Sebastiana e Rufino, lideranças espirituais Guarani Kaiowá, foram assassinadas por defender seu território

por Felipe Mattos,[1] 18 de setembro de 2023

No dia 18 de setembro de 2023, a nhandesy (rezadora) Sebastiana Gauto e o nhanderu (rezador) Rufino Velasquez foram queimados vivos no interior de sua casa no tekoha Guassuty, no município de Aral Moreira, Mato Grosso do Sul. Guassuty é uma Terra Indígena (TI) do povo Guarani Kaiowá homologada desde 1992. Os rezadores e rezadoras, guardiões dos modos de ser, guias espirituais dos povos Guarani Kaiowá, vem sendo alvo frequente de ameaças e assassinatos, principalmente como resultado da pressão do agronegócio e atores correlatos sobre as terras indígenas. Partícipes das novas frentes de colonização, instauradas pela atual corrida neoextrativista que busca suprir as demandas crescentes do mercado de commodities, as igrejas pentecostais também cumprem papel fundamental enquanto produtoras de regimes de contra-insurgência, debilitando relações comunitárias e fomentando a perseguição às lideranças religiosas tradicionais.

As ameaças contra o casal ancião de rezadores – Sebastiana tinha 92 anos -, segundo o antropólogo Guarani Kaiowá Tonico Benites, entrevistado para esta matéria, são resultantes de acusações de feitiçaria: “é isso que caracteriza a intolerância religiosa, em parte. Como ela é uma liderança espiritual-religiosa, ela sempre reza de forma tradicional, ela tem artefatos tradicionais do povo, como o xiru: uma vara sagrada, um altar sagrado. É o instrumento religioso usado pelo casal de rezadores. E eles tem promovido rezas e rituais religiosos a noite. No entorno, tem uma igreja pentecostal.”

A atuação das igrejas pentecostais, em especial, a igreja Deus é Amor, em território Guarani e Kaiowá, foi alvo de denúncias e de um dossiê organizado pela Kuñangue Aty Guasu (grande assembleia das mulheres Guarani e Kaiowá) e Observatório da Kuñangue Aty Guasu (OKA) em 2021, intitulado “Intolerância religiosa, racismo religioso e casas de reza Kaiowá e Guarani queimadas”[2]. No dossiê, afirmam a “existência de articuladores externos – no geral, pastores/dirigentes/missionários não-indígenas – que promovem as práticas de violência aqui descritas e estimulam o aliciamento de moradores/as das aldeias como método de terceirização das violações”, sendo a igreja um “fator desagregador e causador de divisionismo no interior das aldeias”. O relatório aponta que 12 ogápysy– casas de reza – foram incendiadas por ação de membros das pentecostais entre 2019 e 2022. No Mapa da Violência produzido pela assembleia das mulheres, foram registrados “21 casos de espancamentos, torturas, violências psicológicas e perseguição de mulheres rezadeiras, nhandesy, que praticam o cuidado tradicional. Elas foram julgadas em público, suas casas foram queimadas, foram expulsas da comunidade, humilhadas, condenadas como ‘bruxas’ e ‘feiticeiras’”. Na casa queimada do rezador e da rezadora de Guassuty, também foram carbonizados, junto de seus corpos, os seus instrumentos sagrados, artefatos cuidadosamente guardados em suas casas de teto de palha, onde realizavam suas rezas

O mesmo relatório aponta os vínculos existentes entre essas igrejas e arrendamento de terras indígenas para o plantio de soja. Em Guassuty, há um grave problema vinculado as “parcerias” agrícolas entre indígenas e não-indígenas – arrendamentos -, que ocupam quantidade relevante dos 958 hectares da TI para o monocultivo de soja transgênica. Tonico Benites, que também é Coordenador Regional da FUNAI de Ponta Porã, também nos aponta que Sebastiana e Rufino eram contra as práticas de arrendamento, Sebastiana era “contra a plantação por terceiros naquela terra indígena. Ela denunciava também. Não aceitava, discordava dessa prática do não-indígena plantar em parceria com outros líderes envolvidos. Então são lideranças religiosas, portadores de conhecimento do povo, lideranças espirituais, liderança religiosa que defende a tradição do povo: a língua, a cultura, a regra… são portadores dessa regra. Por isso a posição dela não é só dela: é uma posição de todas as lideranças espirituais e religiosas que são os rezadores e rezadoras. Por isso as mulheres sofrem ameaça de morte. Tem organização das mulheres que são contra o arrendamento de forma reiterada, contra arrendamento de terra indígena pelos karaí, os não-indígenas, que falam que trabalham em “parceria”. Isso ela tem denunciado muito.”

