O império me criou

por Vicente de Arruda Sampaio1

Em 25 de fevereiro de 2024, Aaron Bushnell, um militar de 25 anos da Força Aérea dos Estados Unidos, após atear fogo em si mesmo em frente à Embaixada de Israel em Washington, morreu gritando “Palestina livre!” Toda a blindagem da grande mídia não foi capaz de ensurdecer esse grito. Não há quem não estremeça de comoção diante das cenas dramáticas de seu ato, que – atenção! – não devem ser vistas por pessoas suscetíveis. A denúncia do horror da guerra genocida e colonizadora que o Estado fascista-sionista de Israel empreende contra o povo palestino finalmente abalou a opinião pública mundial, mostrando que o grito Buschnell não representa apenas os palestinos, mas todo ser humano sensível e atento aos direitos humanos e à autodeterminação dos povos.

Como muitos já devem ter escutado ou lido, suas últimas palavras foram: “Sou um membro da ativa da Força Aérea dos Estados Unidos. E não serei mais cúmplice do genocídio. Estou prestes a me envolver em um ato extremo de protesto. Mas, comparado com o que as pessoas têm vivido na Palestina nas mãos dos seus colonizadores, não é nada extremo. Isto é o que a nossa classe dominante decidiu que será normal. Palestina livre!

Antes de seu sacrifício, ele escreveu na sua conta do Facebook: “Muitos de nós gostamos de nos perguntar: ‘O que eu faria se estivesse vivo durante a escravidão? Ou no Sul Jim Crow? Ou no apartheid? O que eu faria se meu país estivesse cometendo genocídio?’ A resposta é: você está fazendo isso. Agora mesmo.” Em outras palavras: se o horror acontece, quem o finge ignorar, quem nada faz, quem sequer se manifesta contra, é cúmplice.

Em seu testamento, Bushnell solicitou aos amigos que seus poucos pertences fossem doados ao Fundo de Ajuda às Crianças da Palestina e que suas cinzas fossem espalhadas em uma Palestina livre.

O gesto de Bushnell é extremo. Mas não só porque culminou em sua morte. É um gesto de extrema generosidade, compaixão e coragem. Como o foi também o de uma mulher que se autoimolou pela causa palestina em frente ao Consulado de Israel em Atlanta (EUA), cerca de 2 meses antes, em 01 de dezembro de 2023. Quem ficou sabendo? Naturalmente, o fato foi minimamente noticiado pela grande mídia e está pouquíssimo esclarecido pelas autoridades norte-americanas. Bushnell, porém, soube fazer com que seu protesto tivesse real impacto político, transmitindo-o online e solicitando que algumas pessoas o retransmitissem.

Mas quem é Aaron Bushnell? Não se trata de um doente mental ou de um depressivo, conforme sugerido de início pela imprensa mainstream. Dele ainda não se sabe muito, mas o suficiente para se afirmar que era pessoa plenamente consciente de si, há tempos comprometida com os princípios que a levaram a autoimolar-se. Na página do grupo anarquista  ao qual pertencia, pode-se colher informações importantes e testemunhos de amigos que revelam a admiração e o amor que despertava nos próximos, bem como sua dedicação a causas sociais como a dos sem-teto. Nessa mesma página, encontra-se uma declaração sua sobre o próprio engajamento social e político: “Sou um anarquista, o que significa que acredito na abolição de todas as estruturas hierárquicas de poder, especialmente do capitalismo e do Estado. Vejo o trabalho que fazemos como uma luta contra a guerra de classes que a classe capitalista trava contra o resto da humanidade. Isto também informa a maneira como quero me organizar, pois acredito que qualquer estrutura hierárquica de poder está fadada a reproduzir a dinâmica de classe e a opressão. Assim, quero envolver-me em formas igualitárias de organização que produzam estruturas de poder horizontais baseadas na ajuda mútua e na solidariedade, que sejam capazes de libertar os humanos.”

Mais abaixo, apresentamos uma tradução do poema anarquista que Bushnell pretendia recitar quando do término de seu serviço militar: uma denúncia do militarismo imperialista. Também é possível escutar o poema original, em inglês, na Anansi’s Library.

