Entre Milei e Bullrich e o suposto mal menor. Um beco sem saída?

Por Silvio Schachter1

 “Aqueles que escolhem o mal menor rapidamente esquecem que estão escolhendo um mal.” Hannah Arendt

Parafraseando Arendt, o mal é banalizado e atualmente não há nada mais banalizado do que a política. Demoraria muito expor aqui todas as limitações e ficções que esta democracia representativa contém em sua versão mais degradada. Por isso, compartilho apenas algumas reflexões e questionamentos que podem contribuir para pensar a conjuntura e, quem sabe, algo mais.

 São muitos os componentes que constroem subjetividades, alguns baseados em interesses de classe e muitos outros mais lábeis e contraditórios, construídos com mecanismos de comunicação e paradigmas culturais, formatados por aqueles que mantêm e hegemonizam com seus recursos os aparatos de dominação ideológica, que, logicamente, determinam também o carácter e o perfil dos processos eleitorais, onde se trata de escolher a partir de um menu predeterminado. Quem vota não decide sobre as opções disponíveis. Sabe-se que no ato de votar cada pessoa cede sua soberania a um representante que não representa, pois nunca faz presente o ausente, o qual em muitos casos desconhece, e que fará uso discricionário do poder cabível, sem mandato ou programa, sem compromisso ou qualquer controle.

“Qual eleição porá fim à desintegração urbana e rural, à miséria psicológica e cultural, à manipulação midiática das massas solitárias, à exploração cada vez mais brutal do trabalho, ao êxodo e ao desenraizamento global dos indivíduos, à poluição industrial do ar que respiramos, da água que bebemos e dos alimentos que ingerimos? Votar não é um ato, é uma delegação de poder. Em essência, o voto, ato individual originado na cabine eleitoral, que delega a outrem o poder de agir, não obriga a nada.” Alèssi Dell’Umbria

O Kirchnerismo e seus parceiros menores não podem ignorar este quadro angustiante, pois contribuíram para o esvaziamento político e ideológico que fez desta democracia e especificamente da campanha eleitoral uma pantomima neurótica. Desde sua origem, o Kirchnerismo foi perdendo sua capacidade disruptiva, coagulando-se com um peronismo cada vez mais à direita. Apoiou personagens desastrosos como Daniel Scioli, Alberto Fernández e agora Sergio Massa, candidato repudiado por suas próprias tropas, uma figura por quem ninguém quer militar, a não ser pela pouco inspiradora lógica do medo e do mal menor. Um candidato que desvalorizou a moeda no dia seguinte às eleições, o que gerou uma nova espiral inflacionária com o consequente golpe nos salários e nas pensões miseráveis, um personagem que cumpre rigorosamente as diretrizes e compromissos com o FMI, que olha para o outro lado quando reprime seu amigo Morales em Jujuy ou diante do crime de Facundo no Obelisco, que atua com o apoio implícito de Cristina Fernández, determinante em seu papel de eleitora unipessoal dos últimos candidatos presidenciais do peronismo e seus asseclas e, por sua vez, vice-presidente ausente do pouco apresentável Alberto Fernández. De fato, todos aceitam o domínio dos poderes extraterritoriais incontroláveis, perante os quais a imagem do Estado soberano se apresenta apenas como uma figura retórica. Transigem com o que coloca o poder real cada vez mais longe da política, o que é absolutamente certo nesta época do capital globalizado ante o qual se rendem por vocação ou resignação.

Muda, tudo muda

Pouco se pensou sobre a influência exercida no comportamento político pelas mudanças metabólicas que o capitalismo realizou desde a entrada em ação de seu modo neoliberal ou tardio e globalizado. A financeirização dominante, a uberização do trabalho, a destruição do emprego formal, a desterritorialização das empresas, o mundo do delivery e do homeworking, o desaparecimento dos direitos trabalhistas anunciado como favorável ​​ao trabalhador, que conquistaria a independência, o controle sobre seu próprio tempo, são algumas dentre outras mudanças nas relações socioeconômicas que configuram novos tipos de sujeitos, que se expressam politicamente de uma forma volátil e caótica. As identidades políticas históricas ficam confusas, e, ao mesmo tempo, desgastam-se as liturgias esclerosadas que invocam um passado distributivo. Para a maioria, as instituições que entraram na era da expiração programada, incapazes de responder às exigências de uma sociedade que sofre de uma patologia estrutural, não funcionam.

