Silvia Beatriz Adoue
Somos testemunhas da implantação de um novo modelo de acumulação do capital que se articula pela integração de todos os territórios do planeta a cadeias de acumulação. Numa ponta dessas cadeias, fundos de investimento que concentram capital. Eles não estão dispostos a correr qualquer risco de não obter uma taxa de lucro bem acima da média. Na outra ponta, os territórios, com as energias vitais mercantilizadas. No meio, empresas de diferente tipo e tamanho, que são elos descartáveis quando não garantem lucro a quem comanda a cadeia.
A nova onda de avanço do capital sobre os territórios de América Latina gera zonas de sacrifício. Áreas destinadas à extração de valor sem qualquer reposição que garanta a reprodução da vida. Alguns autores chamam isso de extrativismo, pela semelhança com os ciclos extrativistas da exploração colonial. Mas talvez não seja uma palavra adequada, porque os povos da floresta, antes da invasão europeia, praticavam um extrativismo de punção submetido a regras de reposição que preservavam e ampliavam a abundância dos territórios. Por esse motivo, outros autores preferem chamar essa forma de exploração de espoliação. A espoliação transfere ao capital riquezas que não foram geradas por ele.
Um exemplo de espoliação é a redução da energia vital humana, reproduzida pelo trabalho doméstico e gratuito das mulheres, a força de trabalho. O patriarcado, assim, é condição necessária para a extração de valor pelo capital. Outro exemplo de espoliação é a apropriação e saqueio ou destruição de bens naturais como o solo, a água (subterrânea, da chuva, dos rios, mares e lagoas), os animais e plantas silvestres, os conhecimentos produzidos socialmente.
O capital teve seu primeiro modelo de acumulação como capital mercantil. Para se implantar, precisou se enfrentar durante séculos aos camponeses que defendiam, na Europa, a expansão da propriedade comunal da terra. Vencidos os camponeses, o capital mercantil se alimentou inicialmente da expropriação da terra comunal, “liberando” força de trabalho disponível para o assalariamento. Mas não teria se desenvolvido sem as colônias de América. A dominação colonial, com a exploração do trabalho servil dos povos preexistentes e do trabalho escravo dos africanos sequestrados, garantiu a acumulação na Europa. Para América Latina, foi a primeira onda de integração dos territórios ao capital. Os europeus avançaram primeiro sobre as jazidas minerais e depois sobre as planícies da faixa tropical e subtropical, mais aptas para a exploração agrícola em escala. Enfrentaram a resistência indígena e negra aplicando a economia do terror.
Sem esse grau de concentração de riquezas, a revolução industrial não teria sido possível. O capital industrial se entrelaçou com o capital mercantil e aumentou a velocidade de acumulação. A dominação colonial resultava muito custosa e a constituição das classes dirigentes locais foi útil para que o capital industrial de Europa e, depois, dos EUA, não precisassem se ocupar do disciplinamento da força de trabalho. As tentativas dos povos de recuperar a terra e a liberdade se enfrentou com os interesses das burguesias locais, que coincidiam com os interesses imperialistas. Sob tutela dos Estados dos países “centrais”, constituíram-se governos latino americanos que garantiram o escoamento de riquezas para os países industrializados. Essa foi a nova forma de dominação, conhecida como dominação neocolonial.
A primeira grande crise do capital, na segunda metade do século XIX, desatou, ao mesmo tempo, uma corrida tecnológica conhecida como segunda revolução industrial para disputar os mercados e uma nova onda de exploração sobre os territórios da periferia. As potências europeias retalharam o continente africano constituindo novas colônias. E a demanda de novas matérias primas e as possibilidades de exploração que as novas tecnologias abriam despertaram a cobiça das burguesias latino americanas. A oportunidade de novos negócios fez que essas burguesias locais avançassem sobre territórios que antes no interessavam. Houve uma nova onda de expulsão de povos preexistentes, quilombolas, caboclos, cujas economias permaneciam relativamente preservadas até então. Os Estados dizque nacionais se consolidaram nesse período a partir da formação de exércitos profissionais armados com tecnologia de ponta. A estreia desses exércitos foi feita em guerras contra os povos da terra: a Guerra da Tríplice Aliança que abriu caminho para a conquista do Grande Chaco, a Pacificación de la Araucanía, a Conquista del Desierto, o avanço sobre os ayllus dos Andes centrais, a Guerra de Canudos, a expulsão dos Yaquis de Sonora duplicaram a área de América Latina integrada à extração de valor. A tentativa de retomar a luta por terra na Revolução Mexicana também ficou interrompida.
O capital, na fase de capital monopolista, contava com a espoliação desses novos territórios. Só que parte da produção de riquezas na América Latina ocorria dentro do modo de produção capitalista, com trabalho assalariado. Para a superexploração do trabalho assalariado da periferia, o racismo é condição necessária, como o foi no modo de produção servil e escravista. Para consolidar a sua dominação, os governos latino americanos tomaram a forma de repúblicas oligárquicas, com democracia a conta-gotas. A nova configuração da classe trabalhadora fez com que suas lutas tomassem formas semelhantes às das classes trabalhadoras dos países centrais, como a greve e a ocupação dos espaços de produção. A integração de América Latina ao sistema mundial do capital se dava na forma de capitalismo dependente.
