Marxismo para além da economia política, um elogio

Por Démerson Dias1

“Marx” é, sobretudo, o método. E o método marxista passa por Hegel (sobre os ombros de gigantes, como se diz).

Marxistas colocam o conteúdo acima do método. Todos eles.

E Marx não nos convocou sermos marxistas. Está suficientemente explicitado, na própria elaboração, que almejava a emancipação comunista. Esse é o desafio que Marx legou a seus sucessores. Alcançar o comunismo, não explicar, mesmo que pelos meios mais exóticos, criativos e intrincados, o funcionamento do capitalismo.

A barbárie em que estamos imersos não é uma fatalidade. É projeto político. Tanto, que é indistinguível das formas de consumo, que, por sua vez, compreendem a causa de destruição paulatina e gradativa do planeta e, por tabela, da própria humanidade.

Especialistas insistem em decifrar apenas fenômenos (epifenômenos) econômicos da política de extermínio em escala industrial, que caracteriza o capitalismo. 

E nem mesmo setores à esquerda se dedicam a estabelecer os vínculos absolutos e indissociáveis entre produção e destruição, entre riqueza e miséria (por isso, o ecossocialismo e os identitarismos). 

Porque essa é a finalidade da ciência capitalista, separar em escaninhos, fenômenos que são partes ou etapas do mesmo processo e projeto. Economia estuda os efeitos, sociologia estuda suas origens etc, mas nenhuma delas arranha a interdependência entre as partes e sua função no projeto geral. Tem que ser assim, do contrário, o castelo de cartas da racionalidade da economia política se revela e desaparece.

Aliás, a própria barbárie, é mais a forma como as injunções políticas, históricas, sociais, econômicas estão dispostas, do que algo impermeável e monolítico.

Assim como Keynes se inspirou em Marx para produzir uma teoria e política para tirar o capitalismo do lodaçal em que se meteu, é possível que algum teórico capitalista produza nova prestidigitação (como Fukuyama, Yuval Harari está chegando perto disso).

Se Keynes é o maior monumento capitalista salvacionista, depois que os fundamentos clássicos foram pervertidos, ele é explicitamente rejeitado pelos que deveriam defendê-lo, os próprios capitalistas. Existe algo deteriorado e implícito, quando pessoas à esquerda do capitalismo reivindicam um ideólogo capitalista mais do que os próprios sucessores dele.

O deus-mercado não é keynesiano, a rigor nem mesmo é neoliberal. Se existe algo que define o deus-mercado é sua radical irracionalidade, que é reivindicada como virtude.

A economia trafega no território do ilusionismo. O lastro material, a produção, e o próprio capital em sua constituição originária, como expressão de bens e produtos, assumiu sua expressão artificial e razoavelmente arbitrária. Não é acaso, é sintomático, que o que manda no mundo hoje é o cassino das commoditties.

Especialistas, à direita e à esquerda, buscam atribuir elementos de racionalidade baseados em forças produtivas, elas explicam as potencialidades econômicas, mas o mundo capitalista não é produtivista, é financista (e, ainda, e como sempre, usurpador).

E essa foi a natureza de suas crises desde 1929. Não por acaso, um problema com a redução das taxas de lucro, que, hoje em dia, se explicita nos momentos e circunstâncias em que alguém tenta realizar o lucro anunciado como expressão de riqueza pelo mercado financeiro.

Economicistas fingem que não é essa a natureza da crise. Mas ela nasce de forma bastante ordinária, sem vergonha mesmo, quando o sistema bancário sobrepõe sobre um mesmo montante de capital, camadas ilusórias, ou artificiais de moeda e anunciam como rendimento, liquidez e lucro.

Isso move um exército de peões do mercado financeiro a buscar novas etiquetas, adereços e fantasias para sobrepor ao capital primordial e revendê-lo “ad infinitum” (não é tema desse texto o papel que os governos cumprem nessa fantasia).

Basta que um idiota, ou um gênio pergunte, de onde vem esse dinheiro, para que o castelo de caras desabe, inclemente. 

Não é outra a razão para a ascensão da China ao status de império capitalista, em vias de ser “o império”.

