#Especial: Intervenção nas IFES: Só com luta nacional poderá ser restabelecida a democracia

Um conjunto de princípios fundamenta a Universidade pública como patrimônio social presente e futuro. Entre eles a exigência de que a Universidade seja democrática no seu acesso, na destinação de sua produção, no seu funcionamento, nas suas deliberações e na livre escolha dos seus dirigentes.

Sobre esse último ponto, a partir das lutas concretas travadas desde os anos 1980, com intensos debates realizados em todo o país, ficou consolidado o firme posicionamento na “Proposta do ANDES—SN Para a Universidade Brasileira”: 

Os dirigentes universitários devem ser escolhidos por meio de eleições diretas e voto secreto, com participação, universal ou paritária, de todos os docentes, estudantes, técnico-administrativos. O processo de escolha encerra-se no âmbito da instituição e a posse deve ocorrer imediatamente ao término do mandato anterior (Caderno 2, 2013, p.25). 

Nos anos 1980, em plena ditadura empresarial-militar, foi preciso enfrentar a norma mais grosseira de intervenção para nomeação dos dirigentes das universidades federais, quando o gabinete do General Figueiredo promulgou o Decreto-Lei 6733, em 4 de dezembro de 1979. Em seus dois únicos artigos, não houve sequer a cautela de disfarçar o caráter autoritário:

Art. 1º Serão livremente escolhidos e nomeados, em comissão, pelo Presidente da República os dirigentes das fundações instituídas ou mantidas pela União, qualquer que seja sua natureza ou finalidade e sem prejuízo de sua autonomia administrativa e financeira. 

Art. 2º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições gerais e especiais em contrário.

Nem mesmo naquelas circunstâncias a comunidade universitária se sujeitou. Ao contrário, a medida autoritária foi o estopim de amplo movimento, especialmente nas universidades fundacionais, que elegeu diretamente e conquistou a nomeação de reitores eleitos em várias instituições a partir da mobilização das suas comunidades. Em grande medida, a expressão deste movimento resultou também no preceito “gestão democrática”, firmado no artigo 206 da Constituição de 1988, que expressa a sua regência de forma combinada com a “autonomia universitária”, consagrada no artigo seguinte. 

Houve um grande avanço democrático nas experiências desenvolvidas em quase todas as universidades federais no período que se seguiu, porém o tema jamais foi pacificado nem superou conflitos e contradições atinentes às disputas de poder por seu viés autoritário. Nas intervenções, ou tentativas de intervenção, sempre estiveram combinados movimentos externos, de governantes, de partidos políticos ou de setores da elite econômica, com núcleos conservadores da própria instituição. 

Antes da Medida Provisória 914/2019 editada por Bolsonaro, logo considerada inconstitucional, a medida mais ardilosa para tentar barrar o vigoroso movimento democrático estabelecido nas universidades federais foi adotada em 1995 por iniciativa do governo FHC e capitaneada por Paulo Renato Souza, seu ministro da Educação. Por meio da Lei nº 9192/1995, da LDB 9394/1996 e do Decreto 1.916, de 23 de maio de 1996, pela primeira vez, limites passaram a ser incluídos na legislação para os casos de consulta à comunidade universitária. Em ambas, está explícita a intervenção do governo na forma de escolha dos dirigentes e na composição dos órgãos colegiados e deliberativos cujos critérios centralizam-se no MEC impondo que os docentes deverão ocupar 70% dos assentos em cada órgão colegiado, assim como nos processos de escolha dos dirigentes. 

Em 2007, no governo de Lula da Silva, o Decreto 1916 sofreu modificação por meio do Decreto 6.264/2007, estabelecendo que somente Professor Titular ou Professor Associado poderia integrar as “listas tríplices”. Apesar de toda luta do movimento docente contra a intervenção dos governos nos processos de escolha e nomeação de dirigentes e de todas as formas de cerceamento da autonomia universitária, mesmo decorridos 25 anos e o transcurso de vários governos, tal ardil permanece em vigor, juntamente com a figura da “lista tríplice”.

Desde a posse do atual governo, as Universidades federais e os Institutos Federais, têm sido atacados em total desrespeito à sua autonomia garantida pelo artigo 207 da Constituição Federal de 1988. Essa realidade se torna mais concreta desde o corte brutal de recursos para o financiamento dessas IES à imposição de interventores ou nomeação dos últimos indicados nas “listas tríplices” formadas pelos Colegiados superiores dessas instituições.

Já são 21 IES públicas federais dirigidas por interventores nomeados por Bolsonaro, seja o último da lista tríplice ou até mesmo sem ter integrado tais listas: UNIFESSPA; UFPI; UNILAB; UFC; UFERSA; UNIVASF; UFPB; UFS; UFRB; UFVJM; UFES; CEFET RJ; UFTM; UFFS; IFSC; UFRGS; UFGD; UNIFEI; UNIRIO e UFPEL. A comunidade universitária, em especial os servidores docentes e técnicos-administrativos dessas IES, vem sofrendo perseguições de diversas naturezas, tendo que responder a processos administrativos (PAD), denúncias intimidatórias às ouvidorias e ao Ministério Público, além de impedimento de progressões funcionais, dentre outras medidas autoritárias adotadas por interventores, numa prática que materializa a violência punitivista diante de qualquer manifestação de discordância. Outra medida que tem sido adotada é alterar a composição dos colegiados superiores de forma arbitrária, desrespeitando inclusive os regimentos das instituições. É importante destacar a vitória da comunidade acadêmica do IFRN que, após mais de seis meses de luta contra a nomeação de um interventor, finalmente, no dia 21 de dezembro, o reitor eleito foi nomeado pelo Presidente Bolsonaro.

