Por que rememorar o Golpe de 64?

Por Pedro Cristiano Azevedo1

No dia 1º de abril de 1964, o então presidente João Goulart foi destituído de seu cargo, consolidando o Golpe Civil-Militar. Como professor de História, sempre me pergunto sobre o sentido de rememorar uma data como esta. 

Todo início de ano letivo, a primeira aula tem por objetivo responder à pergunta: por que estudamos História? Os estudantes trazem diversas respostas, mas algo que se repete em toda sala de aula é: “pra aprender com os erros do passado”. Essa deve ser também uma das respostas que muitos dariam à minha primeira pergunta. Como historiador, digo-lhes que essa compreensão é importante, mas não é a resposta ideal. História é a ciência que estuda as ações do ser humano ao longo do tempo, tanto as que trazem mudanças, transformações, como as que promovem permanências e continuidades. Ao falar em sala de aula da importância de estudar História, destaco que foram essas ações ao longo do tempo que fizeram com que chegássemos à realidade em que vivemos. Por isso estudamos História, principalmente para entender nosso presente.

Para entender nossa efeméride como parte de um processo histórico com implicações atualmente, não basta lembrar do Golpe de 64 como um fato isolado: é preciso vê-lo dentro da linha histórica do nosso país, cheia de permanências, rupturas e transformações. A História do Brasil é plena de movimentos populares, que reivindicaram melhores condições de vida e que foram duramente reprimidos por militares. Para citar alguns exemplos, temos a Cabanagem (1835-1840) no Pará, a Balaiada (1838-1841) no Maranhão, a Revolução Praieira (1848) em Pernambuco, Canudos (1897) na Bahia e o Contestado (1912) em Santa Catarina. 

A partir de 1935, essa história de repressão militar ganha um novo elemento, que se repete até nossos dias: o anticomunismo. Naquele ano, a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e o PCB tentaram organizar um levante com o objetivo de tomar o governo de Getúlio Vargas, que começou nos quartéis, mas limitou-se a esses espaços, sendo reprimido pelos militares. Esse episódio é relembrado com orgulho pelas Forças Armadas até hoje, como uma forma de manter vivos os ideais de combate ao comunismo. Esse ideal de proteger a nação contra o perigo vermelho foi a justificativa, forjada no Plano Cohen criado pelo integralista Olímpio Mourão e atribuído aos comunistas, para a implantação do Estado Novo em 1937 com o apoio de militares, os mesmos que, em 1945, vão depor Getúlio Vargas.

No governo de um militar temos o último elemento que considero importante nesta recapitulação da linha do tempo de nossa História: o alinhamento das ações do governo com os EUA no início da Guerra Fria pelo Marechal Eurico Gaspar Dutra, presidente do Brasil entre 1946 e 1951. Seu sucessor foi Getúlio Vargas, que retornou à presidência pelo voto popular com a bandeira nacionalista. O segundo governo de Vargas não agradava completamente os interesses dos EUA e, em 1954, comandantes militares já se movimentavam para depô-lo novamente, porém o suicídio do presidente gerou uma comoção popular que teria interrompido as intenções golpistas dos militares.

Em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, o então vice-presidente deveria assumir. No entanto, João Goulart, o Jango, era considerado muito radical pela alta hierarquia das Forças Armadas, e teve seu nome impugnado. A mobilização popular garantiu que Jango assumisse, mas com restrições de poderes, com o estabelecimento do sistema parlamentarista de governo. O período foi marcado pelo crescimento de movimentos e lutas populares, que aumentaram após um plebiscito para pôr fim ao sistema parlamentarista em 1963, dando plenos poderes de presidente a Jango. João Goulart iniciou a implantação de reformas de base apoiado pelo movimento sindicalista em todo o país, luta à qual aderiram as Ligas Camponesas em defesa da Reforma Agrária e o movimento estudantil, que reivindicava uma nova estrutura educacional.

A propaganda anticomunista alcançou todos os setores da sociedade brasileira; propagava-se que Jango tinha intenções de implantar o regime socialista no Brasil com suas reformas. O país encontrava-se em uma grave crise política, que alcançou seu clímax em 13 de março, quando mais de 200 mil pessoas se concentraram nas ruas do Rio de Janeiro para apoiar Jango e seus ministros na assinatura das Reformas de Base. Esse ato de força e apelo popular de Jango causou reação do generalato.

Setores conservadores organizaram manifestações, em resposta a essa mobilização, nas chamadas “marchas da família, com Deus, pela liberdade”, que deram respaldo popular ao golpe que viria dias depois. No dia 31 de março de 1964, tropas comandadas pelo General Olímpio Mourão, o criador do Plano Cohen, saíram de Juiz de Fora – MG em direção ao Rio de Janeiro, com o objetivo de depor o presidente. Na noite de 1º de abril, Jango parte para Porto Alegre, o presidente da Câmara Ranieri Mazzilli declara vacância na presidência e assume temporariamente o poder até o dia seguinte, quando os militares passam a decidir os rumos do governo. Os anos seguintes foram marcados por autoritarismo, perseguições políticas, tortura, cassação de direitos e tantas outras barbáries do governo ditatorial. 

Depois dessa recapitulação, que não tem a pretensão de ser completa e 100% precisa, retornamos à pergunta: qual é o sentido de rememorar uma data como esta? A resposta é que isso ajuda a compreender que esse evento de nossa história faz parte de um longo processo histórico, de repressão militar a movimentos populares, de propaganda anticomunista e de alinhamento político-ideológico ao imperialismo norte-americano, questões que ainda têm suas implicações e reminiscências atualmente. Ajuda também a entender que somos sujeitos históricos e que, ao nos apropriarmos desse conhecimento histórico que faz parte da constituição do que somos enquanto país, sociedade e indivíduos, temos em nossas mãos potenciais ferramentas que podem nos ajudar a colocar um fim nesse processo histórico sem deixar de responsabilizar os envolvidos nesse período tão cruel de nossa história.

Referências

  1. Pedro é mestre e professor de história

Um comentário sobre “Por que rememorar o Golpe de 64?

  • 3 de abril de 2021 at 2:46 am
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    Excelente retrospectivas histórica.

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