por Guilherme Pompeo1
Algumas reflexões sobre a infância em cenários militares podem ser extraídas do filme vencedor em duas categorias do Oscar, “Zona de Interesse”. Nesse contexto, a película proporciona considerações profundas sobre a infância em meio a realidades marcadas por guerras.
Começo de ano e já se tornou um ritual: sento na cadeira diante do notebook, acesso algum site e dou uma olhada na lista de indicados ao Oscar. Não é que leve a premiação a sério ou a considere importante, mas é um hábito para ficar por dentro do que a galera anda comentando por aí.
Às vezes, me surpreendo com algumas indicações. É o caso do filme sobre o qual vou discutir: “Zona de Interesse”, uma obra que busca retratar o cotidiano de uma família nazista em Auschwitz. A obra me fez pensar sobre as famílias em Israel no conflito da Faixa de Gaza, guardadas as devidas proporções, uma espécie de Auschwitz do nosso tempo presente.
Ao me deparar com a inclusão de “Zona de Interesse” na lista do Oscar, percebo sua forte candidatura para a estatueta de melhor filme internacional, que se confirmou semanas depois. Dado que o filme é em grande parte de produção polonesa, isso amplifica a perspectiva do colonizado em relação ao colonizador.
Sendo assim, decido prontamente ir ao cinema mais próximo, compro o bilhete, ocupo minha poltrona, as luzes se apagam, e diante de meus olhos surge uma família alemã aproveitando uma tarde de folga à beira de um rio. Enquanto isso, no campo de concentração ao lado, sob o comando de Rudolf Höss, o patriarca dessa família, milhões de vidas são ceifadas. Em seguida, a narrativa mergulha mais profundamente na rotina.
Dentro do clã, o convívio doméstico, cercado por flores e árvores frutíferas, a família Höss, que desempenhou um papel sombrio na história do Holocausto, desfruta de uma existência serena. Deliberadamente, eles convivem muito bem com o que se passa além dos muros: os odores, os sons de gritos e fuzilamentos, o trabalho forçado, a fumaça ao céu e o sofrimento avassalador das vítimas.
Quando analisamos a história do nazismo, costumamos concentrar nossa atenção nas grandes batalhas, nos vastos processos econômicos, nas inovações marcantes, nos eloquentes discursos e procedimentos. “Zona de Interesse”, entretanto, proporciona uma abordagem mais cirúrgica, focando nas histórias familiares e na micro-história do nazismo. O filme tece uma narrativa das singularidades que encapsulam as universalidades desse período por meio do som. A singularidade do convívio familiar é fotográfica (visual), enquanto as batalhas, os processos econômicos, as inovações, os discursos e procedimentos são apenas sonoros. Isso justifica, e muito bem, o filme ter arrematado a segunda estatueta na categoria de “Melhor Som”.
O que mais me chamou a atenção nesse recorte doméstico foi a infância, que se revela como um elemento importante e muitas vezes esquecido por nós. A obra proporciona uma janela para o cotidiano das crianças imersas nesse contexto extremamente militarizado, destacando como elas experienciam e foram moldadas por uma doutrina autoritária, colonizadora, nacionalista, que se baseia na crença da superioridade de justificativa e dizimação de outros povos. A narrativa proporciona uma compreensão abrangente da formação das crianças e adolescentes em Auschwitz, e também das mudanças nos arranjos familiares impactados por ideologias que compartilham semelhanças em diferentes momentos históricos, incluindo a militarização, como é o caso do sionismo.
No conflito entre Palestina e Israel, estamos acompanhando com indignação as atrozes e inaceitáveis atrocidades perpetradas pelo exército do Estado de Israel contra crianças palestinas. No entanto, o filme nos proporciona a oportunidade de analisar o outro lado da moeda. Não que a vida das crianças palestinas seja menos importante; pelo contrário. Mas é igualmente importante explorar a perspectiva das crianças que crescem no seio dos opressores. Ao observar a infância nazista em Auschwitz para traçarmos paralelos com o que ocorre em Israel, buscando compreender como o contexto político e militar perdura ao longo das gerações.
Em meio a diversas cenas que retratam a infância impactada pelo nazismo, como o sonambulismo de uma das filhas de Rudolf Höss, originado por uma questão de estresse, o aspecto que mais se destacou foi a brincadeira do “filho do meio” com seus soldadinhos de plástico, recriando cenas de guerra vivenciadas em sua própria realidade. No entanto, o ponto crucial ocorreu quando o filho mais velho trancou esse irmão mais novo na estufa, um ambiente onde a mãe cultivava flores e hortaliças. Após trancar o irmão menor lá dentro, passou a reproduzir com a boca os sons do extermínio em Gaza, ou, mais precisamente, os ruídos das chamas que consumiam judeus. Se os soviéticos não tivessem interrompido essa brincadeira, os jogos de papéis indicariam que eles seriam os novos algozes, mas, na realidade, também são vítimas do sistema nazista.
Sendo assim, a infância marcada pelo nazismo, Juventude Hitlerista, é muito semelhante à Juventude Sionista em Israel, e evidenciam a influência do sistema estatal na mentalidade das crianças. Começando do berço para atingir o bunker. A infância é condicionada na lógica que leva as crianças criadas pelo regime a acreditar que a eliminação de palestinos é uma questão crucial. No entanto, a reflexão que surge é profunda: que tipo de formação é capaz de desumanizar alguém ao ponto de torná-lo um jovem disposto a apertar o gatilho e tirar a vida de outro alguém sem sentir qualquer culpa? Este é um projeto que se inicia desde o berço das concepções colonizadoras.
É fundamental questionar os elementos do ambiente e do sistema que contribuem para essa desumanização, bem como analisar como as narrativas ideológicas e a educação estatal moldam as perspectivas dos jovens. Compreender as raízes desse processo é crucial para abordar questões complexas, como conflitos regionais, e para promover estratégias de lutas anticoloniais e contra a guerra.
Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.