Leandro Ramos Pereira
Professor da Universidade Anhembi-Morumbi
Doutor em Economia pela UNICAMP
A disposição do Estado brasileiro de defender a qualquer custo a austeridade fiscal e os interesses do big business levaram-no a uma amálgama negligente e impotente ante aos desafios da contenção da disseminação do Covid-19. O Brasil apresenta-se como uma nau à deriva, à beira do caos, da degradação e da anomia social cujas consequências últimas são, por hora, imprevisíveis.
Passados pouco mais de um mês do início da quarentena, já é possível afirmar que o isolamento social está fracassando em seus objetivos. Ainda que seja necessária sua manutenção, é notório o rápido processo de disseminação da doença em todo o país e em especial na cidade de São Paulo. Dados desta quinta-feira, 30 de abril, registraram 85,3 mil infectados e mais de 5.900 mortos (435 apenas em vinte e quatro horas). Os leitos exclusivos para paciente da Covid-19 estão chegando em sua capacidade máxima em diversas capitais e os prognósticos para as próximas semanas são dramáticos.
À revelia da escalada do número de casos e mortes, da superlotação, uma parcela significativa da população continua seguindo suas vidas com relativa normalidade. Entre os que não acreditam nas consequências deletérias do Covid-19 e os que necessitam trabalhar, há uma massa imensa de mulheres e homens que se arriscam diariamente ao longo do dia para cumprir suas tarefas e realizar seus propósitos. Entre os que conseguem comprar utensílios epidemiológicos básicos e usar seus automóveis, há milhões que se utilizam de transportes públicos em condições insalubres e encaram filas imensas em mercados e caixas de banco para comprar o imprescindível e sacar seus recursos.
Para além das críticas moralistas que daí poderiam ser tiradas, o fato é que o Brasil não costurou a coesão e coordenação necessárias para encarar a situação. O combate ao Covid requeria esforços monumentais de organização, gestão e intervenção sobre a vida econômica e social tal qual uma economia de guerra. Necessitaria da construção de mecanismos científicos de planejamento, logística, ciência de dados, alocação e distribuição de recursos que estão muito aquém dos interesses imediatos do governo federal e de boa parte da classe empresarial, haja vista o grau de intervencionismo sobre o mercado e os respectivos esforços monetários e fiscais.
Ainda que a renda emergencial de R$ 600,00 seja importante para diversas famílias, é manifesto a sua insuficiência para um amplo conjunto da sociedade informalizada e afogado em contas como aluguel, água, luz e cesta básica. Cabe mencionar a desproporcionalidade da ajuda dada pelo governo aos mais necessitados frente ao pacote de socorro do Banco Central ao sistema financeiro – R$ 100 bilhões ante R$ 1 trilhão. Na toada de manter inalteradas as normas institucionais de gasto público e ajuste fiscal – reforçadas pelos principais gestores de política econômica no início desta semana –, não resta outra opção ao governo federal senão “lavar as mãos” e negligenciar a disseminação da pandemia e as mortes pelo Covid-19 em todo o Brasil.
A ação negligente do governo Bolsonaro realiza-se senão mediante a guerra de narrativas instituída desde a difusão da pandemia. No bojo do uso do conflito para diferenciar-se e insuflar permanentemente sua base de apoio, o desdém sobre a capacidade de propagação e os impactos deletérios do vírus transformou-se em chantagem aberta do tipo “ou mortes pelo Covid-19 ou mortes pelo empobrecimento e deterioração econômica”. Ainda que Bolsonaro não consiga esconder o desprezo e indiferença ante ao sofrimento das famílias, suas ações, assim como as de seus comandados, contribuem para desacreditar instâncias comunicativas e científicas mundiais, além de mobilizações sociais destinadas ao convencimento da sociedade quanto à necessidade do isolamento social.
Tais medidas colocam os estados federativos em condição de impotência diante da aceleração das contaminações e mortes e das cismas empresariais que acenam obscenamente para a reabertura do comércio. Por um lado, as colisões entre União e entes federativos antecipam a corrida eleitoral nas três esferas de governo e sobrepõem conflitos palacianos à gravidade e aprofundamento da crise social. Por outro, os impactos já visíveis do isolamento parcial nas margens de lucro e emprego fortalecem o coro em todas as camadas sociais para a retomada de uma normalidade não mais possível. A propalada abertura gradual do comércio e serviço estipulada pelo governador Dória para o dia 11 de maio revela, como exemplo, a politização das decisões técnicas e as pressões diretas e indiretas do big business sobre as políticas públicas. De todo modo, tais ações e conflitos soam como peça teatral aos que simplesmente correm pelo pão de cada dia.
