Escurece antes do amanhecer, mas o colonialismo dos colonos israelenses chegou ao fim

por Ilán Pappé1, 3 de março, 2024 

O professor Ilan Pappé falou no Dia Anual de Relembrar o Genocídio do IDHC em Londres, Reino Unido, em 21 de janeiro de 2024, sobre a necessidade de compreender que o genocídio de palestinos que estamos presenciando atualmente, por mais brutal que seja, é também o desaparecimento do chamado Estado judeu. Temos que estar preparados para imaginar um novo mundo para além dele.


A ideia de que o sionismo é colonialismo de assentamento não é nova. Os acadêmicos palestinos dos anos sessenta que trabalharam em Beirute no Centro de Investigação da OLP compreenderam que o que se enfrentava na Palestina não era um projeto colonial clássico. Não enquadravam Israel apenas como uma colônia britânica ou estadunidense, também o consideravam um fenômeno que existia em outras partes do mundo; definiam-no como colonialismo de colonos. É interessante que durante 20 ou 30 anos a noção de sionismo como colonialismo de colonos desaparecera do discurso político e acadêmico. Reapareceu quando estudiosos de outras partes do mundo, sobretudo da África do Sul, Austrália e América do Norte, concordaram em que o sionismo é um fenômeno similar ao movimento dos europeus que criaram os Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul. Esta ideia nos ajuda a compreender melhor a natureza do projeto sionista na Palestina desde o final do século XIX até hoje, e nos dá uma ideia do que podemos esperar no futuro.

Creio que esta ideia concreta dos anos 90, que conectava tão claramente as ações dos colonos europeus, especialmente em lugares como América do Norte e Austrália, com as ações dos colonos que chegaram à Palestina no final do século XIX, elucidou claramente as intenções dos colonos judeus que colonizaram a Palestina e a natureza da resistência local palestina a essa colonização. Os colonos seguiram a lógica mais importante adotada pelos movimentos coloniais de colonos, segundo a qual para criar uma comunidade colonial de colonos exitosa fora da Europa há que eliminar os nativos do país que se colonizou. Isso significa que a resistência indígena a esta lógica foi uma luta contra a eliminação e não só pela libertação. Isto é importante quando se pensa no funcionamento do Hamás e em outras operações de resistência palestinas desde 1948.

Os próprios colonos, como no caso de muitos europeus que chegaram à América do Norte, América Central ou Austrália, eram refugiados e vítimas de perseguição. Alguns eram menos desafortunados e só buscavam uma vida melhor e melhores oportunidades. Mas a maioria deles era de párias na Europa que buscavam criar uma Europa em outro lugar, uma nova Europa, no lugar da Europa que não os queria. Na maioria dos casos, elegeram um lugar onde já viviam outras pessoas, os indígenas. E assim, o núcleo mais importante dentre eles foi o de seus líderes e ideólogos, que proporcionaram justificativas religiosas e culturais para a colonização de terras alheias. A isto se pode acrescentar a necessidade de se apoiar em um Império para iniciar a colonização e mantê-la, ainda que oportunamente os colonos tenham se rebelado contra o império que lhes ajudava e exigido e conseguido a independência, que em muitos casos obtiveram, mas logo renovaram sua aliança com o império. A relação anglo-sionista que se converteu em aliança anglo-israelense é um exemplo disso.

A ideia de que se pode eliminar pela força as pessoas da terra que alguém quer é provavelmente mais compreensível – não justificável – no contexto dos séculos XVI, XVII e XVIII, porque ia acompanhada de um respaldo total ao imperialismo e ao colonialismo. Alimentava-se da desumanização comum dos demais povos não ocidentais, não europeus. Se desumanizas as pessoas, podes eliminá-las mais facilmente. O que foi tão singular no sionismo como movimento colonial de colonos é que ele apareceu na cena internacional em um momento no qual as pessoas de todo o mundo haviam começado a repensar sobre os direitos de eliminar os povos indígenas, de eliminar os nativos, e, portanto, podemos, entender o esforço e a energia investidos pelos sionistas e mais tarde pelo Estado de Israel em tratar de encobrir o verdadeiro objetivo de um movimento colonial de colonos como o sionismo, que era a eliminação dos nativos.

Mas hoje em Gaza estão eliminando a população nativa diante de nossos olhos, então porque é que quase renunciaram a 75 anos de tentativas de ocultar suas políticas de eliminação? Para entender isso temos que observar a transformação da natureza do sionismo na Palestina ao longo dos anos.

