DEMARCAÇÃO JÁ! - Contrapoder

DEMARCAÇÃO JÁ!

Do Levante da Terra ao Agosto Indígena

Foto: Eric Terena/Mídia Índia

“Vamos ter que lutar com armas, sim.
Se for preciso que nossas flechas se tornem nosso principal símbolo.”
Débora Ticuna

“Não vamos sair porque é terra indígena, do nosso povo. É parte da Reserva, que já tá pequena faz tempo. Tem família que sai porque não tem mais espaço e vamos deixar ruralista aqui dentro? Se tirar a gente, a gente volta a retomar. Tem uma chácara aqui que tava abandonada e agora tem plantação de mandioca, feijão, moradias”,
Catalino Guarani e Kaiowá, liderança de Yvu Vera.

Por Gesa Linhares Corrêa1 e Lujan Maria Bacelar de Miranda2

Os povos originários estão dispostos a permanecerem em luta, e têm expressado isso em vários atos ao longo da luta pela demarcação de suas terras, não só em Brasília, mas nos estados como Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio de Janeiro dentre outros.

Essa disposição, mobilização e luta nos diversos estados, por seus direitos, fez da questão indígena um tema com visibilidade na pauta política nacional. 

A demarcação das terras indígenas visa restituir um direito usurpado pelos invasores que aqui chegaram e que até hoje contam com o apoio dos sucessivos governos. E deveria ser uma das funções prioritárias da FUNAI, conforme regulamentada pelo Decreto nº 1.775/96, sendo competência do Poder Executivo. Dados oficiais registram 488 terras indígenas que foram regularizadas, o que representa apenas 12,2% do território nacional, distribuídos em todos os biomas, com a maior concentração na região Amazônica.  

Importante resgatarmos alguns momentos das lutas mais recentes: em 20/01/2006, os povos tupiniquim e Guarani, em luta para garantir a área do Córrego D’Ouro e Olho D’água, localizadas no município de Aracruz-Espírito Santo, foram surpreendidos com a invasão e ação violenta e unilateral da polícia federal; no dia 28/03/1988, violência contra os Ticuna, em Manaus, Amazonas – “O Massacre do Capacete também chamado Massacre dos Ticuna”,  perto de Benjamin Constant (AM); lutas diversas na região oeste do Pará, estado com uma das maiores diversidades de povos no mundo (são pelo menos 40 povos indígenas em toda a região e cerca de 40 comunidades quilombolas só na chamada Calha Norte do Pará); luta dos Guarani  Kaiowá em Mato Grosso do Sul, cujas famílias foram sendo expulsas de suas terras  porque o governo os retirou à força e os colocou em reservas que não atendem às necessidades básicas, que são, também, culturais, pois os povos originários vivem da terra e do território. São cerca de 13.100 indígenas Guarani Kaiowá, Ñandeva e Terena (Funai, 2015), ocupando 3.500 hectares e com direito a terra e tratamento diferenciado em educação, saúde, garantidos pela Constituição Federal.

O PT em 03 mandatos não encaminhou as reformas agrária, política e tributária e muito menos a demarcação das terras indígenas. Nos três primeiros anos da gestão da presidenta Dilma, como consta no relatório do Cimi, houve apenas 21 homologações de terras indígenas (janeiro de 2011 a maio de 2016). Nos oito anos de Lula, foram 87 homologações (jan 2003 a dez 2010). Nos 08 anos de FHC foram feitas 145 homologações, 18 por ano. Os antecessores também demarcaram mais terras do que Dilma: 9 por ano na gestão de Itamar Franco; 112 no período de Fernando Collor de Melo (mar 90 | set 92); e 67 por José Sarney (13 abr 85/ mar 90).  Última atualização sobre a demarcação das Terras Indígenas foi em 20 de setembro de 2018. Desde então não houve novos decretos e portarias conforme dados divulgados em: https://pib.socioambiental.org/pt

Portanto o governo petista assistiu ao aumento dos graves conflitos entre ruralistas e povos originários, muitos desses com assassinato de lideranças indígenas.

No Rio de Janeiro as diversas etnias indígenas têm buscado um espaço próprio para disputar, na sociedade, o direito de demarcação das terras, de divulgar sua cultura, e de cobrar do poder público parte do que foi usurpado ao longo da história de dominação e expropriação dos povos originários. Nas suas aldeias a falta de políticas públicas obriga os Guarani a venderem seus artesanatos, competindo de forma perversa com as lojas de luxo, sendo muitas vezes vistos como pedintes nas calçadas. Os Guarani representam 94% dos 602 índios que habitam as aldeias indígenas. As escolas indígenas não possuem as condições para uma educação pública diferenciada de qualidade: escolas em péssimas condições, professores/professoras fora do Plano de Carreira e com contratos vencidos, além da falta constante de merenda adequada e de material didático, prejudicando o início do ano letivo e o ensino-aprendizagem.  A Ocupação Guarani, no litoral do Rio de Janeiro, faz parte dos circuitos migratórios tradicionalmente realizados por esta etnia entre diversas aldeias da região da Mata Atlântica: Terras Indígenas Arandu Mirim (Saco do Mamanguá), Araponga, Bracuí, Cabo Frio, Camboinhas (Tekoa Itarypu), Parati-Mirim, Rio Pequeno. As necessidades básicas de um povo deveriam ser resguardadas pelo poder público, mas esta não é a realidade do Rio de Janeiro, especialmente para estas comunidades.  

O deslocamento dos índios e das índias de suas aldeias para a cidade se justifica pelo descaso dos governantes, que não implementam as políticas públicas necessárias para a garantia de uma vida digna, forçando o êxodo dos indígenas como única forma de sobrevivência. 

