Resenha de Jean-Jacques Marie sobre “Stalin: História Crítica de uma Lenda Negra”, de Domenico Losurdo.
Jean-Jacques Marie é professor, historiador e militante trotskista de longa data, com vasta obra publicada sobre temas relativos à história da URSS, incluindo biografias sobre Stalin, Lenin e Trotski. Texto originalmente publicado em La Quinzaine littéraire, n° 1034, de 15 de março de 2011. Para a resposta de Domenico Losurdo, ver “Stalin e o pensamento primitivo”.1
Traduzido por Marcio Lauria Monteiro em setembro de 2020, a partir da versão em espanhol disponível na Revista O Olho da História, n. 25, de outubro de 2017 e confrontado com o original em francês.
Diz o lema dos escoteiros que “para os valentes nada é impossível”. Domenico Losurdo desmente esse lema masculino. Ele, sem dúvida, é valente por tentar reabilitar Stalin. Mas o vazio desse intento, cuja ambição é certamente desmesurada, salta aos olhos.
Vade retro, Krushchev!
Losurdo ataca duramente o informe apresentado por Krushchev contra determinados crimes de Stalin, durante a última sessão, a portas fechadas, do XX Congresso do PCUS, de fevereiro de 1956. Logo de começo, ele deforma seu propósito. Segundo ele, esse informe “é uma requisição que se propõe a liquidar Stalin em todos seus aspectos”. Mas Krushchev afirma logo de cara:
“O tema do presente informe não é uma avaliação exaustiva da vida e atividade de Stalin. (…) Agora nos encontramos frente a uma questão de imensa importância para o Partido, para seu presente e seu futuro (…). Trata-se de como o culto à personalidade de Stalin foi crescendo gradualmente; esse culto que, em determinado momento, converteu-se na fonte de uma série de distorções unanimemente graves e sérias dos princípios do partido, da democracia do partido, da legalidade revolucionária (…). Os méritos de Stalin são bem conhecidos, através de um sem número de livros, folhetos e estudos que foram escritos durante a sua vida. O papel de Stalin na preparação e execução da revolução socialista, na guerra civil e na luta pela construção do socialismo em nosso país é conhecido universalmente. Ninguém ignora isso.”
Para quem não entendeu, o informe ainda acrescenta: “O partido teve que lutar contra os trotskistas (…), os direitistas, e os nacionalistas burgueses (…). Em tudo isso, Stalin desempenhou um papel positivo”.
Krushchev, portanto, não tem nada a dizer sobre os processos de Moscou, dos quais Domenico Losurdo retoma diversas invenções, que apresenta como se fossem verdades. Há que agradecer, portanto, a Stalin por liquidar os oponentes de todo tipo! De fato, Krushchev esclarece: “Antes do XVI Congresso, Stalin sempre havia levado em conta a opinião da coletividade”, “Stalin seguiu considerando de certa forma a opinião coletiva até o XVIII Congresso”, ocorrido em janeiro de 1934.
Até então, portanto, Stalin foi um excelente dirigente comunista. Ele só se tornou mau quando começou a eliminar seus próprios seguidores, a partir de 1934. Losurdo apaga essa avaliação para colocar no mesmo patamar Krushchev e Trotski.
Direção coletiva contra o “culto à personalidade”
Apesar de eu estar falando Krushchev, ele, na verdade, não é o autor desse informe – mas Domenico Losurdo parece ignorar (ou então esconde) isso. Ele foi redigido por Piotr Pospelov, com base nos trabalhos de uma comissão do Presidium do Comitê Central, por ele dirigida. O mencionado Pospelov havia sido o principal redator da biografia oficial de Stalin, publicada imediatamente após a guerra e, durante muito tempo, ele foi redator-chefe do Pravda. Assim, tratava-se de um bom e legítimo stalinista. Krushchev se contentou em adicionar ao texto de Pospelov alguns exageros da sua própria autoria, como o detalhe (inventado e grotesco) segundo o qual Stalin havia dirigido as operações militares da Segunda Guerra Mundial usando um globo terrestre. Outras duas ou três provocações do mesmo tipo modificam apenas marginalmente a índole e o alcance de um informe que foi elaborado coletivamente por uma comissão formada por partidários de Stalin.