Segundo uma consultora, 69% dos eleitores de Milei têm menos de 35 anos, 23% estão abaixo da linha de pobreza e 61% têm trabalho informal. Seria necessário ver a composição dos que votaram no JXC apoiando o discurso estigmatizante e ferozmente repressivo de Bullrich e Larreta. A descrição de fascistas ou neofascistas, para a ultradireita atual, com toda a carga simbólica desta caracterização, não é suficiente para descrever semelhanças e diferenças no fenômeno do seu ressurgimento um século depois de suas manifestações originais no início do século XX.

A rejeição ao que é estabelecido por um Estado incapaz de cumprir o que prometia não inclui aqueles que são expulsos para a margem. Aqueles que optam por seguir o messias do liberalismo apocalíptico não se assemelham àqueles que protagonizaram o “Que se vayan todos” de 2001. Este momento atual não é construído pelas lutas acumuladas contra a obediência devida, o ponto final, o Menemismo e a gigantesca crise produzida pelo governo da Aliança, tampouco existe o contato geracional entre os jovens rebeldes e uma parte daqueles que já tinham uma história militante. O que hoje caracteriza um setor amplo e diversificado é a inexperiência política e a vida numa comunidade em decomposição e altamente fragmentada. Seres atordoados pela mídia e pelas redes – que lhes falsificam o presente e o passado –, que são oprimidos pela falta de perspectiva e por serem duramente atingidos por um sistema expulsivo que, por um lado, estimula o consumo até o paroxismo, mas, ao mesmo tempo, os centrifuga para fora de seus limites. Jovens que, juntamente com os adultos, convivem com violências de todo tipo, institucionais e criminais. Nenhum candidato presidencial reconsidera mudanças fundamentais nestas condições sociais, nem nos órgãos repressivos. O próprio candidato governista propõe uma legislação penal especial para jovens entre 14 e 18 anos como resposta à criminalidade. Dizem e fazem o que é exigido, mais prisões e mais policiais, um aparato que, como tem sido aplicado, seja capaz de controlar e reprimir aqueles que não estão dispostos a ser eliminados pelo descarte social.

Um setor ao qual nem o progressismo nem a esquerda conseguiram chegar para dar um conteúdo transformador à sua raiva e à sua rejeição às instituições totalmente degradadas e em crise terminal desta democracia burguesa, uma democracia falida na qual quase todas as forças políticas continuam a apostar, sem perceber a justificada descrença generalizada nos estamentos de uma república disfuncional concebida para outra fase do capitalismo e da modernidade.

 A insignificância da política atual

Os setores mais atingidos por esta crise pouco se preocupam com as disputas palacianas. Nenhum candidato propõe um projeto transformador que os tire decisivamente da precariedade e de uma vida que os condena, que lhes ofereça um lugar ativo e protagonista num espaço para a construção de um novo tipo de alternativa, que supere as opções do assistencialismo e/ou a repressão.

“A característica mais significativa da atividade política atual é sua insignificância. Os políticos não têm mais ideias ou programas. Seu único objetivo é permanecer no poder.” Corneluis Castoriadis.

A falta de autocrítica e reflexão é tão nefasta quanto sempre, a memória tendenciosa baseia-se num registro de acontecimentos episódicos não relacionados, como fenômenos isolados, que perderam até mesmo a motivação da mística popular. Com extrema verticalização da prática política, falta de democracia interna nos partidos, onde quem dirige faz e desfaz sem consulta ou debate algum, a maior parte destes pseudopartidos são simples conchas vazias, sem qualquer estrutura, criadas por alguma figura com apetites eleitorais, outros com uma militância pouco exigente que se adaptou a ocupar posições acertadas por lideranças absolutas mistificadas com o manto da infalibilidade. A dúvida é um dos recursos mais poderosos para escapar da naturalização do que está dado, mas é condenada porque desafia lideranças autoritárias. A capacidade de se questionar caiu em desuso, não há respostas porque não há perguntas, e, quando há, são irrelevantes. A mais óbvia: por que depois de todo o tempo decorrido não conseguiram construir um projeto que supere a submissão ao malmenorismo? 

