A mercantilização das terras e dos rios e os dilemas da esquerda
Por: Francisco Pinto
Notícias recentes sobre a intenção de retomada da construção da linha de transmissão que ligaria Manaus e Boa Vista, cruzando a reserva indígena Waimiri-Atroari, reafirmam que o projeto do governo Bolsonaro, que conjuga devastação ambiental acelerada e avanço sobre os direitos dos povos indígenas, segue progredindo sem dificuldades1. Ao mesmo tempo, algumas reações à retomada da construção, licitada ainda durante o governo Dilma Rousseff, nos remetem às contradições e limitações do discurso e do projeto “desenvolvimentista” defendido pela esquerda da ordem, que igualmente contempla a progressiva mercantilização da água e das florestas.
Linhão Manaus-Boa Vista: o projeto
Em 2011, o governo Dilma Rousseff promoveu o leilão da linha de transmissão de energia elétrica que ligaria Manaus a Boa Vista, conectando a última capital ainda não integrante do Sistema Interligado Nacional (SIN). À época, Boa Vista e grande parte do estado de Roraima eram abastecidos com energia elétrica importada da Venezuela.
O Ministério de Minas e Energia, então comandado por Edison Lobão (PMDB-MA), optou no projeto por um trajeto para a linha de transmissão que corta a região central da reserva Waimiri Atroari, seguindo basicamente a rota da famigerada rodovia BR-1742. A escolha desse projeto como forma de baratear o fornecimento de energia elétrica no estado de Roraima foi feita em detrimento de diversas opções possíveis. Além de alternativas de trajetos para a linha que evitariam a reserva indígena, havia também opções de projetos para geração de energia elétrica no estado que poderiam levar à autossuficiência energética com a utilização de fontes de energia alternativas3.
O Ministério Público Federal questionou os estudos apresentados para licitação da linha, chegando a afirmar que “a Agência Nacional de Energia Elétrica definiu um traçado para o empreendimento sem qualquer estudo prévio e sem a observância do direito de consulta ao povo Waimiri-Atroari. Por essa razão, o MPF no Amazonas propôs duas ações civis públicas, que foram acolhidas na Justiça Federal. As ações destacam que o Estado brasileiro não considerou alternativas locacionais e sequer fez algum tipo de análise técnica sobre as características da terra indígena. Houve apenas um voo de helicóptero sobre a área.” Os questionamentos ao projeto, somados ao desgaste do governo com a realização de outras obras de grande impacto ambiental, como Belo Monte e Jirau, e as dificuldades, tanto para obter as licenças ambientais quanto para estabelecer um acordo com os indígenas, acabaram paralisando o projeto na sua fase inicial.
A retomada do projeto e o discurso oficial do governo Bolsonaro
No Diário Oficial da União de 28/02/2019, o atual governo classificou como “de interesse da Política de Defesa Nacional” a construção da linha de transmissão Manaus (AM)/Boa Vista (RR) dentro da Terra Indígena (TI) Waimiri-Atroari. O governo usa a suposta dependência de importação da energia elétrica da Venezuela como cortina de fumaça na tentativa de justificar seu posicionamento.
Ainda que a interrupção do contrato de importação de energia elétrica com o país vizinho e a contratação emergencial de usinas térmicas a Diesel para sua substituição tenham acarretado uma dificuldade no curto prazo e um custo adicional para a geração de energia elétrica (custo esse que atualmente é coberto pela Conta de Desenvolvimento Energético e rateado para todos os consumidores do país), as características técnicas da linha de transmissão revelam que existem muito mais interesses por trás da tentativa do projeto da linha e de sua retomada.
A linha de transmissão foi planejada para levar energia do Sistema Interligado Nacional (SIN) para Boa Vista, mas também tem capacidade para levar a energia elétrica excedente do estado de Roraima para o restante do país. Apesar disso não constar nos discursos oficiais, os relatórios técnicos do governo confirmam o fato4. Isso se explica porque estudos feitos pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) entre 2007 e 2010 identificaram potencial de geração de energia elétrica de aproximadamente 1000 MW em aproveitamentos hidrelétricos na Bacia do Rio Branco e redondezas. O estudo fala da possibilidade de construção de quatro hidrelétricas no estado de Roraima (Cotingo, Bem-Querer, Paredão 1 e Paredão 2), sendo a principal delas nas corredeiras do Bem Querer, no município de Caracaraí, com 650 MW5.
Além do potencial para aproveitamentos hidrelétricos, a região também é conhecida pelas suas reservas minerais, inclusive dentro da área da reserva indígena Waimiri Atroari. A implantação de hidrelétricas e a exploração de minério muitas vezes andam juntas. Não é raro ver empresas de exploração de minério e outros grandes consumidores de energia entrando como sócios de usinas de energia elétrica, pois isso pode significar acesso mais barato à energia. Provavelmente não por acaso, o anúncio da retomada da obra da linha de transmissão coincidiu com o PL 191/2020, que libera a mineração em terras indígenas, através do qual, nas palavras do Secretário de Minas e Energia do governo federal, o “Brasil avançará em mineração de novas áreas, incluindo indígenas”6 7.