O capitalismo buscava o dumping social. O que era crítica corriqueira dos teóricos capitalistas, só serviu para promover disputas esquerdistas no mundo (e no sindicalismo da ordem). O pragmatismo dos capitalistas nunca foi movido por pudor ao explorar mão de obra escrava, semiescrava, ou precarizada. Ao contrário, lançou um pregão reverso do qual a China, finalmente, se saiu vitoriosa. 

Basicamente por que o estado, explicitamente ditatorial, não teve pudor de sujeitar a população à pior condição de exploração para ganhar a parada, e se tornar a maior indústria de bens. De bugigangas feitas de polímero plástico aos componentes mais sofisticados da microeletrônica. 

No entanto, os especialistas ainda teimam que o Silicon Valley é a origem da inovação e riqueza no mundo. Como é possível que os mais ricos do mundo sejam medidos por papel fiduciário, e ninguém questione? Propaganda é mesmo a “alma do negócio”, mas o deus-mercado não se ocupa de questões da alma. Sua alma é o lucro.

Como o capitalismo é definido pela própria irracionalidade, pouco importou ao deus-mercado que esse movimento deslocasse a economia real para a China, mesmo empobrecendo e gerando crises na meca capitalista. O capitalismo, nem muito menos o deus-mercado, não são nacionalistas.

Quem busca virtudes econômicas no capitalismo, ou mesmo razoabilidade, está tratando de outra coisa, não do capitalismo. Em verdade toda “intelligentsia” que maneja conceitos econômicos pautando qualquer laivo de racionalidade na economia política está, basicamente, masturbando construções teóricas que mimetizam comportamentos específicos, pontuais e restritos que existem na ordem capitalista, mas estão mais longe de explicá-la do que Marx jamais esteve.

A questão nunca foi, nem será, explicar o capitalismo. Ele existe e “atua”, independente de explicação e seus objetivos são elementares e pragmáticos. Onde existir probabilidade de maior lucro, ali será o foco primordial do deus-mercado. E o que orbitar em torno dele, serão as rebarbas que irão fomentar ficções e idealismos, acalentando o sonho de que todos possam pôr as mãos na oportunidade mais lucrativa. Fetiche, sobre fetiche, sobre fetiche, diria Frank Herbert.

Os marxistas que se contentam em remoer as conclusões de Marx sobre economia política estão prestando um desserviço à humanidade, desmerecendo sua a “obra da vida” e o projeto político que engajou Marx e Engels. Escapa àqueles o sentido que existe entre a tese onze sobre Feuerbach e o que supostamente, seria o espírito da obra prima de Marx. O projeto de “O capital” ser inacabado deveria ser encarado como reticências, mas o é como ponto de exclamação. Marx não gastaria seu esforço fundamental para explicar o capitalismo, ainda que ele o tenha feito de maneira quase sobrenatural, a ponto de que os próprios capitalistas respeitam e reverenciam mais o arsenal teórico marxista do que dos de Smith e Ricardo e outros.

O Capital não é uma obra sobre economia, é a aplicação do método dialético de Marx e Engels, sobre as mistificações econômicas. Mas não aderiu à economia política, a denunciou. Se sua obra fosse concluída teria reunido as condições para a emancipação sobre o capitalismo.

É necessário parar de fixar olhar e enaltecer os salamaleques inerentes ao gestual capitalista e responder ao seu projeto político autoritário. E não existe forma de fazê-lo sem trazer à superfície e para o protagonismo político, a multidão de excluídos. O intelectual orgânico da classe proletária que não se debruça sobre essa tarefa, está sendo cúmplice do ilusionismo.

Freud explica melhor os mercados do que todo o exército de economistas e especialistas que juram estar decifrando a economia política (depois de Freud, Lacan também sobre os ombros de Hegel) . Não é acidental que Marx tenha se esmerado em começar a explicar o capital (não o capitalismo) pela mercadoria e anuncia o fetiche como seu segredo metafísico.

E ainda existem os iludidos em estágio quase patológico. Os que acham que é possível produzir conhecimento racional e programas de governo a partir dos espasmos de racionalidade que alguns identificam com a mesma convicção das crianças, e alguns adultos de sorte, que encontram imagens coerentes no formato das nuvens.

Referências

  1.  Démerson é funcionário da Justiça Eleitoral de São Paulo desde 1987. Ex-dirigente sindical no judiciário federal 1989 e 2007. No TRE-SP atuou nas áreas de licitações, informática, apoio à magistratura e arquivo geral.

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