A mesma rede de rezadoras, mais que uma organização formal, se estrutura por meio de suas próprias práticas tradicionais, o que reforça o caráter de barreira espiritual e material contra a pilhagem dos corpos-territórios para integrá-los ao sistema de acumulação capitalista. No dia 15 dezembro de 2022, a nhandesy Estela Vera Guarani, de 67 anos, foi assassinada por homens encapuzados na retomada de Yvy Katu, próxima a Reserva Indígena de Porto Lindo, entre os municípios de Iguatemi e Japorã. Assim como Sebastiana e Rufino, Estela lutava contra o arrendamento. Yvy Katu é uma das 33 terras indígenas, reservas e retomadas Guarani e Kaiowá que estão no caminho do megaprojeto Nova Ferroeste, que conectará Maracaju (MS) ao porto de Paranaguá (PR) para o escoamento de commodities[3]. O assassinato se dá em meio ao avanço dos arrendamentos de terra para plantio de soja e – assim como no caso ocorrido em Guassuty – em oposição a outras lideranças, principalmente mulheres, com participação ativa do poder público, incluindo o próprio prefeito do município de Japorã. No caso de Guassuty, em maio de 2022, foram entregues 274 toneladas de calcário pela Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural (AGRAER) por meio do Programa de Apoio às Comunidades Indígenas de Mato Grosso do Sul (PROACIN), supostamente para correção do solo e “aumento da produtividade e o fortalecimento da agricultura familiar”[4]. O PROACIN também realiza distribuição de sementes, inclusive milhos transgênicos tipo AL Bandeirantes, além de maquinário agrícola.

Destacamos a relação do acontecimento com o tráfico de drogas no interior da comunidade, prática também combatida por lideranças tradicionais, como nos informa um interlocutor que preferiu não ter seu nome divulgado. A relação entre o tráfico e o neoextrativismo é fato conhecido que atinge, por exemplo, terras indígenas na Amazônia saqueadas pelo garimpo ilegal e pela mineração. Sebastiana e Rufino também se posicionavam contrários ao tráfico e lutavam para libertar seu tekoha deste conjunto de ameaças provocadas pelos karaí – não-indígenas – como parte de um projeto de extermínio voltado contra os povos indígenas, caso não se submetam às demandas do capital.

O brutal assassinato de Sebastiana e Rufino ocorre um mês depois da execução da Ialorixá e líder quilombola mãe Bernardete, que sofria inúmeras ameaças e teve seu filho assassinado em 2017. A morte de mãe Bernardete por defender e lutar pela titulação do território Pitanga dos Palmares (Salvador-BA) se conecta à luta pela recuperação dos territórios ancestrais indígenas. As retomadas Guarani e Kaiowá e a memória de seus mártires seguem dizendo, rezando-cantando-dançando – como no batismo do milho que impede o fim do mundo – que não irão se curvar, em uníssono com os atabaques e cantos nas giras de terreiro. Para que o mundo não acabe, os nhanderu e as nhandesy precisam seguir vivos.


[1] Felipe Mattos é antropólogo.

[2] Disponível em: https://apiboficial.org/files/2022/03/Relato%CC%81rio_Intolera%CC%82ncia-religiosa-racismo-religioso-e-casa-de-rezas-queimadas-em-comunidades-Kaiowa%CC%81-e-Guarani.pdf.

[3] Mais informações sobre o assassinato de Estela Vera estão disponíveis no seguinte link: https://contrapoder.net/colunas/quem-mandou-matar-a-rezadora-estela-vera-guarani/

[4] Disponível em: https://agenciadenoticias.ms.gov.br/indigenas-da-aldeia-guassuty-recebem-274-toneladas-de-calcario-por-meio-do-proacin/.


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

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