Pessoas como Bushnell, conscientemente dipostas a autoimolar-se pela justiça, na verdade, não morrem. Vivem na mente e no coração daqueles que levam à frente a mesma luta. Bushnell presente! Palestina livre!

O Império me criou (Biblioteca Anansi)

Eu era seu soldado antes de saber seu nome
Criado para morrer antes de saber meu próprio nome
Moldado para a “guerra eterna”
Criado para o combate, um guarda do império
Fui criado como um soldado
Fui feito para me curvar
Para cair de joelhos, em adoração, quando se eleva a voz
Do Capital – dinheiro sangrento – e do Rei-Petróleo
Para obedecer a nossos carrascos, para rezar à nossa bandeira
Nosso deus é o estado, e a guerra é sua balada

Você foi criado como soldado
Bico calado, criança, fique em silêncio, eu imploro
Não sabe que nosso deus olha dentro da sua cabeça
Ele pode ver pensamentos e imagens
Medos e pavores, fabricar com isso uma vontade
Se você fizer muitas perguntas
Olhar através da névoa
Contrapor a verdade ao engano e levantar o povo
Se você lutar pela justiça de verdade, logo verá
A beleza de nossas armas apontadas para você e para mim
Ao fim e ao cabo, este estado não conhece lealdade
Pois nós dois fomos criados como soldados
Dê uma espiada pela janela, observe as ruas
Preste atenção às palavras de George Jackson
Fique de olho nos meganhas e nunca durma

Um mato alto e denso
Uma granada no escuro
Bombas para as massas
Logo os incêndios começarão
Um perseguidor na noite
Um predador
Um drone
Gás lacrimogêneo e chamas
Botas militares em sua casa
Buscas de porta em porta

De joelhos, soltando um ai
Com medo e sem palavras, todos nós ficamos olhando
Isso só pode levar ao incêndio de Roma
Ao pânico nas ruas
À violência policial e à agitação
A motins desesperados para escapar da crueldade
Enquanto a culpa recai sobre os ombros dos necessitados

Lutar pela justiça é o maior dos pecados
Fui punido com a morte desde o início do império
Fui criado como soldado
Agora a fera está no meu encalço
As botas estão na minha porta
As armas estão todas preparadas
E tal como aconteceu com meus antepassados
Uma saraivada de balas me libertará
Entrega expressa, de um só dia
Que vosso deus estatal vos concederá
De seu senhor, não espere lealdade
Pois eu fui criado como soldado

Referências

  1. Vicente é tradutor e professor de filosofia e línguas clássicas

2 comentários sobre “O império me criou

  • 5 de março de 2024 at 10:00 pm
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    Sim, é muito triste mesmo, é extremamente doloroso que um jovem só consiga ser ouvido quando lança mão da própria vida para conseguir expressar essa dor a que muitos e muitos de nós , humanos que somos, estamos sentindo de longe, enquanto ele, tão próximo, consegue expressar e anunciar a sua dor por todos nós que não conseguimos, marcando uma posição clara, objetiva e inesquecível para todo o planeta…que sobreviverá sim…

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  • 6 de março de 2024 at 11:53 am
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    O que dizer de um ato extremo desse? Seria conveniente e covarde se não disséssemos nada. A, lembrei: não temos mais tempo para sermos humanos. Cadê nossa sensibilidade e compaixão por pessoas que estao sendo mortas só porque nasceram palestina. É tão absurdo, doentio, conivente, covarde, genocida! Vivemos em bolhas criadas por um sistema onde nos matamos por dinheiro, poder, para nos anestesia. A indústria das armas enriquesse alguns e mata muitos inocentes ao mesmo tempo. A barbárie humana que acontece na Palestina esta sendo coberta pela Internet. Onde nos perdemos? Cadê os humanos deste mundo? Deus, tenha piedade de nós! Estamos surdos, mudos, cegos. As vidas que ainda restam na Palestina não têm mais tempo. A matança de mulheres, crianças, jovens que estão sendo punidos com a morte só por terem nascidos na Palestina vivem o inferno de uma matança aterrozidora!

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