Nas primeiras fases do projeto colonialista de colonos sionistas, seus dirigentes levavam a cabo suas políticas de eliminação com uma autêntica intenção de fazer a quadratura do círculo, afirmando que era possível construir uma democracia e ao mesmo tempo eliminar a população nativa. Existia um forte desejo de pertencer à comunidade de nações civilizadas e os dirigentes assumiram, sobretudo depois do Holocausto, que as políticas de eliminação não excluiriam Israel dessa associação.

Para a quadratura desse círculo, os dirigentes insistiram em que suas ações de eliminação contra os palestinos eram uma “represália” ou “resposta” às ações palestinas. Mas rapidamente, quando estes dirigentes quiseram passar a ações de eliminação mais substanciais, abandonaram o falso pretexto da “represália” e simplesmente deixaram de justificar o que faziam.

Nesse sentido, existe uma correlação entre a forma pela qual se desenvolveu a limpeza étnica em 1948 e as operações dos israelenses em Gaza hoje. Em 1948, os dirigentes justificavam para si mesmos cada massacre cometido – incluído o infame massacre de Deir Yassine de 9 de abril – como reação a uma ação palestina: independentemente de a ação ter sido atirar pedras em ônibus ou atacar um assentamento judeu, a reação tinha que se apresentar interna e externamente como algo que não surge do nada, como defesa própria. De fato, é por essa razão que o exército israelense se chama “Forças de Defesa de Israel”. Mas como se trata de um projeto colonial de colonos, não se pode confiar sempre nas “represálias”.

As forças sionistas começaram a limpeza étnica durante a Nakba, em fevereiro de 1948; durante um mês todas essas operações foram apresentadas como represálias à oposição palestina ao plano da ONU, de novembro de 1947, de partição da Palestina. Em 10 de março de 1948, os dirigentes sionistas deixaram de falar de represálias e adotaram um plano-diretor para a limpeza étnica da Palestina. Desde março de 1948 até final de 1948, a limpeza étnica da Palestina que conduziu à expulsão de metade da população palestina, à destruição de metade de suas aldeias e à desarabização da maioria de suas cidades foi levada a cabo como parte de um plano-diretor sistemático e intencional de limpeza étnica.

Do mesmo modo, depois da ocupação da Cisjordânia e da Franja de Gaza em junho de 1967, cada vez que Israel queria mudar fundamentalmente a realidade ou empreender uma operação de limpeza étnica em grande escala, prescindia da necessidade de justificação.

Hoje assistimos a um padrão similar. Inicialmente, as ações se apresentaram como represálias à operação Tufun al-Aqsa, mas agora se trata da guerra denominada “espada de guerra”, cujo objetivo é devolver Gaza ao controle direto de Israel, mas limpando etnicamente sua população mediante uma campanha de genocídio. 

A grande pergunta é: por que os políticos, jornalistas e acadêmicos do Ocidente caíram na mesma cilada em que haviam caído em 1948? Como é possível que ainda hoje acreditem na ideia de que Israel está se defendendo na Franja de Gaza? Que está reagindo às ações de 7 de outubro?

Ou talvez não estejam caindo na cilada. Pode ser que saibam que o que Israel está fazendo em Gaza é utilizar o 7 de outubro como pretexto.

Em qualquer caso, até agora, o fato de os israelenses invocarem um pretexto cada vez que agridem os palestinos em ajudado o Estado a manter o escudo de imunidade que lhe permitia levar a cabo suas políticas criminosas sem temor a nenhuma reação significativa da comunidade internacional. O pretexto ajudou a acentuar a imagem de Israel como parte do mundo democrático e ocidental, e, portanto, além de qualquer condenação e sanção. Todo esse discurso de defesa e represálias é importante para o escudo de imunidade de que goza Israel por parte dos governos do Norte Global.

Mas, como em 1948, também hoje Israel, à medida que se prolonga sua operação, prescinde do pretexto, e é então que até mesmo para seus maiores apoiadores resulta difícil respaldar suas políticas. A magnitude da destruição, os assassinatos em massa em Gaza, o genocídio estão em um nível tal que para os israelenses fica cada vez mais difícil persuadir-se de que o que estão fazendo é realmente autodefesa ou reação. Assim, é possível que no futuro seja difícil a cada vez mais pessoas aceitar esta explicação israelense do genocídio em Gaza.

Para a maioria das pessoas está claro que o que faz falta é um contexto e não um pretexto. Histórica e ideologicamente, está muito claro que o 7 de outubro é utilizado como pretexto para completar o que o movimento sionista foi incapaz de completar em 1948.

