por Mauricio Gonçalves1
I
Quando digitamos Round 6 em sites de busca, um dos resultados diz: “um grupo de pessoas passando por dificuldades financeiras aceita um estranho convite para um jogo de sobrevivência. Um prêmio bilionário os aguarda, mas as apostas são altas e mortais”. Um dos maiores sucessos de audiência da Netflix2, Round 6 atrai e estimula por conseguir exprimir transfiguradamente traços fundamentais da realidade social do tempo presente. Como Parasita (Bong Joon-ho, 2019), que já tinha mostrado a potência criativa dos sul-coreanos em captar o “espírito do tempo” ou a “estrutura de sentimento” de nossa época, Round 6 revela mecanismos neoliberais de funcionamento social universalizados ou em vias de naturalização.
Na narrativa ficcional da série, criada e dirigida por Hwang Dong-hyuk, os jogadores-prisioneiros são raptados, em dado momento por vontade própria, e direcionados para uma ilha onde se tornam números e corpos disciplinados à disposição da instituição total(itária) anônima, com sua estrutura impessoal e hierárquica: a empresa-jogo. Quem são os jogadores? Trabalhadores manuais, precários, por tempo parcial, por bicos, imigrantes, desempregados, do mercado informal, mas todos muito superendividados (maioria absoluta da população sul-coreana), que entram no jogo de apenas 3 regras: (1) não se pode sair do jogo, (2) não se pode deixar de jogar e (3) o jogo só acaba se a maioria decidir pará-lo. Por serem expropriados de tudo, ou seja, apenas possuindo e sendo reduzidos à sua corporeidade biológica como seres em decomposição social, os recrutados chegam a assinar termos renunciando à sua própria integridade física, e sonham ilusoriamente com a salvação ou redenção financeira individual.
II
Como segmento social, a condição de endividamento permanente e insolúvel desses indivíduos é comprovação de sua descartabilidade social para a ordem dominante, inviabilizados para compor as cadeias de acumulação do capital financeirizado global e quase que incapacitados de fazer parte, mesmo que parcial, fugaz e intermitentemente, da força de trabalho hiperprecária, que apenas existe (ou dura) para adiar sofrimentos ou para estender um tempo de vida sem sentido. A Coreia do Sul que aparece em Round 6 é a expressão lógica e social mais desenvolvida da hegemonia do capital neoliberal também, ou principalmente, no Oriente do século 21: uma sociedade moldada pela liberdade irrestrita de movimento do capital, onde a impessoalização e a dissolução final dos mínimos laços e vínculos sociais e de identificação comum (ou comunitário) já se consolidaram. É nessa Coreia do Sul ocidentalizada no olho do furacão neoliberal que se passam as adversidades dos personagens da série.
O herói, Gi-hun, é um pai divorciado, desempregado e endividado que mora com e é basicamente sustentado pela mãe diabética e bastante idosa. Tendo trabalhado por 10 anos na indústria automobilística e participado de greves e paralisações – “Eu aprendi a fazer barricadas com os demais trabalhadores da fábrica”, dirá Gi-hun no galpão-dormitório de Round 6 –, ele lembra os precários desempregados de meia-idade de Segunda-feira ao sol (2002), de Fernando León de Aranoa. Sua ex-mulher, já novamente casada, planeja se mudar para os EUA, coisa que irá afastar de vez Gi-hun da filha. Ele aparece como o protótipo do fracassado social. A démarche da série mostrará que Gi-hun, herói comum e “gente como a gente”, é o reservatório último do senso de humanidade e do reconhecimento do ser genérico dos outros, característica ético-moral todavia incompatível com a competição implacável de vida ou morte na/da empresa-jogo.
A empresa-jogo é uma estrutura mantida por um corpo de funcionários indistinguíveis, a não ser pelos números e figuras geométricas em seus uniformes: do comandante, que veste preto (uma espécie de diretor-geral), aos supervisores e funcionários-guardas que estão em vermelho e com símbolos diferenciados por seu status na organização (triângulo, quadrado e círculo)3, todos são mascarados, dormem em quartos individualizados e separados, lembrando solitárias, e são em geral homens muito jovens, também subordinados à macroestrutura de autoridade feita para a eliminação dos jogadores-prisioneiros – o que nos lembra o aspecto geracionalmente preconceituoso do mercado de trabalho pós-fordista, que se vale dos mais jovens tanto pela falta de memória e experiências coletivas como pela necessidade ou maior disposição para trabalhar muito mais por menos. Eventualmente alguns desses funcionários despersonalizados beneficiam-se ilegalmente de suas posições através do tráfico de órgãos dos jogadores mortos ou assassinados, o que confirma a redução dos jogadores-prisioneiros a meros portadores de órgãos, reificados e quase como zumbis, aguardando para que partes de seus corpos sejam transformadas em mercadorias.
