Sobre a Rebelião da PM no Ceará

Daniel Emmanuel

Nesta semana o país foi surpreendido com uma violenta rebelião da PM do Ceará, que tem como objetivo declarado a reivindicação por reajuste salarial para a categoria e culminou na tomada de vários quartéis por grupos encapuzados, que inclusive, numa ação autoritária, chegaram a ordenar o fechamento do comércio no município de Sobral. O momento mais crítico foi o enfrentamento que resultou no atentado a tiros contra o senador Cid Gomes, quando tentava furar uma barricada levantada pelos insurretos com uma retroescavadeira.

Conforme as notícias, o movimento da PM começou a alguns meses, quando as entidades representativas dos militares iniciaram processo de negociação com o governo Camilo Santana, do PT, para definir o reajuste da categoria. De acordo com o governo, as entidades haviam aceitado uma proposta de reajuste de quase 30%, que elevaria a remuneração dos soldados dos atuais R$ 3.475,00 para R$ 4.500, parcelado em três vezes, até 2022. Contudo, setores descontentes com esse acordo iniciaram a rebelião.

Porém, há dois elementos importantes que diferenciam este movimento de todos os outros. Primeiro, ao invés de usar táticas como aquartelamento dos praças e ações públicas dos seus familiares, a rebelião no Ceará foi desencadeada por grupos encapuzados, que tomam quarteis, levantam barricadas nas ruas e estabelecem verdadeiro estado de sítio contra a sociedade civil. Segundo, a rebelião no Ceará foi apoiada, e até mesmo animada, por figuras ligadas ao bolsonarismo que, inclusive, se tornaram porta-vozes do movimento.

Isso leva a crer que há muito mais coisas envolvidas, além da reivindicação salarial dos policiais militares, que pode estar sendo usada como pretexto para um movimento muito maior e mais grave. Tanto os analistas dos órgãos de imprensa, como os partidos de esquerda (em especial o PT), têm condenado essa rebelião por seus excessos e atribuído uma responsabilidade indireta dos fatos ao próprio Bolsonaro, que incentiva e mesmo autoriza tais ações com seu discurso de ódio. Já o apoio das figuras bolsonaristas ao movimento tem sido analisado como parte da disputa eleitoral no Ceará ou de desgaste do governo petista.

É uma hipótese válida, e deve ser considerada. Porém, o ato aparentemente impulsivo e desastrado de Cid Gomes, que acabou levando dois tiros, e principalmente a declaração de Ciro Gomes, que afirmou estarem enfrentando uma ação da milícia e criticou a esquerda dizendo que não se enfrenta fascismo com flores, abre espaço para outra interpretação: a de que se trata de um movimento de milícias, diretamente orquestrado pelo boslonarismo para ganhar espaço na estrutura do Estado. É uma hipótese igualmente válida, que, se confirmada pela realidade, coloca o país diante de uma situação muito mais instável e perigosa.

Se realmente for confirmada uma ação de grupos ou milícias nesta rebelião da PM do Ceará, este pode realmente ser o primeiro ato de um movimento, com possibilidade de culminar numa tentativa de golpe ou quartelada, não apenas contra o governo de Camilo, no Ceará, mas também em outros estados, visto o potencial que este movimento das PM tem para se alastrar pelo país, como, aliás, já está sendo noticiado pela imprensa.

Portanto, a possibilidade de que a rebelião da PM do Ceará seja, de fato, uma ação orquestrada por setores do bolsonarismo deve ser seriamente considerada. Para isso, é importante estarmos atentos a outros dois importantes elementos da conjuntura.

O primeiro deles é a divisão entre setores da burguesia em torno da implementação do projeto ultra liberal de Guedes/Bolsonaro. Embora haja unidade da burguesia em torno das reformas que atacam direitos dos trabalhadores e da população, não há consenso entre as diversas frações classe dominante sobre outras reformas estruturais, como reforma tributária, reestruturação do pacto federativo, etc. A implementação do projeto ultraliberal resultaria o enfraquecimento ou mesmo a falência de setores inteiros da burguesia, que não aceitarão calados essa situação.

Esta divisão e disputa encarniçada entre os diversos setores da classe dominante é um traço característico da crise da Nova República, isto é, do consenso entre as classes dominantes sobre o qual se assentou a estabilidade econômica e política do Brasil desde meados da década de 1990. Porém, frente a crise econômica e a crise do modelo de desenvolvimento brasileiro, não há bases materiais que possibilitem o estabelecimento de um novo consenso entre as frações da burguesia hoje. Pelo menos não de forma negociada, democrática. Por isso, afirmamos que a instabilidade é o signo desta etapa.