A Primeira Grande Guerra enfrentou os imperialismos que disputavam os mercados e os territórios de extração de valor. Mas a Revolução Russa obrigou a deter a conflagração armada, por temor a que o exemplo do povo russo se estendesse para toda Europa. Só o isolamento e congelamento da Revolução dos Sóviets animou o capital para se lançar à Segunda Grande Guerra, que resultou numa imensa carnificina, da qual o imperialismo estadunidense saiu inteiro e vitorioso, graças a que seu parque industrial permaneceu intacto.
A dominação imperialista de América Latina pelo vencedor da Segunda Guerra não se consolidou sem a contrarrevolução preventiva que assegurasse, com uma sequência de ditaduras que praticavam o terror sobre as classes trabalhadoras, a desarticulação de qualquer resistência e para não correr o risco de que os povos replicassem a Revolução Cubana. Mas, sem a combinação de terror e ação cultural que integre as grandes massas ao consumo, não teria conseguido se estabilizar.
Mas estamos assistindo na América Latina à instalação um novo padrão de dominação acorde com o novo modelo de acumulação por cadeias que operam em escala planetária. Para que elas possam atuar sem obstáculos, o capital precisa flexibilizar as relações de trabalho, os marcos legais que regulam a defesa dos territórios e a circulação do capital e a criação de novos campos de negócio. Para isso, são diariamente lançadas enormes áreas ao mercado de terras, por procedimentos como os incêndios criminosos que ameaçam os biomas. Mesmo degradadas, ficam assim disponíveis para usos flexíveis que as novas tecnologias permitem, mas são arrancadas da condição de territórios de reprodução da vida. Grandes obras de infraestrutura para logística, produção de energia ou extração de recursos hídricos permitem o acesso aos territórios e escoamento barato, fazendo da fatia mais rentável dessas atividades também um campo de negócios integrado às cadeias.
Se nas duas últimas décadas do século XX testemunhamos a reestruturação produtiva em algumas cadeias, assim como a instalação de maquilas em zonas francas do continente, essa fragmentação da produção é hoje generalizada. Uma série de atividades que ficavam sob a lógica do setor público, como saúde, educação, pesquisa de inovação, assistência, segurança, serviço penitenciário, gestão pública foram mercantilizadas pela privatização, mas também pela terceirização, “parcerias” e convênios com o setor privado, se transformando em novos campos de negócios integrados às cadeias. As maneiras em que estas formas de “privatização fatiada” são realizadas permitem também transferência de recursos públicos para o setor privado, configurando também dispositivos de espoliação.
A integração dos territórios nas cadeias de acumulação ocorre, na maioria dos casos, na esfera do comércio, pelo qual quem comanda a cadeia não precisa ter a propriedade da terra ou do recurso, mas sim o controle do seu uso. Por exemplo: é indiferente para uma empresa que controla a cadeia dos combustíveis, como a Shell, se quem vende a cana para moer e fazer etanol é um grande proprietário, um conjunto de arrendatários, cooperativas ou agricultores familiares. Porém, a ampliação da demanda estimula a luta entre esses grupos, inclusive a ameaça, a pistolagem e o terror, na disputa desse lugar na cadeia do etanol. A mesma coisa com o eucalipto e o pinho para a pasta de celulose, com o tabaco, com a laranja para a cadeia citrícola. Este é um ponto importante para entender como funciona o modelo. Quem comanda a cadeia não perde, e são umas 400 a 500 empresas no mundo controladas por aproximadamente 100 fundos de investimento.
A integração, que garante a possibilidade de negócios, é operada pelos Estados. Os governos de América Latina têm pouca margem para alterar isto. De fato, muitos governos progressistas tentaram, em vários graus, esquivar essas imposições. O caráter dependente das economias o impede. A disposição maior ou menor destes governos para aceitar as exigências do capital fez perder, na mesma proporção, o vínculo orgânico com as classes trabalhadoras que os conduziram à administração do país. Mesmo porque a configuração das classes trabalhadoras e sua subjetividade foi alterada pelo próprio esforço de integração nas cadeias produtivas, perdendo de vista, no horizonte, a rota de fuga ao capital. O ascenso de governos de direita vem facilitar e acelerar a integração às cadeias, por recursos que passam por cima da legalidade existente.
Os povos tradicionais resistem a esta integração. Ela é equivalente ao etnocídio, já que no centro das culturas tradicionais está a abundância da vida, não apenas a humana. As mulheres também são um foco de resistência. O deterioro da forma salário tem debilitado as relações de dominação no seio da família: o patriarcado do salário e, no caso das famílias camponesas, o patriarcado da renda. Esses fatos permitem que a reprodução da vida, tarefa historicamente reservada à mulher, seja colocada por esta no centro. Frente à catástrofe alimentaria que se anuncia nesta nova configuração do capital, a produção de vida, de abundância, de alimento, é o programa estratégico para os tempos que nos foram dados.
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