Esses stalinistas estavam preocupados com o que se traduz na condenação do “culto à personalidade” dirigido a Stalin. Seu sentido, muito simples, escapa por completo a Losurdo – apesar da ajuda de Hegel. Ele significa que o poder está agora nas mãos não do Guia Supremo e Pai dos Povos, mas do Comitê Central, o qual Stalin havia convocado apenas quatro vezes entre 1941 e sua morte, em 1953. Foi isso que Krushchev prometeu ao Comitê Central durante sua reunião de junho de 1953 para julgar Beria. E era isso que os membros do Comitê Central, reduzidos ao silêncio durante os últimos treze anos do domínio de Stalin, queriam escutar. “Agora temos uma direção coletiva (…). É necessário convocar regularmente os plenos do Comitê Central”. O informe lido por Krushchev em nome do Presidium do Comitê Central é a expressão desse desejo coletivo.
A deportação das minorias étnicas… “uma falta de bom senso”!
Os argumentos de Losurdo se resumem, em geral, a um esquema simples: “Todos os Estados e todos os governos fazem o mesmo! O que há, assim, que reprovar em Stalin?” Nesse sentido, ele cita esse fragmento em que o Relatório Krushchev denuncia as deportações de algumas minorias étnicas em 1943-44:
“Nenhum marxista-leninista, como tampouco qualquer pessoa com bom senso, é capaz de compreender como se pode responsabilizar nações inteiras por atividades hostis, incluindo aí mulheres, crianças e idosos, comunistas e komsomols [a juventude comunista], e como se pode deportar tanta gente e submetê-las à miséria e ao sofrimento, por conta de atos hostis de indivíduos ou grupos de algumas pessoas.”
O Informe Krushchev enumera apenas cinco povos deportados, de um total de doze que sofreram esse destino e que Losurdo – que, de forma alguma reprova essa opinião seletiva – tomo o cuidado de não enumerar. Losurdo evoca em poucas palavras “o horror do castigo coletivo”. Porém, feita essa concessão humanitária a uma tragédia que viu perecer cerca de um quarto dos deportados – sobretudo velhos e crianças – durante o interminável deslocamento, ele acrescente criticamente:
“Essa prática caracteriza a Segunda Guerra de Trinta Anos [isto é, do começo da Primeira Guerra Mundial ao final da Segunda, 1914-45 – JJM], a começar pela Rússia czarista, que, apesar de aliada do ocidente liberal, sofreu, durante o primeiro conflito mundial, ‘uma onda de deportações’ de ‘dimensões desconhecidas na Europa (em especial de origem judia ou germânica)’”.
Na sequência, ele menciona a expulsão dos han do Tibete pelo ultrarreacionário Dalai Lama, que flertou por um momento com os nazistas; depois, também a reclusão em campos de todos os cidadãos estadunidenses de origem japonesa pelo presidente democrata Roosevelt, em 1942. Desse modo, o filósofo italiano conclui, de modo doce e tranquilo: “ainda que não estivesse distribuída equitativamente, a falta de ‘bom senso’ estava bem difundida entre os líderes políticos do século XX”. Pronto, tudo resolvido!
Assim, na pátria triunfante do socialismo (porque, para Losurdo, o socialismo de fato floresceu na URSS), que levou à cabo a unidade dos povos, é normal que se utilize os mesmos procedimentos que empregam os chefes dos países capitalistas, ou um obscurantista feudal, ou até mesmo o Czar Nicolau II. Este último, em 1915, em resposta à ofensiva alemã, fez deslocarem-se para o leste meio milhão de judeus, oficiosamente suspeitos de espionagem a favor dos alemães.
Mas a referência justificadora é pouco afortunada, pois, por mais bárbaro que tenha sido esse deslocamento, ele provocou muito menos mortes que o dos coreanos “soviéticos” em 1937 (na ausência de qualquer guerra), considerados coletivamente como espiões potenciais a cargo do Japão, e que haviam fugido do terror que o Japão desencadeava em seu país; ou então o dos tártaros da Crimeia, dos calmucos, dos chechenos e dos inguches, em 1944. Devemos ressaltar que a deportação desses dois últimos povos é uma das causas da tragédia que vive essa região há cerca de vinte anos. O legado de Stalin ainda faz correr sangue em nossos dias.