 O pragmatismo e o oportunismo levam à conciliação com autocracias nepotistas de todo tipo, particularmente com aqueles que governam as províncias como satrapias, à manutenção de uma eterna burocracia sindical traidora e desacreditada, a uma política de alianças baseadas no formato de rosca, sem princípios ou programas, somados a um setor importante que confunde militância com trabalho remunerado, são componentes que nos levam a repetidos becos sem saída, porque sempre haverá um pior. Assim, a cada quatro anos volta o recurso calcificado do mal menor e do voto útil, ao qual leva a falta de mobilização, o pouco espírito de luta, o culto ao medo como método para engolir o indigesto, um cardápio completo de sapos pontilhado pelos múltiplos casos de corrupção e um limite poroso que não distingue entre tírios e troianos, como o caso do CEO que num instante deixou de der chefe dos assessores do presidente inexistente para colaborar com a campanha de Bullrich. Durante muito tempo cunharam o conceito humilhante: se quisermos vencer temos que colocar dinheiro no bolso das pessoas. Hoje, o dinheiro vai para pagar a dívida e os encontra órfãos de ideias porque nunca fizeram o debate. O vale tudo explica em parte a crise de credibilidade. Aqueles que deixaram a direita governando para eles, sem confrontá-la, pensando que esse era o caminho para assegurar a governabilidade do status quo, enfrentam-se com uma situação cada vez mais frágil, instável e atormentada.

 Surpresa ou negação

Não leram sobre a razão pela qual Macri triunfou em 2015, nem sobre sua elevada porcentagem em 2019, apesar do desastre que foi seu governo, nem sobre a derrota de 2021, e agora colocam um candidato que é visto como responsável pela continuidade desse desastre, com um presidente que restabelece a fotografia do fugitivo De la Rúa, que depois de tudo que fez e não fez e deveria ter feito se invisibiliza e ninguém quer ter ao seu lado. Também não tomam nota das elevadas taxas de abstenção e de voto em branco, que, em conjunto, em algumas eleições provinciais, atingiram mais de 40%, um sinal inequívoco de indiferença para com as eleições internas partidárias.

 Como Zygmunt Bauman apontou, “As crenças não precisam de coerência para serem críveis”.

Como é que Milei, um energúmeno de extrema direita, inventado e promovido ad nauseam pela mídia, sem história nem construção alguma, e Bullrich, aquela da doutrina Chocobar, uma ignorante de submetralhadora, que balbucia incoerências, têm a possibilidade certa de ser presidentes? Quem está no comando? Ninguém deveria furtar-se à sua responsabilidade. Sempre diante da derrota, que se apresenta como inexplicável, reaparece a figura do culpado, o bode expiatório bíblico, uma sociedade sem memória, pessoas sem cérebro, portadoras de traços genéticos que bloqueiam sua capacidade de pensar, um refúgio que coloca a culpa no outro, sem meditar nas causas nem nas responsabilidades que levaram a este quadro nefasto e desesperador.

 Sem confiança na própria capacidade, a tarefa se limita a esperar que Milei se mande para que um setor do establishment que tinha Larreta como plano A solte a mão de Bullrich ou pretenda condicioná-la. A maior aposta é que o pânico motive quem se absteve. Sair e fazer campanha para Massa? Uma missão tão ingrata que parece impossível, alguém que tem um DNA oportunista, que como testa de ferro do FMI mantém mais de 40% na pobreza, que continua concedendo às empresas do agronegócio e das megaminerações os recursos naturais do país e que não se importa com a natureza e o meio ambiente. Nesta como em outras questões, as coincidências entre os candidatos são absolutas. Se Cristina não pôde ou não quis com o inconsistente Alberto e o deixou fazer ou não o que quisesse, quem condicionaria Massa sem luta nem programa? Estão à vista os resultados de quem votou em imprestáveis dizendo ”depois das eleições veremos”. Só os muito teimosos ou mal-intencionados podem sustentar depois de todo o ocorrido que a direita pode conter a ultradireita.

É comum ouvir que Milei é outro Bolsonaro. Lembro-me de quando alertavam no Brasil que a política de Dilma e a desmobilização do PT abririam caminho à direita e à extrema direita. Isso favoreceu o triunfo do protofascista Bolsonaro, que contou com o apoio dos setores evangélicos mais conservadores, que cresceram, entre múltiplas causas, em razão do espaço que o PT, que também fez aliança com um setor evangélico, deixou-o livre nas favelas e nos bairros pobres, permitindo ao mesmo tempo o desenvolvimento do narcotráfico e a repressão indiscriminada. Novamente, tende-se a ver o resultado, mas não os ingredientes. 

Esperar não é saber

Quem espera, ou se desespera, que o candidato governista dê uma guinada copernicana nestes próximos dois meses, sabe que isso não acontecerá, seguirá o rumo que o FMI vem ditando. Mentem ao povo quando dizem que são recomendações, todos sabem que o pacote é coercivo, a dívida que se recusam a investigar está ligada ao estrito cumprimento das condições impostas. A dupla Bullrich-Milei mantém a mesma linha sem anestesia. Os falsos guerreiros libertários não buscam a liberdade para todos, apenas a leveza de ser para alguns, o que significa uma opressão intolerável para a maioria. 

