Do ponto de vista da estratégia política, o pronunciamento de Bolsonaro à nação em 24 de março não é tolo ou delirante, como muitos dizem. Ele usa as informações difusas sobre o corona a seu favor e maneja as emoções populares com sagacidade e objetivos bem definidos. Apoia-se principalmente na paranoia nacionalista-conspiratória e na construção de seu próprio “mito”, com direito a bravatas de líder carismático como: “fui um atleta, se eu pegasse o corona, era um resfriadinho”.
De inspiração fascista, a imagem de Bolsonaro sempre foi muito bem fabricada e coerente. E pelo menos desde a campanha presidencial, há um novo elemento nessa construção: as técnicas importadas dos EUA junto à corriola de Trump (Roger Stone, Steve Bannon etc.) para influenciar a opinião pública pelo uso das novas tecnologias de comunicação. A maestria dessas técnicas gira em torno de um eixo principal: a total falta de responsabilidade e de compromisso com a verdade. Para impor-se, a mentira pública pressupõe basicamente duas coisas: muita replicação e coerência consigo própria. Fatos e lógica são secundários, se não desprezíveis. O debate público deve ser evitado a todo custo. Tudo mais é sondagem das opiniões e dos preconceitos presentes no público a fim de usá-los no reforço e na replicação da mentira. Por fim, tudo que contradiz a mentira, apresentando-se em outro cidadão ou na mídia, passa a ser compreendido como conspiratório, perigoso, “do mal”.
Consoante com sua personagem, o pronunciamento de Bolso é um “truco 12”, um “tudo ou nada” do autoritarismo populista. Os dados estão lançados: ou ele leva, ou perde o jogo.
Tomara que, como Bolsonaro profetizou, a pandemia seja mesmo passageira e sem grandes números de óbitos no Brasil. Mas tudo indica o contrário. E, ainda que ela venha a ter efeitos mais brandos por aqui, o “capitão” pode levar a rodada, mas perde o jogo no final, porque a recessão será duríssima. Estamos diante de uma crise estrutural do capitalismo, a pandemia foi só seu detonador.
Ciente disso, Bolso já está botando a culpa pela trágica crise social que se avizinha na conta da esquerda e da mídia. É a sua tática de sempre: criar o inimigo de antemão para eximir-se, justificar a prepotência, sair ao ataque e surpreender a todos. Porém, por mais que se culpem os “vermelhos do mal”, “os intelectuais e os artistas sem amor à pátria” e os “mentirosos da TV” etc., é difícil que um governo incompetente, contra os trabalhadores, entreguista, beligerante, racista, sexista e altamente corrupto como este resista a uma recessão entre -3% e -5%.
Bolsonaro aposta no modelo Trump (fundamentalismo e terrorismo econômico), no calor dos trópicos e na ignorância da população para minimizar a crise do corona vírus e criar um falso, mas convincente, discurso de “liberdade do cidadão comum”, de “defesa do empresário que precisa produzir” e de “proteção do pobre que precisa trabalhar.” Pondo na balança os dois grandes desgastes que o ameaçam, a pandemia e a estagnação da atividade econômica, o presidente claramente avalia que a pandemia é o prejuízo menor e busca estabelecer comunicação com a base popular para pôr fim às medidas de isolamento. É uma tentativa de virar o jogo ao atribuir a culpa pela crise justamente nas medidas de isolamento social, isto é, nos outros, nos inimigos.
Ao dirigir-se à massa, Bolso vai além da abordagem do problema que prevalece na mídia, toda restrita à questão médico-sanitária e evasiva sobre os problemas sociais e de exploração de classe que se acirram com a pandemia. Mas a população percebe que “o homem lá em cima” fala dos seus problemas. Em larga medida, a abordagem meramente “técnica” da grande mídia serve para fazer com que a natural mobilização social promovida pela pandemia se restrinja ideologicamente aos imperativos da unidade social (“o problema é de todos”) e a apelos de filantropia (“palmas para os profissionais da saúde”). Fato é que a atuação da imprensa da ordem, como era de se esperar, encobre a dimensão político-social do problema e, pior, legitima o acirramento da precarização do trabalho. Basta lembrar do editorial do Globo pedindo cortes nos pagamentos do funcionalismo, medida novamente alentada poucos dias depois por Rodrigo Maia e pelo próprio Bolsonaro.
Por fim, vale dizer que, ao politizar de acordo com seus interesses a crise gerada pela pandemia, o governo Bolso também vai além de uma esquerda “soft”, pretensamente “esclarecida”, que se limita a defender a medida do isolamento social com apelos à razão e à ciência contra “esse ignorante no poder”. Trata-se de um discurso ensimesmado, que, no fundo, está mais preocupado em “lavar as mãos” do que em dialogar com a população. Ademais, por paradoxal que pareça, Bolsonaro (referindo-me sempre ao “produto”, não ao indivíduo) busca até mesmo se apropriar da crítica ao autoritarismo do Estado presente na exigência de lock down, mostrando que a direita aprendeu a usar hipocritamente, de acordo com os seus interesses, bandeiras libertárias abandonadas pela esquerda enfraquecida e desenraizada.
Mas tudo isso deve ruir, a queda deste governo é uma questão de mais ou menos tempo. Só que, vindo ele a cair, nada de bom deve vir em seu lugar. Uma ditadura liderada pelo próprio Bolsonaro? Seu impedimento ou afastamento e a posse de Mourão? Enfim, quem é que sabe? No horizonte próximo, não parecem prováveis governos menos à direita, embora alternativas igualmente reacionárias, mas menos desagregadoras, possam se viabilizar.
Talvez a dureza da realidade ainda forje uma consciência popular mais profunda e ativa. Oxalá os movimentos sociais se reorganizem e se fortaleçam diante da crise, o que já vem acontecendo. Infelizmente, porém, ainda não há no espectro político uma força à esquerda suficientemente preparada e com a desejada base social para catalisar toda a revolta popular que se gesta, para propor um projeto político revolucionário, comprometido com uma agenda de reformas socialistas que efetivamente democratizem os poderes econômico e político. No entanto, a luta pela realização dessa agenda radical é desde sempre a tarefa histórica incontornável para mudar o Brasil, de modo a torná-lo um país mais justo, independente e feliz.
Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. A realidade bate à porta.
Vicente de Arruda Sampaio
Filosofo
Excelente texto! Revela as estratégias que estão por trás da tentativa de tomada de poder absoluto por parte do bozo, quase seu projeto pessoal.
Ótima leitura!
Texto muito bom. Tomara que deste caos surja uma estrela cintilante, que certamente não será a do PT.