Em 1948, o movimento colonial de colonos do sionismo utilizou um conjunto particular de circunstâncias históricas, sobre as quais escrevi detalhadamente em meu livro The Ethnic Cleansing of Palestine

(La limpeza étnica de Palestina), para expulsar a metade da população da Palestina. Como já mencionei, no processo destruíram a metade dos povoados palestinos, demoliram a maioria das cidades palestinas e, no entanto, a metade dos palestinos permaneceram na Palestina. Os palestinos que se converteram em refugiados fora das fronteiras da Palestina continuaram a resistência dos palestinos, e, portanto, o ideal colonizador dos colonos de eliminar o nativo não se cumpriu e Israel, incrementalmente, utilizou todo seu poder desde 1948 até hoje para continuar com a eliminação do nativo.

A eliminação do nativo, do princípio ao fim, inclui não apenas uma operação militar, pela qual se ocupa um lugar, se massacram as pessoas ou se as expulsam. A eliminação tem que estar justificada ou converter-se em uma inércia, e a maneira de fazê-lo é pela desumanização constante daqueles que se pretende eliminar. Não se pode matar massivamente as pessoas ou praticar genocídio contra elas a menos que elas sejam desumanizadas. Assim, a desumanização dos palestinos é uma mensagem explícita e implícita transmitida aos judeus israelenses através de seu sistema educativo, seu sistema de socialização no exército, os meios de comunicação e o discurso político. Essa mensagem deve ser transmitida e mantida se se quiser completar a eliminação.

Portanto, estamos assistindo a uma nova tentativa especialmente cruel de completar a eliminação. Todavia, nem tudo é inútil. De fato, ironicamente, esta particular destruição desumana de Gaza expõe o fracasso do projeto colonial dos colonos do sionismo. Isso pode soar absurdo, porque estou descrevendo um conflito entre um pequeno movimento de resistência, o movimento de libertação palestino, e um poderoso Estado com uma máquina militar e uma infraestrutura ideológica centradas unicamente na destruição do povo autóctone da Palestina. Este movimento de libertação não tem uma aliança forte por trás dele, ao passo que o Estado com que se enfrenta goza de uma poderosa aliança que o apoia – desde os Estados Unidos às corporações multinacionais, empresas de segurança da indústria militar, meios de comunicação dominantes e academia dominante. Estamos falando de algo que quase soa desesperado e deprimente porque há essa imunidade internacional para as políticas de eliminação existentes desde as primeiras etapas do sionismo até hoje. Será provavelmente o pior capítulo da tentativa israelense de impulsionar as políticas de eliminação a um novo nível, em um esforço muito mais concentrado de matar milhares de pessoas em um curto período de tempo, como nunca haviam se atrevido a fazer antes.

Então, como pode ser também um momento de esperança? Em primeiro lugar, este tipo de entidade política, um Estado, que tem que manter a desumanização dos palestinos para justificar sua eliminação, é uma base muito instável se olharmos para um futuro mais distante.

Essa debilidade estrutural já era evidente antes do 7 de outubro, e parte dessa debilidade é o fato de que se o projeto de eliminação é cancelado, há muito pouco que una o grupo de pessoas que se definem a si próprias como a nação judia em Israel.

Se se exclui a necessidade de lutar contra os palestinos e eliminá-los, fica-se com dois bandos judeus rivais, que vimos realmente lutando nas ruas de Tel Aviv e Jerusalém até o 6 de outubro de 2023. Enormes manifestações de judeus laicos, aqueles que descrevem a si mesmos como judeus laicos – em sua maioria de origem europeia –, que creem ser possível criar um estado democrático pluralista enquanto se mantém a ocupação e o apartheid para os palestinos dentro de Israel, se enfrentavam com um novo tipo de sionismo messiânico que se desenvolveu nos assentamentos judeus da Cisjordânia, o que eu chamei em outro lugar de Estado da Judeia, que apareceu de repente entre nós, acreditando que agora têm a forma de criar uma espécie de teocracia sionista sem nenhuma consideração pela democracia, e acreditando que esta é a única visão para um futuro Estado judeu.

Não há nada em comum entra essas duas visões, a não ser uma coisa: a ambos os campos não importam os palestinos, ambos os campos creem que a sobrevivência de Israel depende da continuidade das políticas de eliminação para os palestinos. Isso não se sustentará. Isso vai se desintegrar e implodir por dentro, porque no século XXI não se pode manter unido um Estado e uma sociedade sobre o fundamento de que seu sentimento compartilhado de pertencimento é fazer parte de um projeto genocida de eliminação. Pode funcionar definitivamente para alguns, mas não para todos.