 Aqueles que pensam diferente e permanecem passivamente observando como Milei e Bullrich continuam hegemonizando o debate na mídia, definindo os eixos sobre o que é discutido e o que não pode ser discutido, contribuem para aumentar as possibilidades da dupla diabólica. Se, como disseram Grabois e seus seguidores, sabendo que estavam perdendo em uma disputa interna mentirosa, seu duvidoso objetivo era gerar força política para condicionar e não dar um cheque em branco, agora eles terão de provar isso. A pior opção é esperar e jogar uma carta única e passiva na eleição que erroneamente consideram “a mãe de todas as batalhas”.

 É decisivo para não repetir os erros recentes, para aqueles que ainda conservam um pouco de raiva digna e vontade transformadora – a esquerda política e social, os movimentos populares de género e de direitos humanos, os trabalhadores e os estudantes –, sair em defesa de seus direitos e confrontar em todos os campos possíveis a direita e a ultradireita, suas ideias e aqueles que com elas conciliam. Seria um capital que criaria melhores condições para o que está por vir. Não fazer nada não só favorecerá as candidaturas de Milei ou Bullrich, mas também capacitará os setores importantes encorajados pelo resultado eleitoral que estão dispostos a escalar ainda mais em seu objetivo de apagar toda a história das conquistas populares.

 Engana-se quem afirma que não é preciso mobilizar-se agora, porque quando a situação apodrecer sairemos todos para resistir e confrontar como sempre fizemos. Não leem a sociedade em que vivemos, tudo o que foi desconstruído ideológica e politicamente nestas décadas. Não veem as mudanças socioculturais e econômicas que o capitalismo selvagem construiu. Como expressou Pierre Bordieu: “as teorias e práticas neoliberais vêm para destruir as estruturas coletivas capazes de resistir à lógica do mercado puro”. É a cultura implacável da não sociedade, que dissolve os vínculos, a reciprocidade, as redes de proteção, e demoliu as pontes que nos uniam como humanidade.

 A geração que décadas atrás saía para colocar seu corpo contra paus e balas desapareceu, e parte da sobrevivente foi cooptada e domesticada. Esta geração jovem não viveu a ditadura, nem o menemismo, nem 2001. Tiveram de viver sem futuro numa sociedade canibalesca, individualista, que cultiva a meritocracia e o hedonismo, tempos de exibição despudorada de riqueza em meio a um oceano de pobreza. Quem pode estudar vai para as salas de aula num momento de sensível monotonia no movimento estudantil e no trabalho acadêmico em geral, numa universidade que foi perdendo seu papel crítico e seu compromisso com os conflitos sociais. Certamente os jovens foram os principais protagonistas das batalhas épicas de género, pelo aborto legal e gratuito, pelo casamento igualitário e pela ampliação dos direitos da comunidade LGBT, mas essa força impressionante, a maré verde, não pôde ou não soube, junto a outros setores combativos, como enfrentar e derrotar Macri, e uma parte importante se retraiu ante a debacle do governo dos Fernández e Massa.

 A ágora e a assembleia soberana desapareceram, foram substituídas pelo shopping e pelo mercado livre, pelo Twitter e pelo Instagram. O público tornou-se privado e o privado é veiculado nas redes. Os ideais de justiça, de igualdade, de bem comum, de solidariedade, de rebeldia ante a opressão foram minimizados, sepultados, pela banalidade da crença na liberdade privatizada, que essencialmente é a não liberdade.

O paradigma neoliberal baseia-se no axioma “isto é o que há, não há alternativa e, se houver, será pior”. Conseguiu impor sua pregação de quão nefastas são as utopias, condenadas ao fracasso. Se se procura explicar a origem de tanta apatia e mediocridade, deve-se encontrá-la nesta política que promove e premia o conformismo e a resignação. Estamos pagando um preço muito alto por esta crença, pela barbárie civilizatória e pelo sofrimento da maior parte da humanidade.


Publicado originalmente em: https://contrahegemoniaweb.com.ar/2023/08/24/entre-milei-o-bullrich-y-el-presunto-mal-menor-atrapados-sin-salida/

Traduzido por: Marlene Petros

Referências

  1. Arquitecto, periodista, ensayista, investigador de temáticas urbanas. Miembro del consejo de redacción de Herramienta, coautor del libro Tiempos violentos, de diversos ensayos y articulos : El ocaso metropolitano, La mancha urbana, Puerto Madero a 25 años, Apropiandose Buenos Aires, El Pro y la derecha metropolitiana, Santa Maria de los malos ayres y otros.

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