Descaminhos da esquerda da ordem
A gravidade da situação fica patente quando, a despeito das reiteradas críticas de ambientalistas e movimentos sociais, a esquerda da ordem insiste na defesa de um anacrônico programa alternativo, que se diferencia do projeto do atual governo apenas no que se refere à participação das empresas estatais no processo de expansão das fronteiras para exploração do capital e, supostamente, na qualidade das concessões a serem feitas paras as populações atingidas.8
Daí derivam vários problemas. De um lado, fica claro que as lideranças ligadas à esquerda da ordem ainda não perceberam que o único interesse das forças atualmente no poder é a radicalização do projeto de mercantilização das águas e florestas. Além disso, mostra também que essas lideranças são incapazes de perceber que o retorno à lógica de um passado que produziu Belo Monte e Jirau ao mesmo tempo em que eram dados subsídios para o consumo de energia do agronegócio, além não ser alcançável, também não é desejável. Percebemos assim que, no essencial, as divergências entre o atual governo e a esquerda da ordem se restringem a uma suposta dosagem do ritmo de expansão da exploração mercantil dos rios e florestas da Amazônia.
A escolha pela construção dessa linha de transmissão, feita ainda no governo Dilma, da mesma forma que a decisão pela sua retomada agora, abrindo espaço para que num futuro próximo se viabilize a construção de hidrelétricas no estado de Roraima e podendo funcionar como um estímulo à expansão da exploração de minério na região, é um corolário de uma política que se nega a ir às raízes mais profundas dos nossos problemas e que, por isso, é incapaz de perceber que a pressão constante para conquista de novas fronteiras para a exploração é estruturada pelo capitalismo.
A submissão da terra aos imperativos do mercado está atrelada a ideia, muito presente na esquerda da ordem, de que seria possível conciliar a exploração do meio ambiente inerente à lógica do capital, e, ao mesmo tempo, continuar a promover indústrias sujas de baixo conteúdo tecnológico e elevado consumo energético, bem como continuar sendo o celeiro agrícola e mineral da economia global. Ignoram, assim, que o combate à devastação do meio ambiente precisa enfrentar o capitalismo que é o motor que pressiona de forma constante pela continuidade da destruição da natureza.
Dado que a natureza não é uma fonte inesgotável de recursos, é o capitalismo, portanto, o responsável pela contínua destruição dos recursos naturais do planeta. Essa destruição da natureza que já nos obriga a ter que lidar com os impactos das mudanças climáticas em curso. Não podemos continuar a jogar lenha em uma fogueira que está literalmente cada vez mais perto de nós. Não podemos nos contentar a apenas reduzir o ritmo da destruição do meio ambiente. É preciso construir os meios para promover a reconciliação do ser humano com a natureza e isso terá necessariamente que passar pela mudança qualitativa do nosso modo de produzir e viver e só será possível com a superação da subordinação da vida ao jugo do capital e com a consequente submissão das necessidades sociais aos imperativos do equilíbrio ecológico.
Referências
- https://folhabv.com.br/noticia/CIDADES/Economia/Indios-comecarao-a-discutir-autorizacao-para-passagem-de-linhao–/69097; e https://www.canalenergia.com.br/noticias/53136649/licenciamento-da-lt-boa-vista-sera-retomado-apos-a-pandemia-segundo-ppi
- https://www.terra.com.br/noticias/brasil/indigenas-brigam-para-serem-ouvidos-sobre-obra-prometida-por-bolsonaro,b9788a67983b2f547a095488d38bd2b1tmw2va35.html
- https://epbr.com.br/wp-content/uploads/2019/06/Nota-Tecnica-Linhao-Manaus-Boa-Vista-V3.pdf
- “Além do papel de atendimento ao mercado de energia elétrica do estado de Roraima, esse sistema permitirá o escoamento do excedente de energia dos futuros aproveitamentos hidrelétricos da bacia do Rio Branco, ora em estudo.” (pág.124). (…) “Nesse Plano Decenal, considerando a importância desse sistema não só para suprimento à carga, mas também para escoamento do excedente de energia gerado pela UHE Bem Querer, foi considerada referencialmente a entrada em operação da LT 500 kV Lechuga – Equador – Boa Vista até 2027.” (pág.133). https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-422/PDE%202029.pdf
- http://www.uhebemquerer.com.br/
- A construção da linha de transmissão representa uma grave ameaça à preservação da reserva Waimiri-Atroari e à parcela dos povos originários que conseguiu sobreviver ao massacre ocorrido na década de setenta do século XX. Nesse período, essa população indígena foi atacada e reduzida a menos de 20% dos habitantes em meio a conflitos envolvendo a construção da rodovia BR-174, que liga a Manaus a Boavista, projetos de mineração e construção de hidrelétricas na região (especialmente Balbina)
- https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/09/brasil-avancara-em-mineracao-de-novas-areas-incluindo-indigenas-diz-secretario.shtml
- http://fenatema.org.br/noticia/federacao-aponta-ao-vice-presidente-da-republica-riscos-a-soberania-nacional/5632