Na empresa-jogo, os perdedores são mortos e têm seus corpos incinerados. Portanto, eles são literalmente apagados, desaparecidos, como se não tivessem jamais existido. Mas quem vai reivindicá-los? Aqui percebemos a figura dos cidadãos de segunda classe, os matáveis, e o caráter sobrante dos trabalhadores hiperprecários. Seja numa pandemia, seja pela criminalidade, pela acumulação por despossessão ou por migrações forçadas e morte no percurso, quem vai reclamar pelas vítimas sem nome do “moinho satânico” (Polanyi)? A ilha de Round 6 é uma espécie de campo de concentração social ampliado, ou uma metáfora para o neoliberalismo como uma sociedade penitenciária global ou como universo concentracionário.
III
A noção de jogo emula a explosão da lógica dos reality shows das últimas décadas: exploração, tortura e humilhação, ainda que autoinfligida, são mascaradas como diversão e ludicidade, como bem nos mostrou Silvia Viana em Rituais de sofrimento. Gozar na dor e sofrimento de si e dos outros mostra a perversão e alienação dos desejos.
O dispositivo de jogo totalitário dá a chance de ser abandonado por seus participantes, mas apenas majoritária e coletivamente. Contudo, para onde podem ir se a sociedade neoliberal não trabalha com a hipótese de integração laborativa e cidadã para eles, trabalhadores supérfluos? A guerra de todos contra todos e a dessolidarização são expostas abertamente e os jogadores-trabalhadores são compelidos, ou mesmo socialmente obrigados, a voltar ao jogo cruel, já que não há saída individual para seus dilemas pessoais e suas dívidas impagáveis. A impiedade é onipresente, seja na ilha-prisão da empresa-jogo, seja na Seul neoliberal do século 21. A riqueza de mensagens metafóricas da série é vasta: nem os rituais democráticos são solução (regra 3 acima), pois mesmo optando por sair coletivamente do jogo, em processo de votação individual e aberto, 93% acabam retornando ao jogo-prisão por falta de opção macrossocial às suas vidas ordinárias desesperadas. Sem mudança estrutural, qualquer saída individual, ou através de votações limitadas à esfera política, é uma ilusão ou um adiamento de mais sofrimentos.
Além disso, a dominação cultural neoliberal busca disseminar uma ideia-força: a aproximação entre as noções de vida e jogo, ou de que viver é jogar. Daí o sucesso de filmes e séries que se valem do mote dos jogos. No caso de Round 6, como em várias outras séries, o jogo é bastante violento (oposto à noção de ludicidade como elemento de sociabilidade e construção do eu e do nós), mas ele precisa e procura se legitimar para que possa normalizar a violência desmedida. Como? Há um valor ou princípio de igualdade e de justiça na empresa-jogo: a igualdade de oportunidades abstrata literal. É uma espécie de afirmação dogmática da igualdade liberal como homogeneização e competição igual para todos – homens, mulheres, fortes, fracos ou velhos. É o indivíduo abstrato do mercado como instituição instauradora do social em sua igualdade tirânica. Sem exceções, é o salve-se quem puder, é o “cada um por si e todos contra todos”. O princípio em questão: “Aqui os jogadores têm um jogo limpo e nas mesmas condições. Essas pessoas sofriam com desigualdade e discriminação lá fora, e estamos dando a elas a última chance de lutar de forma justa e vencer”, diz o mascarado diretor-geral de Round 6 antes de assassinar um dos funcionários que vai de encontro às “regras iguais e justas para todos”. Assim, o neoliberalismo, que é a fonte suprema da desigualdade, aparece como ordem social isonômica e faz com que as próprias vítimas sociais se percebam no interior de um processo justo, responsabilizando única e exclusivamente a si mesmas por seu próprio fracasso ou morte. É o darwinismo social e culturalmente justificado, normalizado e legitimado em seu estado puro.
A ordem de efetivação dos diferentes jogos (mortais) é desconhecida pelos participantes. As habilidades de cada um devem ser o mais geral e multidisciplinares possível, congregando força física e inteligências cognitiva e relacional. Como o trabalhador que tem que estar disponível para o trabalho, o jogador-descartável de Round 6 deve ser capaz de ser multifuncional.
