Em um passado longínquo, a capacidade reprodutiva das mulheres era tida como tão importante para a manutenção da espécie quanto a boa relação com o restante da natureza. Ambas garantiam não só a sobrevivência do grupo, como também sua reprodução. Nessas sociedades, a divisão sexual do trabalho se dava pelas particularidades das mulheres, centralmente as reprodutivas. Nelas, o trabalho reprodutivo, longe de ser secundarizado, era um elemento valorizado. Tomemos como exemplo os ensinamentos da ancestralidade negra. No candomblé, as Orixás femininas são chamadas de Yabás, e são responsáveis pela vida e pelo equilíbrio na Terra. Essas Orixás não correspondem de forma alguma à visão moderna/colonial da mulher, são grandes guerreiras. Suas histórias, além de trazerem à tona nossa ancestralidade africana, também são um ensinamento profundo sobre o poder das mulheres.
No desenrolar de nossa história, tanto a capacidade reprodutiva das mulheres – que não pode ser separada das próprias mulheres – como o restante da natureza foram dominados e transformados em mercadorias. Junto a esse processo deu-se a construção de um parâmetro de humanidade, que é masculino, heterossexual e branco. Ele é acompanhado de uma separação abstrata e mística entre o homem e o conjunto da natureza no processo de formação do capitalismo, assim como de uma hierarquização racial da humanidade. A escravidão nas Américas é o exemplo máximo dessa realidade. A partir da escravização de mulheres e homens indígenas e africanos e da utilização altamente destrutiva da terra, foi construída uma grande riqueza, que possibilitou o desenvolvimento do capitalismo colonial/moderno em que vivemos hoje.
Sobre as bases do patriarcado e do racismo, esse sistema de exploração mundial foi fundado desvalorizando a vida de alguns e supervalorizando as coisas, mais especificamente o capital e a propriedade privada. Não é simples acaso do destino que neste momento de crise estrutural capitalista, as massas tenham como principal preocupação a vida.
Não é novidade para aqueles/as que já possuem alguma aproximação com o debate sobre o patriarcado que é a partir da opressão e dominação das mulheres que se funda a propriedade privada, passada de geração para geração, na família monogâmica e patrilinear. Assim como o rebaixamento social do trabalho reprodutivo e sua não remuneração. Isto é, em países onde a herança colonial não condenou um exército de mulheres racializadas a um trabalho doméstico quase escravo, como no Brasil.
É nos momentos de crise capitalista que as contradições desse sistema decadente se evidenciam de tal maneira que somente aqueles que não querem ver não percebem tais problemas. Nesses momentos, são os setores mais marginalizados dos trabalhadores que mais sofrem os impactos da ganância dos capitalistas. Um grande exemplo em nosso país foi o primeiro caso de COVID-19, uma empregada doméstica que trabalhava em plena pandemia na casa de sua patroa infectada, que havia voltado da Europa recentemente.
Embora sejam os homens os que correm maior risco de contaminação, é evidente que são as mulheres as que mais sofrem de forma geral. São as mulheres as mais afetadas pelo desemprego, são as mães solteiras – grande base da nossa população e da “família brasileira” – que são enquadradas num alto nível de vulnerabilidade. Se, por um lado, precisam decidir entre buscar emprego – correndo o risco de morrer – ou morrer de fome, por outro, aquelas que possuem alguma ocupação precisam pensar em saídas para lidar com seus filhos. Além de tais fatores, os casos de violência doméstica atingem números alarmantes. Em alguns locais do país foi preciso criar grupos de autodefesa para auxiliar as mulheres que apanham de seus companheiros, que são assoladas pela violência doméstica.
Neste 8 de março, precisamos de muito mais que um ato de calendário. É o momento de nos organizarmos pela base. É preciso tomar o exemplo das guerreiras Daomé, alicerce e força da Revolução Haitiana, das Mães de Maio, que ainda hoje se levantam por seus filhos e contra o sistema genocida, das mulheres trabalhadoras que sempre se colocaram na linha de frente da luta de classes, das mulheres que se indignaram nos EUA e fundaram o movimento que tem abalado o mundo, o Black Lives Matter. É chegada a hora de retomar a força das mulheres que nos antecederam na luta contra o colonialismo patriarcal e racista, das mulheres indígenas que ainda hoje lutam para manter sua forma de vida e a natureza que têm sido brutalmente atacadas, das mulheres negras que lutam por sua vida e a de seus filhos e companheiros, contra o genocídio aprofundado pela crise e pela pandemia.
Um sistema tão destrutivo como o capitalismo em crise, que desvaloriza nossa relação com a natureza, destruindo e devastando o que nos possibilita a vida neste planeta, que secundariza o papel tão importante do trabalho reprodutivo, que sobrevaloriza determinados grupos da espécie em detrimento de outros, tem seus dias contados. Como mulheres, cabe-nosa escolha de morrer junto com esse sistema que anda a passos largos no caminho do SUICÍDIO COLETIVO da espécie ou nos levantar na luta pela vida, pela nossa vida e da humanidade.
Para os camaradas homens, é mais que necessário cerrar fileiras na luta contra o patriarcado – a reconstrução pessoal anda lado a lado com a luta, com a necessidade de formar um programa que dê conta da luta contra o machismo em todos os locais, todos os dias -, é preciso que entendam que o protagonismo das mulheres na luta não significa, em hipótese alguma, a abstenção dos homens da mesma.
Hoje, mais do que nunca, lutar pela vida das mulheres significa a destruição definitiva do capitalismo e de todas as amarras ideológicas que o compõem. Devemos ir além das migalhas que pequenos remendos e leis “antimachistas” representam. Hoje elas agem apenas como uma maquiagem, que esconde os olhos roxos de uma mulher violentada. Nada menos do que isso será capaz de resolver os problemas que as mulheres enfrentam no cotidiano. Só a transformação radical e revolucionária do jeito que produzimos e reproduzimos nossas vidas pode libertar as mulheres e o restante da sociedade deste sistema de morte, fome e destruição.”