A participação democrática na escolha de dirigentes está em risco e a experiência recente tem demonstrado que foram especialmente golpeadas as IES nas quais alguns setores iludiram-se, sob argumento de que estariam protegidas da intervenção, ajustando o processo interno ao pé da letra da Lei, especialmente no peso de 70% aos docentes.

O ataque à autonomia e à democracia nas instituições de ensino superior federais tem impacto, não apenas administrativo, mas no ethos acadêmico dessas IES numa tentativa de alterar de forma autoritária a própria natureza da universidade pública brasileira destruindo esse patrimônio que pertence ao povo e não a governos de plantão. A reversão desse processo somente será possível se a luta for assumida nacionalmente, inclusive por que sua gravidade é maior do que a soma de cada um dos episódios isoladamente.

O governo Bolsonaro, respondendo particularmente ao núcleo do fundamentalismo ideológico, elegeu a  educação como uma das pautas prioritárias para sua ofensiva.  Inspirados pela pseudo-epistemologia de Olavo de Carvalho, mobilizam uma cruzada contra o suposto marxismo cultural que dominaria as IES públicas no país.  Os dois pilares essenciais para a viabilidade dessas instituições vêm sendo alvos de esvaziamento, quais sejam, o financiamento público e a autonomia universitária. 

Esse fenômeno deve ser compreendido no quadro de acirramento das contradições entre capital e trabalho, mediado pelo endurecimento da agenda neoliberal. Novos elementos apontados por Wendy Brown (2019) indicam as acomodações de conveniência entre os interesses econômicos neoliberais com a moral conservadora que visa proteger as hierarquias tradicionais. Como consequência, ocorre o enfraquecimento das democracias liberais e o abandono de pactos fundados em compromissos de justiça social. Instituições sociais republicanas se tornam alvo, e as universidades públicas estiveram imbricadas na constituição das bases históricas do Brasil-República.

É preciso reconhecer as sucessivas omissões, em particular de governos ditos progressistas. Dispunham de poder político e apoio popular para revogação das normas draconianas que restringem o exercício da autonomia na escolha dos dirigentes das IES públicas e não o fizeram.

Obscurantismo, anti-intelectualismo, anti-cientificismo assumidos pelo governo e forças sociais bolsonaristas, reverberam também em vários setores sociais em meio a maior crise sanitária e humanitária deste século. O aumento no percentual de brasileiros que não pretendem se vacinar é um dado da realidade que precisamos enfrentar e estamos desafiados a disputar. 

Por outro lado, a condição de dependência e subalternidade econômica do país assumida pelos blocos hegemônicos, corrobora a política de desmonte da educação, ciência e tecnologia. Na sua ótica míope e anti-popular, universidade pública, balizada por ensino, pesquisa e extensão. é uma suntuosidade, desnecessária. Observa-se o beneplácito dessa elite econômica e política do país diante das ofensivas do governo Bolsonaro à autonomia universitária. 

Esperar que o STF seja a instância mediadora desse ataque é temerário.  Apostar na lógica da legalidade talvez não seja suficiente, diante do relativismo jurídico que tomou de assalto o país. A história recente fornece incontáveis exemplos do conservadorismo das decisões da corte suprema.  O poder judiciário, reiteradamente, assume posição da classe dominante e vem apoiando o esfacelamento da democracia liberal burguesa.

Internamente às universidades é preciso um enérgico chamado ao rigor quanto ao caráter público da instituição, reconhecendo que alguns setores internos têm sido agentes passivos ou ativos de interferências heterônomas, nitidamente mercadológicas, que enfraquecem o argumento e a luta em defesa da autonomia e da democracia.

Dessa forma, alguns desafios se colocam à universidade pública e às forças sociais progressistas que a apoiam:

  1. reaglutinar os movimentos sociais e populares em torno da defesa da universidade, institutos e centros federais;
  2. fortalecer a atuação do ANDES-SN, retomando a centralidade da formação política e a mobilização das bases;
  3. buscar apoio parlamentar na construção de uma “Frente de defesa da Universidade pública”;
  4. investir em campanhas nacionais, por diferentes meios de comunicação, sobre a função social da universidade pública e a sua importância para o desenvolvimento econômico, social, cultural e artístico do país;
  5. construir firme oposição ao conjunto de medidas regressivas contra a Universidade pública, incluindo o Future-se.

Não há alternativa, senão as lutas populares e sindicais na defesa radical da Universidade pública, gratuita, laica, democrática, inclusiva e socialmente referenciada. 


Vera Lúcia Jacob Chaves – UFPA, Rhoberta Santana de Araújo – UFPB, Luiz Henrique Schuch – UFPEL, membros do Coletivo Rosa Luxemburgo no ANDES-SN.

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