Se há a possibilidade de identificação entre os trabalhadores-jogadores-competidores e o estabelecimento de uma dimensão coletiva (de nós), uma espécie de consciência de classe, ela parece caducar antes mesmo de se estabelecer, ainda que seja exatamente isso que o herói Gi-hun tenta viabilizar (tendo no ótimo personagem Sang-woo o seu oposto ideológico). É quando a tirania e o sadismo social do jogo parecem não ter fim: a “cooperação competitiva” faz com que equipes (ou duplas) de jogadores cooperadores lutem uns contra os outros, de modo semelhante como vemos em vários reality shows. No excelente episódio Gganbu, a pessoa mais importante na produção de nossa própria identidade torna-se um competidor e adversário potencial e real, que terá de ser eliminado na competição infinita do jogo-vida. Em coreano, Gganbu tem um significado bastante amplo, referindo-se a uma amizade cheia de confiança e sentimentos intensos compartilhados a todo momento. Não é a figura da “cooperação competitiva” que busca ser naturalizada em programas como The Voice Brasil, BBB, A Fazenda, O Aprendiz, Masterchef, dentre outros? O neoliberalismo em Round 6 é um totalitarismo que exclui a possibilidade de estabelecimento de laços sociais e, por isso, é a tendente dissolução do reino do social. É a anomia como ordem social normalizada. Round 6 nos remete à noção de estado de natureza segundo Hobbes ou os jusnaturalistas, mas que não está lógica e historicamente anterior ao estado civil contratual: é o estado civil (o do contrato social) como institucionalização do estado de natureza. É o curto-circuito de certa teorização dualista.
IV
O cofre em forma de porco (ou o porquinho-cofre de moedas) é o Deus do jogo, alimentado por milhões de wones (moeda da Coreia do Sul) à medida que os jogadores descartáveis vão sendo eliminados. É por ele que matam, se sacrificam e morrem. É o fetiche da mercadoria-dinheiro no seu trono soberano. Que tem ainda nos chamados VIPs – sádicos homens brancos que falam inglês (e não coreano) e se divertem assistindo aos rituais de morte dos jogadores em salas exclusivas regadas a bebidas alcoólicas, muitas iguarias e potencial satisfação sexual imediata – as personificações do capital financeiro global.
Reviver alegrias e memórias da infância sob os escombros da realidade fria do cálculo financeiro da riqueza acumulada é o último refúgio da produção de sentido para Il-nam, o bilionário e criador da empresa-jogo. É por isso que os jogos em 6 etapas (Round 6) remetem a brincadeiras de crianças: “Batatinha frita 1, 2, 3”, “Bolas de gude”, “O jogo da lula”, “Cabo de guerra” etc. De forma sádica, perversa e mórbida, é o último resquício de humanidade para Il-Nam. É a justificação filosófica para o seu empreendimento.
E é o próprio Il-nam quem nos mostra a transfiguração do social (exterior) para o jogo (interior) como faces de uma mesma moeda: se a sociedade contemporânea de Seul já descartou mesmo as pessoas mais vulneráveis e elas são sub-humanos invisibilizados, qual o problema do jogo mortal criado? É então que percebemos que para ele a empresa-jogo é a realidade efetiva, a verdade ocultada da lógica societal.
Round 6 tem em comum com a saga Jogos vorazes (2012), V de vingança (2005) e O conto da aia (2017) a consolidação de uma ordem social hermética, ainda que os três últimos retratem um regime estatal pós-contrarrevolucionário, como que anunciando uma crise terminal da civilização liberal-democrática ou de um período em que a ordem liberal-democrática se metamorfoseia em uma outra de tipo fascista. Não deixam de ser sintomas de um tempo em que parece “mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo” (Mark Fischer). Se as saídas coletivas para a reversão do universo despótico de Round 6 estão basicamente ausentes, suas figurações e argumento artístico nos ajudam a escrutinar a miséria de nosso tempo.
Referências
- Mauricio é ativista, colabora com movimentos sociais e é professor de Sociologia no IFRN.
- “Round 6 já é a série da Netflix mais vista no mundo”. Retirado de O especialista: <https://oespecialista.com.br/round-6-neflix-mais-vista-no-mundo/>. Acesso em: jan. 2023.
- “Os símbolos, na verdade, fazem referência ao alfabeto coreano, no qual o título original da série é escrito. Especificamente, a letra O é o círculo (ㅇ), o J é o triângulo (ㅈ) e a letra M é o quadrado (ㅁ). Ao combinar essas 3 letras, obtemos “OJM”, que aparecem na palavra Ojingeo Geim (오징어 게임) — abreviação de ‘O jogo da lula’ em coreano”. Retirado do portal AdoroCinema: <https://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-160743/>. Acesso em: jan.2023.
Pingback:SÉRIES QUE VENDEM REBELDIA, MAS ENTREGAM RESIGNAÇÃO |