso apoiar Lula no primeiro turno, ignorando-se que em nenhum cenário e em nenhuma pesquisa existe a possibilidade de vitória de Bolsonaro no primeiro turno, razão pela qual seria possível aparecer no pleito eleitoral com um programa radical socialista que, ainda que não vencesse, seria conhecido por uma parcela importante da sociedade brasileira. Lembremos que uma parte significativa de nossos melhores militantes conheceram o PSOL durante as campanhas presidenciais e pelo trabalho bem feito de nossos candidatos, da assessoria política e principalmente da militância, que deu o sangue nessas construções. Não aparecer neste processo é abdicar de um importante espaço de diálogo com o povo. 

Aqui também cabe um debate estratégico17: é inadmissível o exclusivismo institucional que privilegia a disputa eleitoral como fim último da intervenção política, que parece ter virado senso comum para a maior parte da militância do PSOL. Na realidade, é preciso assumir que o PSOL se encontra em uma encruzilhada existencial profunda. A maior prova disso é a debandada para o PSB e PDT, partidos que sequer são de esquerda, de figuras importantes como Freixo e David Miranda.  A saída de Jean Wyllys para o PT parece até algo mais coerente do que a ida para esses partidos sem qualquer pezinho na classe trabalhadora.

Um expoente importante da crise do PSOL é o debate sobre a federação com a Rede, PV e PCdoB, que poderia ser uma tática possível para enfrentar as limitações da legislação eleitoral da antidemocrática democracia burguesa brasileira, mas que acaba se tornando uma marca da falta de coerência e solidez política e programática do PSOL, pois não raro a frente aparece em textos e discursos como muito mais do que uma aliança pontual para as eleições…

Nesse sentido, a esquerda radical dentro do partido, que fez um importante trabalho durante o congresso partidário em 2021, tem como tarefa balançar o PSOL e seguir no debate da candidatura própria, defendendo o nome de Glauber Braga na conferência eleitoral. Também deve-se buscar construir pontes para o diálogo entre as diferentes forças revolucionárias e, principalmente, mobilizar a classe trabalhadora.

Repetimos o alerta do início: esta talvez seja uma análise um tanto quanto apressada, feita entre os “corres” das contas para pagar, mas os últimos anos nos têm ensinado que o perfeito é inimigo do possível, e seguimos, mas nem por isso abandonamos nossos princípios e estratégias socialistas. Agradeço aos que leram esta humilde contribuição.

Referências

  1. Pedro é professor, escritor e militante do PSOL-DF
  2. https://catracalivre.com.br/cidadania/o-que-se-sabe-sobre-a-morte-moise-kabamgabe/
  3. https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2022/01/08/bahia-tem-mais-de-26-mil-desabrigados-615-mil-desalojados-e-duas-pessoas-estao-desaparecidas-por-causa-da-chuva.ghtml
  4. Esta tendência “estética” do urbanismo capitalista é tão comum nas cidades ao redor do mundo, que foi muito bem retratada pelo filme vencedor do Oscar de 2019, o impactante longa-metragem sul-coreano Parasita. No filme, uma família é desabrigada por uma enchente em um bairro periférico de Seul.
  5. https://www.brasildefato.com.br/2022/01/24/covid-19-pode-deixar-de-ser-emergencia-global-em-2022-diz-oms
  6. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/01/12/O-que-esperar-da-pandemia-com-a-variante-%C3%B4micron-dominante
  7. https://www.cnnbrasil.com.br/business/desemprego-e-a-principal-preocupacao-economica-do-brasileiro-diz-pesquisa/
  8. https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-01/mercado-financeiro-eleva-projecao-de-inflacao-para-538-em-2022#:~:text=Segundo%20proje%C3%A7%C3%A3o%20do%20Boletim%20Focus,ano%20em%205%2C15%25.
  9. https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2021/12/15/inflacao-em-12m-para-mais-pobres-ainda-e-15-superior-a-dos-mais-ricos-diz-ipea.htm#:~:text=Economia-,Infla%C3%A7%C3%A3o%20para%20mais%20pobres%20%C3%A9%2015%25%20superior%20%C3%A0%20dos%20mais,no%20%C3%BAltimo%20ano%2C%20diz%20Ipea
  10. Foro de Teresina, o podcast de política da revista Piauí, edição #184 “Quem ganha e quem perde na pandemia”.
  11. https://www.cnnbrasil.com.br/saude/19-milhoes-de-brasileiros-vive-com-fome-consequencias-na-saude-sao-irreversiveis
  12. Dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Rede Penssan
  13. Ou no mínimo que adota a eleição como tática privilegiada
  14. Para quem se interessar pela elaboração de Virgínia Fontes e o conceito de falsificação da revolta: http://resistir.info/livros/brasil_capital_imperialismo.pdf
  15.  Aqui, no sentido leninista: economicismo é a lógica que muitos trabalhadores apresentam de despolitizar as suas lutas por salários e focar somente no aspecto econômico, sem fazer qualquer vínculo com a realidade política nacional e muito menos internacional. Lênin apresenta este conceito pela primeira vez no livro O que fazer? (https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/fazer.pdf). 
  16. http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1737-a-quebra-de-patentes-causa-pavor-porque-mexe-com-privilegios-afirma-pesquisador-em-live-do-cns#:~:text=A%20manuten%C3%A7%C3%A3o%20de%20privil%C3%A9gios%20e,feira%20(12%2F05)
  17. Aqui no sentido de estratégia apresentado por Nahuel Moreno e Mercedes Petit, em Conceitos Políticos Básicos (http://cstpsol.com/home/dl/Nahuel%20Moreno/Conceitos%20Pol%C3%ADticos%20B%C3%A1sicos.pdf)

3 comentários sobre “Crise do PSOL e conjuntura 2022

  • 9 de fevereiro de 2022 at 5:38 pm
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    Olha, fiquei na expectativa de um candidato a presidência do PSOL mas pelo visto vão entregar numa bandeja de prata sem nem mesmo aparecer como uma outra alternativa. Não me parece a atitude mais sábia do partido somente para retirar o genocida do poder mas com certeza isso mostra um enfraquecimento do PSOL tornando-o cada vez mais apagado na política nacional.

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  • 10 de fevereiro de 2022 at 12:55 am
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    Excelente texto e de muito fácil compreensão para todos. Parabéns!

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  • 12 de fevereiro de 2022 at 12:41 am
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    Ótima análise sobre a encruzilhada em que se encontra o PSOL. Parece buscar soluções eleitorais desprezando os avanços políticos. Como diz o texto, manter o diálogo com o povo é uma tática relevante, um objetivo simples que não pode ser abandonado.

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