Losurdo utiliza o mesmo argumento quando faz referência ao Gulag, enumerando todos os horrores dos campos de concentração dos países coloniais.
Um herdeiro dos processos de Moscou
Losurdo toma para si as falsificações dos Processos de Moscou, porém sem referir-se diretamente a eles, de tanto que essa fonte é contaminada. Desse modo, ele afirma, por exemplo, que, em 1918, Lenin estava “rodeado pela suspeita ou acusação de traição, [e] chega até a ser objeto de um projeto, ainda que vago, de golpe de Estado considerado por Bukharin”. Esse projeto, fabricado pelo procurador Vichinski durante o terceiro Processo de Moscou, em março de 1938, é apresentado aqui primeiro como hipotético, para logo se converter em uma certeza, mediante um toque de varinha mágica:
“Para fazer fracassar a Paz de Brest-Litovsk, que ele havia considerado como uma capitulação ante o imperialismo alemão e como uma traição ao internacionalismo proletário, Bukharin considera por um instante a ideia de um tipo de golpe de Estado, destinado a afastar do poder, ao menos durante um tempo, aquele que, até então, havia sido o líder indiscutível dos bolcheviques”.
Certamente pensando que uma mentira repetida várias vezes se torna uma verdade, Losurdo escreve mais adiante:
“Já vimos que Bukharin, na ocasião do tratado de Brest-Litovsk, considera por um instante o projeto de um tipo de golpe de Estado contra Lenin, a quem ele reprova por querer transformar o partido ‘em um monte de esterco.” Na realidade, não vimos nada, a não ser as piruetas de Losurdo.
Por que Losurdo, que faz múltiplas referências a qualquer um – incluindo Sir Montefiore, promovido do status de novelista ao de historiador, ou o novelista Feuchtwanger, a quem Stalin fez com que chegasse a exaltar o segundo Processo de Moscou em troca de publicar suas obras na URSS e de pagar vultuosos honorários – não fornece nenhuma referência a essa invenção de Vichinski? [Na edição espanhola da Editora El Viejo Topo, Losurdo referencia Robert Conquest ao fazer essas afirmações – MLM].
A verdade é muito simples: durante o discurso de Lenin ao Comitê Executivo dos soviets em 23 de fevereiro de 1918, sobre o Tratado de Brest-Litovsk, o Socialista Revolucionário (SR) de esquerda Kamkov – cujo partido ainda estava no governo – se aproximou dos “comunistas de esquerda” Piatakov e Bukharin, hostis à assinatura, e os questionou sobre o que ocorreria caso eles obtivessem a maioria no partido contra a paz de Brest-Litovsk. Em sua opinião, ele disse à dupla, “nesse caso, Lenin vai embora e nós, juntos, criamos um novo Conselho de Comissários do Povo”, que Piatakov poderia presidir. Para ambos, isso não era mais que uma piada. Vários dias depois, o SR de esquerda Prochian sugeriu a Radek que, no lugar de escrever resoluções intermináveis, os comunistas de esquerda deveriam prender Lenin durante 24 horas, declarar guerra aos alemães e depois reeleger Lenin por unanimidade como presidente do governo, porque – disse ele – obrigado a reagir ante a ofensiva alemã, “ainda que insultando a nós e a vocês, Lenin, não obstante, levaria a cabo uma guerra defensiva melhor que qualquer outro”. Prochian morreu seis meses mais tarde. Radek repetiu, então, sua frase a Lenin, que começou a rir.
Contudo, no começo de dezembro de 1923, em plena campanha da Oposição de Esquerda pela democratização do partido, Bukharin, nesse momento aliado a Stalin contra ela, transformou essas anedotas em propostas sérias que os “comunistas de esquerda” teriam discutido à época, apesar da negação por parte de todos os envolvidos. Portanto, concluía ele, a Oposição faz o jogo dos inimigos do partido. Zinoviev se indignou: os “comunistas de esquerda” teriam, então, ocultado essas propostas ignóbeis do Comitê Central, que só tomou conhecimento delas seis anos depois! Stalin foi mais longe: alguns opositores de 1923 já eram, segundo ele, membros potenciais do pretendido governo anti-leninista de 1918.