As consequências não poderiam ser outras senão a queda da taxa de isolamento nas grandes cidades. O aumento da circulação social reflete tanto as dificuldades socioeconômicas do isolamento para grupos sociais mais fragilizados ante a seus impactos quanto dos efeitos da guerra de narrativas estabelecidas desde a disseminação do Covid-19. Crianças, jovens e senhores voltam às praças. Lojas e shoppings reabrem em algumas cidades. Empresários recrutam seus funcionários à ativa despejando-lhes o ônus dos cuidados sanitários. Assim entramos numa nova fase da “quarentena”. Vivemos uma espécie de nova normalidade insustentável em que uma esfera da sociedade se anestesiou frente a tudo que diz respeito à pandemia e a outra blinda-se sobremaneira frente a seus efeitos. É como se estivéssemos singrando à deriva, à beira do abismo.
As últimas informações sobre a propagação do Covid-19 são alarmantes e prescrevem uma validade curta desta insustentável nova normalidade. É bem provável que o número da casos confirmados de Covid dobre até o dia 11 de maio. O número de mortalidade por dia pode passar de oitocentos até a referida data – na pior das hipóteses. A taxa de ocupação dos leitos de UTI já superou os 70% em seis Estados no final de abril – 89% na Região Metropolitana de São Paulo, 94% no Rio de Janeiro e 96% em Pernambuco. Quando comparado com o mesmo mês do ano passado, o número de enterros somente no mês de abril cresceu 18% na cidade de São Paulo, 40% no Rio de Janeiro e 180% em Manaus. Caso a tendência geométrica de crescimento da pandemia se mantenha ao longo deste mês, o colapso do sistema de saúde e funerário será indubitável.
Dados recentes demonstraram que a pandemia passou a se disseminar de forma mais acelerada nas periferias. A taxa de mortalidade nestas regiões é em média cinco vezes maior com relação às regiões mais ricas, superando os 30% em regiões da Zona Norte de São Paulo. As dificuldades de isolamento, o índice de aglomeração geográfica e as condições socioeconômicas das populações suburbanas projetam uma situação caótica para os próximos meses. A incapacidade de viabilizarem uma renda minimamente adequada para o período, a falta de infraestrutura e apoio dos órgãos públicos e a consequência do conflito de narrativas sobre suas atitudes provavelmente inviabilizará o alcance da taxa de isolamento necessária para a desaceleração da pandemia.
Situações como aquelas registradas em Manaus tornar-se-ão comuns e rotineiras caso não direcionemos o prumo da situação para outros caminhos. Idosos sem leitos e respiradores em hospitais caóticos e superlotados; hospitais de campanhas sendo montados às pressas para dar conta da crescente demanda hospitalar; senhores, jovens e adultos morrendo em casa ou nos hospitais por asfixia aguardando qualquer tipo de amparo; corpos empilhados e ensacados à espera de caixões; ataúdes sendo empilhados, fechados e isolados em locais inapropriados; cemitérios cavando valas comuns e enterrando corpos sem os decoros litúrgicos tradicionais da despedida. Tais situações deixaram de ser uma possibilidade especulativa e já se visualizam no horizonte histórico de curto prazo.
As possibilidades de colapso do sistema de saúde pública, de implosão do sistema funerário e aprofundamento de degradação social são, por conseguinte, reais. Se tal situação exacerbará a necropolítica realizada pelo Estado brasileiro, ela poderá conduzir a sociedade ao estado de anomia latente. Qual será o resultado social caso o pior cenário se realize? É bem provável que a oposição entre a disseminação acelerada do Covid, a maior necessidade de isolamento social e seus impactos socioeconômicos em termos de emprego e renda atinja o seu clímax nos próximos meses. Este antagonismo pode esgarçar o já retalhado tecido social brasileiro, levando a sociedade a um cenário de terra arrasada, aprofundando a lógica do salve-se quem puder.
Num contexto de profundo caos e instabilidade social, as consequências daí decorrentes são imprevisíveis. Ainda que analistas econômicos, sociais e políticos conjecturem diferentes quadros para o futuro, o fato é que a insustentabilidade da situação presente tonifica a corrente em direção à calamidade. Mesmo que o governo central perceba tardiamente a gravidade da situação, os impactos políticos e sociais da barbárie aberta serão irreversíveis. Com o leque de cenários mais convexo, nem uma guinada mais autoritária pelo governo federal nem a implosão dos parâmetros socioinstitucionais de sociabilidade básica estão excluídos. Quanto mais caótica a situação, menores as chances de ampla adesão a posições intermediárias consensuais como, a título de exemplo, o recuo político do governo Bolsonaro e sua aproximação com o centrão, ou a construção de uma aliança democrática antibolsonarista irrestrita. Configurar-se-ão como insuficientes caso os antagonismos atinjam patamares cataclísmicos. Nada estará garantido. Nem uma saída autoritária nem convulsões sociais.
Há quem diga que promover o caos seja o objetivo enigmático das ações de Bolsonaro, buscando aproveitar-se do quadro criado para realizar suas pulsões autoritárias sob a bainha das forças armadas. Se este for de fato seu impulso, o tiro sairá pela culatra caso as insatisfações populares provocadas pelos impactos do Covid somarem forças e apontarem seus canhões para o andar de cima. A história poderá ser outra no dia que “o morro descer e não for carnaval”. Ninguém sabe o que existe no fundo do abismo. Eis o ponto!