O agronegócio, a grilagem, o desmatamento ilegal praticados com aval do governo federal continuam patrocinando o genocídio dos povos originários com a silenciosa conivência dos poderes legislativos, executivo e judiciário, caracterizando o racismo institucional.

E qual tem sido a política adotada pelo governo federal?

No Congresso Nacional, os ataques, também, são constantes! Estão tentando aprovar o PL 490, resgatando a essência da PEC 215 (que transfere para o Congresso a atribuição de oficializar Terras Indígenas e Unidades de Conservação) impondo o conceito de Marco Temporal, fingindo desconhecer os processos criminosos de expulsão dos povos indígenas de suas terras ao longo da nossa história. O ilegítimo Michel Temer assinou um parecer para parar a demarcação de terras indígenas no país, atendendo à bancada ruralista. Esta tem sido uma prática recorrente no âmbito institucional: é o toma lá dá cá, a compra/troca/venda de votos e de apoio ao governo de plantão; inclusive, para se livrarem de denúncias como na Lava Jato e talvez agora na CPI Covid. O governo genocida de Bolsonaro tem obtido destaque internacional, também, como etnocida. Estimula os grileiros e madeireiros a praticarem ações violentas de expropriação das terras indígenas, incluindo assassinatos de indígenas. E de forma irresponsável, através da política deliberada durante a pandemia, promoveu a distribuição de cloroquina em diversas aldeias.

A Advocacia Geral da União estimou que cerca de 748 processos em andamento no país, com base na tese do marco temporal, seriam paralisados. É uma aplicação desumana da Constituição Federal, que define que só poderão ser consideradas terras tradicionais aquelas que estivessem sob posse dos indígenas na data de 5 de outubro de 1988. Contudo, não podemos esquecer que essa mesma Constituição assegura bens ainda maiores, como o direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Assegura, também, o direito à propriedade, e os povos originários são os verdadeiros donos dessas terras e não podem ser ainda mais penalizados por terem sido expulsos de suas terras, de seus territórios e terem sido ignorados e desrespeitados pelos sucessivos governos durante todos esses anos. Ademais, o artigo 231 da Constituição de 1988 afirma textualmente que “(…) são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. A tese nefasta do marco temporal foi utilizada nas terras Raposa Serra do Sol, em Roraima e se tivesse sido aprovada, desconsideraria todo o processo de expulsão sofrido por essas comunidades.

O “Agosto Indígena” integra a luta dos povos indígenas contra o Marco Temporal. Mais uma vez estarão ocupando Brasília, como no acampamento #LevantedaTerra no mês de junho. Foram dias marcados pela violência das forças de segurança nacional contra os indígenas, que estavam na capital federal para pressionar ministros do STF a terem uma interpretação justa da Constituição Federal, ao julgarem Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365, que pretende anular a demarcação das terras do povo Xokleng, em Santa Catarina. É vital para os povos originários que lhes seja assegurado o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas por eles (teoria do Indigenato e direito garantido constitucionalmente desde a constituição de 1934), de modo a que possam garantir sua cultura, tradições, história e preservar suas vidas. Ressalta-se que o projeto de lei, PL 490/2007 em tramitação no congresso, pretende inviabilizar a continuidade das demarcações de terras em curso e anular as que já foram demarcadas após 1988.

No levante de junho, cerca de 100 lideranças Kayapó estiveram na audiência pública que discutiu as ameaças da mineração e do garimpo no território dos Kayapó trazidas pela Instrução Normativa 01/2021(conjunta da Funai e Ibama), que dispõe sobre o licenciamento ambiental de empreendimentos em Terras Indígenas; assim como o PL 191/2020, que regulamenta a mineração em Terras Indígenas (TI), uma das 35 prioridades do governo federal enviadas ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.

A completa libertação dos povos originários está diretamente ligada à libertação de todos os oprimidos/oprimidas, explorados/exploradas, excluídos/excluídas do nosso país. Uma luta pelo fim de todo tipo de exploração, discriminação e preconceito presentes na sociedade capitalista e contra o estado burguês, usado pela classe dominante para manter a exploração e opressão em especial sobre os povos originários.  Por isso nossa luta também é por uma sociedade sem explorados/exploradas e exploradores/exploradoras – sem classes e grupos opressores. Uma sociedade socialista: revolucionária, democrática, multicultural e pluriétnica, onde o povo governe superando todas as formas de exploração, dominação, opressão, discriminação e preconceitos entre homens e mulheres em comunhão com a natureza.

A primeira condição para a garantia dos direitos dos povos originários é viabilizar a demarcação de suas terras, pois isso significa garantir a própria vida, sua cultura, a relação com a ancestralidade e sua dignidade enquanto nações que possuem formas próprias de sobrevivência e culturas diferentes. É preciso estancar qualquer política que vise continuar a colonização e o embranquecimento dos povos originários. O genocídio praticado contra os povos originários exige REPARAÇÃO JÁ!

“Os povos indígenas foram expulsos e dispersados. O Estado-Nação brasileiro doou e vendeu as terras indígenas: isso é uma imensa dívida histórica no Mato Grosso do Sul”.
Avá Uerá Arandú é um dos líderes do povo Kaiowá Guarani no Mato Grosso do Sul. Doutorando em Antropologia no Museu Nacional da UFRJ

Referências

  1. Executiva Nacional da CSP Conlutas e integrante da Corrente Liberdade e Revolução Popular- LRP/PSOL
  2. Núcleo Capixaba da Auditoria Cidadã da Dívida e integrante da Corrente Liberdade e Revolução Popular- LRP/PSOL

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