Bukharin pagaria com sua vida por essa falsificação política da memória. No terceiro Processo de Moscou, em março de 1938, o procurador Vichinski, utilizando suas declarações demagógicas de 1923 [e “confissões” obtidas através de tortura – MLM], o acusou de haver negociado com os SR de esquerda a derrubada e prisão de Lenin. Bukharin foi condenado à morte.
Ignorantus, ignoranta, ignorantum…
Domenico Losurdo não conhece a história sobre a qual esboça comentários – às vezes ornamentados com exageradas referências a Hegel. Assim, ele qualifica de “dirigente menchevique” o chefe do governo provisório de 1917, Alexander Kerenski. Contudo, Kerenski, próximo dos SR, jamais foi parte dos mencheviques. Referindo-se ao assassinato de Sergei Kirov, em 1º de dezembro de 1934, em Leningrado, ele escreve: “De início, as investigações das autoridades focam nos Guardas Brancos”. As autoridades tinham uma forma estranha de focar neles. No dia seguinte ao assassinato, Stalin ordenou fuzilar uma centena de Guardas Brancos… que já se encontravam na prisão e a quem ninguém interrogou, já que eles não podiam, desde as suas celas, organizar o menor atentado que fosse.
Querendo confirmar sua perfídia contra Trotski, ele afirma, mais adiante: “Lenin já vê pesar sobre a Rússia soviética um perigo bonapartista e expressa suas preocupações inclusive a respeito de Trotski”. A falta de referência, uma vez mais, esconde um truque: em 1924, ano da morte de Lenin, Gorki, então na Itália, publicou “Lenin e o campesinato russo”, onde apenas cita frases elogiosas de Lenin a Trotski. Seis anos depois, já na URSS, Gorki reeditou seu livro e adicionou nele uma frase atribuída a Lenin sobre essa questão, o qual, seis anos depois de sua morte, retorna do túmulo para manifestar um temor bastante tardio sobre as imaginárias ambições bonapartistas de Trotski.
O que é mais assombroso ainda é que, em diversas ocasiões, Losurdo alude a uma suposta “conspiração dirigida por Trotski”, e reproduz (sem dizê-lo) essa fábula retomada dos Processos de Moscou, usando como referência Curzio Malaparte. Contudo, todos os historiadores consideram Malaparte uma mera fonte literária. Quem iria citar “Kaputt” em uma história da Segunda Guerra Mundial? Escritor de talento, ele considerava a história apenas como serva da literatura e fabulava como ninguém.
Ah, o bom Gulag!
Seria bom pararmos um pouco de desmontar as (facilmente desmontáveis) fantasias de Losurdo. Mas não podemos ignorar suas divagações sobre o Gulag. Ele enfatiza, com toda razão, que o Gulag stalinista não era de todo um campo de extermínio, como foram os campos nazistas destinados aos judeus.
Mas, uma vez dito isso, não podemos ler sem supressa a afirmação de que “às intenções de aplicar na ‘totalidade’ do país a ‘democracia soviética’, ‘a democracia socialista’ e, inclusive, ‘um socialismo sem a ditadura do proletariado’ [como se o proletariado oprimido exercesse, naquele momento, o menor controle! – JJM] correspondem as intenções de reestabelecer no Gulag a ‘legalidade socialista’, ou a ‘legalidade revolucionária’”. Ao fim, encontrando no Gulag “uma preocupação pedagógica”, Losurdo se extasia: “o detido no Gulag é ‘um camarada’ em potencial, obrigado a participar, em condições particularmente duras, no esforço produtivo de todo o país”. Particularmente duras, de fato, porém a palavra ‘camarada’, ainda que muito em potencial, não tem preço. E Losurdo nos jura: “até 1937 os guardas chamavam o prisioneiro de ‘camarada’. Ademais, a reclusão no campo de concentração não exclui a possibilidade de promoção social”. Que grande elevador social esse socialismo do Gulag!
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