O Estado contra Mari Ferrer - Contrapoder

O Estado contra Mari Ferrer

Menos de uma semana atrás, as partes íntimas do prefeito de Florianópolis invadiram as nossas telas de celulares, quando foi vazado um boletim de ocorrência em que uma servidora municipal acusava de tê-la violentado sexualmente em pelo menos três oportunidades. Junto do documento, vazaram a imagens do vídeo que compunha o rol de provas. As redes sociais da vítima se encheram repentinamente do mais vil linchamento público. “Mentirosa”, “oportunista”, “deu pro prefeito e agora tá aí se fazendo”, “muito estranha essa história”, e a mais incrível das perguntas: “por que demorou tanto para denunciar?”. Por que?

O caso Mari Ferrer, colocado hoje em destaque nacional pelo The Intercept,  é uma vitrine. Por meio dela, é possível vislumbrar as ameaças que pairam sobre a mulher que é vítima de violência de gênero – em todas as suas formas e em especial, a sexual – e tenta decidir entre denunciar ou silenciar. Essa decisão, no Brasil, é mais que um ato de coragem. Isso porque a decisão pela denúncia pode vir – e com frequência vem –  acompanhada de uma série infindável de outras violências institucionais. O sistema de justiça brasileiro parece ser especializado em, ao final de um processo longo e excruciante de questionamentos, humilhações, ameaças e exposições, transformar a vítima em acusada e ré. 

As cenas da audiência são de uma violência aterradora e remontam à misoginia que marcou os tribunais da Santa Inquisição da Igreja Católica. Ao fim da série de xingamentos, insinuações e humilhações que o advogado do acusado realiza sem ser sequer interrompido ou impedido pelo juiz, Mari Ferrer implora para que seja tratada com respeito. Lembra que está ali como vítima e que aquele tratamento não é destinado nem aos mais hediondos criminosos. Assistir àquela cena é de certa forma obsceno. Quantas vezes por dia um grupo de homens assiste silenciosamente a uma mulher sendo vítima de violência e segue calado, omisso e cúmplice, mesmo tendo autoridade para fazer a violência cessar? Mesmo sendo não uma, mas a autoridade designada e muito bem remunerada para fazer a violência contra a vítima cessar? Essas práticas, essas imagens, carregam séculos de misoginia. 

Existe ainda uma controvérsia sobre a tese do “estupro culposo”. Isso porque, embora ela não seja o fundamento da absolvição na sentença, está presente na denúncia do Ministério Público. A decisão de absolver o acusado está baseada em falta de provas sobre o estado mental de Mari Ferrer no momento do ato sexual. A lógica que o Ministério Público tenta fazer valer na denúncia, e que oferece um risco imenso para mulheres e crianças no país inteiro, é a de que se alguém pode se enganar sobre a idade de uma menina menor de 14 anos antes do ato sexual (e, segundo a doutrina citada na peça de denúncia, isso pode acontecer em razão da forma como a vítima se comporta, se veste ou se maquia), então o mesmo pode acontecer quando o acusado não sabe se a vítima está em condições de dar o consentimento ou não para o ato sexual. O estuprador estupra, mas sem a intenção de estuprar, porque em tese não tinha conhecimento sobre a condição mental da vítima de dar ou não consentimento para o ato. É aí que reside o perigo. 

O esforço coletivo dos movimentos de mulheres ao redor do mundo é o de demonstrar que o consentimento é e precisa ser um ato consciente e claro, identificável, uma manifestação de vontade que pode ter várias formas mas que precisa estar presente. Se não há consentimento, é violência. Ponto final. O patriarcado, em todas as suas formas e com todos os seus braços, quer ao contrário transformar o consentimento em uma área cinza, nebulosa, escorregadia e cheia de armadilhas nas quais qualquer homem um pouco menos atento pode cair, especialmente por força das artimanhas e redes de mentiras que mulheres normalmente propagam. É essa a lógica interna desse discurso. Dessa forma, feita a confusão, é possível se identificar mais com o estuprador que com a vítima e continuar voltando as forças inquisitórias contra quem sofreu a violência: “por que você não gritou? Por que não fugiu? E essa foto aqui, com as pernas de fora? E esse decote? O quanto você bebeu? Usou alguma droga? O que você está realmente procurando aqui? Por que quer destruir a vida desse homem?”

Eu não vou mentir. É um momento terrível para ser uma mulher. Enquanto nós, como campo popular e como classe trabalhadora, gestamos o novo que demora demais a nascer, a penumbra e os monstros que habitam nela têm feito do cotidiano das mulheres um verdadeiro inferno. Não há um dia em paz, um dia sem que uma companheira – conhecida ou desconhecida, célebre ou anônima – tenha que pedir socorro ou sem que os corpos das mulheres sejam tratados como perigosos, obscenos, públicos e descartáveis. A misoginia não é uma invenção capitalista, mas assim como o racismo, é uma ferramenta sempre à disposição em tempos de crise. Mas não se enganem aqueles que acham que podem contar com o nosso silêncio ou com a nossa solidão, porque nós somos muitas e juntas já não temos medo. À medida que avanço nesse texto, minhas companheiras em todos os lugares do país, movidas pelo mesmo asco que eu sinto nesse momento, se organizam para gritar a plenos pulmões nossa insatisfação e exigir que nós avancemos na construção de um mundo seguro para mulheres e meninas. Para todas as mulheres e meninas. Nem uma a menos.

Lorena Duarte é assessora parlamentar, graduada e mestre em direito pela UFSC.

Um comentário sobre “O Estado contra Mari Ferrer

  • 4 de novembro de 2020 at 7:07 pm
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    O texto que retrata a angústia em ser mulher, quase sem liberdade, mas no mesmo tempo que nos força a mantermos unidas e em luta! Resistiremos!
    #justica #mariferrer

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