Já vimos indícios disso antes de 7 de outubro, como os casos de israelenses que têm oportunidades em outras partes do mundo em razão de sua dupla nacionalidade, suas profissões e suas capacidades financeiras, e estão pensando seriamente em transferir tanto seu dinheiro como a si mesmos para fora do Estado de Israel. O que restará é uma sociedade economicamente débil, dirigida por esse tipo de fusão de sionismo messiânico com racismo e políticas de eliminação para os palestinos. Sim, a balança do poder a princípio estaria do lado da eliminação, não com as vítimas da eliminação, mas a balança do poder não é só local, a balança do poder é regional e internacional, e quanto mais opressivas forem as políticas de eliminação (e é terrível dizer isso, mas é verdade) menos poderão se ocultar sob a justificativa de “resposta” ou “represália” e mais serão vistas como uma brutal política de genocídio. Portanto, é menos provável que a imunidade de que goza Israel hoje continue no futuro.

Portanto, realmente acredito que o que estamos vivendo neste momento tão obscuro – e é um momento obscuro porque a eliminação dos palestinos passou para um novo nível – não tem precedentes. Em termos do discurso empregado por Israel, e da intensidade e propósito das políticas de eliminação, não houve um período assim na história – esta é uma nova fase da brutalidade contra os palestinos. Nem mesmo a Nakba, que foi uma catástrofe inimaginável, pode ser comparada com o que estamos vendo agora e com o que vamos ver nos próximos meses. Em minha opinião, estamos nos três primeiros meses de um período de dois anos que será testemunha do pior tipo de horrores que Israel pode infligir aos palestinos.

Mas mesmo neste obscuro momento devemos compreender que os projetos coloniais dos colonizadores que se desintegram sempre utilizam os piores meios para tentar salvar seu projeto. Assim ocorreu na África do Sul e no Vietnam do Sul. Não digo isso como um desejo, nem como um ativista político: digo-o como estudioso de Israel e Palestina com toda a confiança de minhas qualificações acadêmicas. Sobre a base de um sóbrio exame profissional, afirmo que estamos assistindo ao final do projeto sionista, não há dúvida.

Este projeto histórico chegou ao fim e se trata de um final violento: este tipo de projeto costuma colapsar violentamente, razão pela qual se trata de um momento muito perigoso para suas vítimas, e as vítimas são sempre os palestinos, juntamente com os judeus, porque os judeus também são vítimas do sionismo. Portanto, o processo de colapso não é só um momento de esperança, é também o amanhecer que surgirá depois da escuridão, e é a luz no fim do túnel.

Não obstante, um colapso assim produz um vazio. O vazio aparece de repente; é como um muro que erode lentamente pelas fendas que se abrem nele, mas logo desaba em um instante. E é preciso estar preparado para esses colapsos, para o desaparecimento de um Estado ou a desintegração de um projeto colonial de colonos. Vimos o que ocorreu no mundo árabe, quando o caos do vazio não foi preenchido por nenhum projeto construtivo e alternativo; em tal caso o caos continua.

Uma coisa está clara: quem procura uma alternativa ao Estado sionista não deve buscar na Europa ou no Ocidente modelos que substituam o Estado que se derruba. Há modelos muito melhores que são locais e são legados dos passados recentes e mais distantes do Mashraq (o Mediterrâneo oriental) e do mundo árabe em seu conjunto. O grande período otomano conta com modelos e legados deste tipo que podem nos ajudar a tomar ideias do passado para olhar para o futuro.

Esses modelos podem nos ajudar a construir um tipo de sociedade muito diferente, que respeite as identidades coletivas assim como os direitos individuais, e que se construa, do zero, como um novo tipo de modelo que se beneficie da aprendizagem dos erros da descolonização em muitas partes do mundo, incluídos o mundo árabe e a África. É de esperar que isso crie um tipo diferente de entidade política que teria um impacto enorme e positivo em todo o mundo árabe.


Publicado originalmente em: https://www.sinpermiso.info/textos/oscurece-antes-del-amanecer-pero-el-colonialismo-de-los-colonos-israelies-ha-llegado-a-su-fin

Tradução e revisão: Marlene Petros

Referências

  1. Ilan Pappé é um crítico historiador israelense, professor de história na Universidade de Exeter, no Reino Unido, autor, entre outros títulos, de A limpeza étnica da Palestina

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