A Colômbia passa por um intenso processo e mobilizações contra a violência estatal. As manifestações, que começaram no dia 09 de Setembro, pedindo justiça para Javier Ordóñez (jovem assassinado pela polícia), tomaram as ruas colombianas, em especial de Bogotá. A tática utilizada pelos manifestantes é de cercar os postos policiais reivindicam uma reforma imediata na corporação. Porém o assassinato de Javier não é o primeiro caso desta complexa conjuntura. Lembremos o emblemático caso de Dilan Cruz, assassinado pela tropa de choque no paro geral ano passado, um dia antes de sua formatura.
Para entendermos melhor o que está acontecendo neste momento na Colômbia, necessitamos compreender bem três aspectos da conjuntura colombiana:
Primeiro: desde junho de 2020, de acordo com o Informe Mundial sobre Drogas da ONU sabemos que o preço da cocaína disparou no mundo. O professor Dario Fajardo, um dos maiores especialistas da questão agrária na Colômbia, já vinha anunciando em trabalhos sobre a implementação dos acordos que as políticas de erradicação, forçadas no cultivo gerado pelo governo, apesar do Pacto de Havana, eram para aumentar o preço da cocaína a nível global. Soma-se a isso a entrada do Cartel de Sinaloa, um jogador ativo que tenta dominar o comércio de drogas.
Segundo: a estrutura do conflito social na Colômbia sempre possuiu grandes estruturas capazes de ter um ordenamento cívico-militar de disputa territorial. Ou seja, tanto o Narcotráfico, a Guerrilha, quanto os Paramilitares tinham atuações de pequenos grupos territoriais, mas sempre articulados a uma estrutura que lhes dava sentido unificado, presença e ordem social. Isso permitia um certo ordenamento sócio-espacial da violência e a capacidade de pactos com a direção dessas organizações. Lembrando que, desde os anos 1990, todas as grandes estruturas cívico-militares começaram a ruir. Primeiro os cartéis, depois as Autodefesas, e por último as FARC-EP. Isso “territorializa” ainda mais o conflito, no que se poderia entender como uma “neoliberalização da guerra”, onde há uma espécie de “livre mercado” da violência.
Terceiro: mesmo que nas zonas rurais a guerra nunca tenha acabado, nas grandes cidades, em particular na capital, se começou a sentir, desde 2016, um sentimento de mudança através do processo de paz de Havana. Os jovens, que tinham passado por um processo bastante duro de luta pela educação pública com a Mesa Ampla Nacional Estudantil (MANE), começam a se nomear como a “Geração da Paz” e assumem do sobremaneira o protagonismo neste processo.
Estes três momentos nos permitem interpretar melhor o que está passando na Colômbia hoje. Desde o ano passado, a disputa territorial entre estes grupos desintegrados no território, em particular na ruta Cauca, Catatumbo e Nariño (os territórios de maior produção da coca no país) para o Pacífico, está crescendo. Mais de 300 líderes sociais já foram assassinados desde a assinatura dos Acordos de Paz. Muitas dessas mortes estão associadas ao enfrentamento com os cultivos ilegais ou disputa pelo território contra grandes empresas que tentam explorá-los. Depois da prisão do ex-presidente Álvaro Uribe, vinculado aos antigos grupos paramilitares, começaram a existir massacres de jovens. Alguns, como o caso de Santander, tiveram um recorte claro de jovens dessa “Geração da Paz”, pois foram jovens estudantes universitários assassinados ao visitar sua cidade natal.
Por outro lado, dessa “Geração da Paz” e dessa ideia de uma mudança social vem resultando alguns processos de organização social, que tiveram resultados concretos na mobilização popular com as marchas multitudinárias do 21 de Novembro. Os eventos como a MANE colocaram no cenário político as manifestações como ferramenta de ação social, coisa que antes do ano de 2010 era considerado algo só de mamertos, nome pejorativo para pessoas de esquerda. Isso também teve efeitos eleitorais, como a primeira vez na história que um candidato de esquerda chegou perto de ser eleito presidente, ganhando nos principais centros urbanos do país, com exceção de Medellín. Isso, com o Partido Verde, social-democrata, conseguindo levar o caldo eleitoral deste processo com a eleição da prefeitura de Bogotá, segundo maior cargo político do país.
A gota d’água nesta crescente violência sistemática pelo aumento do preço da cocaína, ao qual se soma uma recessão econômica gigante e um processo de reformas econômicas, trabalhistas propostas pelo governo e múltiplos casos de corrupção, foi o assassinato violento de Javier Ordoñez pela policia no dia 9 de Setembro. Neste cenário complexo e violento, a polícia sempre teve “carta branca” para assassinatos e torturas, sob o pretexto de manter a “ordem social”. Só que este processo de “sentimento de mudança” citado no terceiro aspecto três fez com que a tolerância da violência diminuísse, ainda mais com todas as tensões provocadas pela Pandemia e o isolamento forçado, inclusive com uso de forças militares em bairros populares. Em um país supostamente em paz, o papel da polícia como um ator no conflito passou a ser questionado.
Isto resultou numa onda de raiva contra a polícia, como se fossem representantes de todas as violências exercidas diretamente pelo Estado ou pela ausência dele. Diversos jovens incendiaram postos policiais, começando por onde Javier foi morto, e estendendo-se por outros postos policiais que também tem histórico de estupros, assassinatos, torturas etc.
A resposta da Polícia foi disparar com armas letais, cometendo a primeira massacre em território bogotano desde os anos 1990, com 10 mortos e mais de 300 feridos, dos quais mais de 70 por disparos de bala. Este fato permitiu ver duas questões fundamentais:
- Se evidenciou a incapacidade da social democracia de responder um problema como esse, pois mesmo denunciando o massacre, a prefeita de Bogotá não conseguiu dar nenhuma resposta à violência policial. Inclusive, a prefeita deu ordem expressa para o não uso de arma letal, o que foi ignorado; e
- Se percebeu um distanciamento grande entre setores jovens e distintos setores da população colombiana, dos quais muitos se posicionaram a favor dos policiais.
As tensões sociais tendem a crescer. A alternativa dos jovens universitários, os vetores deste processo, tem sido reivindicar os Postos de Polícia como espaços comunitários, de memória social, começando a partir deles uma incipiente maneira de reorganização popular em Bogotá. A direita se aproveita do fato para tentar fortalecer-se, tentando vincular o protesto com as dissidências da FARC e o ELN, e um aumento da perseguição de jovens. E a social-democracia está perdida, tentando emplacar uma reforma na polícia, mas sem grandes chances de conseguir.
Há mobilizações massivas, os jovens em particular estão cada vez mais radicalizados, e alguns outros setores sociais começam a somar-se mais a isso. Ainda não existe um projeto de poder visível para dar uma resposta a toda a violência social vivenciada no país, porém, o simples fatos de distintas práticas naturalizadas, como a legitimidade da polícia, estarem sendo colocadas em questão, já apresenta horizontes de mudanças nas quais distintos atores políticos estão apostando.