A única forma viável para se estabelecer uma estabilização do regime, no curto prazo, seria através de uma medida de força, autoritária, de uma fração da burguesia (ainda que coordenada por um movimento político calçado na pequena-burguesia, como é o bolsonarismo) contra todas as demais frações da classe dominante e das outras classes sociais. Aliás, esse caminho foi delineado com uma sinceridade incrível por Carlos Bolsonaro, quando disse, em setembro passado, que “por vias democráticas, a transformação que o Brasil quer não acontecerá”, o que demonstra bem o caráter fascista do movimento dirigido pelo seu clã.

Neste contexto, não me parece que o risco maior venha dos generais que ocupam altos cargos no governo, como muitos têm argumentado, pois estes já tem uma posição consolidada na estrutura do Estado e, ao que parece, até agora têm atuado como uma espécie de moderadores do discurso ideológico de Bolsonaro. Esses militares de alto coturno podem — e devem mesmo — vir a se somar numa saída autoritária. Mas, neste primeiro momento, o maior risco vem da mobilização da baixa e média oficialidade das forças armadas, que corporativamente almejam uma posição de maior destaque na estrutura do Estado, e que são parte importante da base social do bolsonarismo.

O segundo elemento da conjuntura a ser considerado é o recrudescimento da tensão entre o bolsonarismo no governo com as outras instituições do regime. Nesta seara, dois fatos importantes aconteceram nesta semana: a carta dos 20 governadores confrontando declarações de Bolsonaro sobre temas de interesse dos estados, e a crise aberta com a declaração do general Heleno, na qual afirmou que o congresso está chantageando o executivo. Embora os analistas da imprensa situem esses conflitos no marco estreito das disputas eleitorais, é certo que a crise tem raízes muito mais profundas.

Na verdade, o bolsonarismo, por ser produto da crise da Nova República, ou melhor, por ele ser a expressão institucional de negação da Nova República, não cabe nas estruturas republicanas. O bolsonarismo precisa abrir espaço a força para se consolidar como governo. Esta é a razão do conflito do executivo com as demais instituições do Estado, que assumem uma posição conservadora em relação à estrutura da Nova República. Além disso, essas crises institucionais estão diretamente relacionadas com a divisão entre as frações da burguesia que tratamos antes. É a expressão superestrutural desta divisão. Em outras palavras, deve-se ter em conta que a implementação do projeto ultraliberal de Guedes/Bolsonaro importa, além das reformas que retiram a regulamentação do trabalho e que limitam ou eliminam a oferta de serviços públicos, numa profunda mudança estrutural do país. Na prática, é uma nova constituinte que está em gestação. As principais questões em disputa hoje dizem respeito à dois pontos: reforma tributária, isto é, quem paga os tributos e como o bolo é dividido; e a reestruturação do pacto federativo, ou seja, ao grau de autonomia que terão estados e municípios.

É preciso termos em conta que o projeto ultraliberal é, por natureza, centralizador, do mesmo modo que é a sua expressão política de hoje, o bolsonarismo. É certo que se trata de um programa burguês, mas um programa burguês que, se implementado, tende a retirar espaço ou mesmo levar à bancarrota setores inteiros da classe dominante. Portanto, para implementar o projeto ultraliberal, o governo Bolsonaro precisa derrotar a resistência que surge no Congresso e nos governos estaduais e municipais, precisa vencer as diversas frações decadentes da burguesia que se abrigam nestes espaços e que não irão abrir mão passivamente do seu quinhão de poder.

É nestes marcos que a mobilização de setores das forças de segurança, sob a direção do bolsonarismo, representam um grande risco para o país. A rebelião da PM no Ceará, que inclusive tem potencial para se alastrar para outros estados, pode perfeitamente ser instrumentalizada pelo movimento bolsonarista para colocar os governos estaduais, hoje em sua maioria críticos às reformas estruturais, de joelhos. Inclusive, é bem provável que este seja o objetivo das figuras bolsonaristas que atuam neste movimento. Neste aspecto, pouco importa se o movimento surgiu da base das PM e depois for empalmado pelo bolsonarismo, ou se surge diretamente animado por grupos ou milícias bolsonaristas.

Além de ser uma medida de força para tentar vencer a oposição dos governadores, o que responde a uma demanda mais imediata do governo, a mobilização das bases das forças de segurança, combinada a outras medidas já adotadas, como o decreto que permite a militarização dos serviços públicos, por exemplo, pode estar se conformando um movimento do bolsonarismo para se apropriar de mais espaço dentro da estrutura do Estado. Deste modo podemos estar diante da construção de uma cisão ou da formação de um poder paralelo, por dentro da estrutura do próprio Estado.

Se for esta a natureza do movimento que ocorre na PM do Ceará, então, é preciso reconhecer que a ação dirigida pelo senador Cid Gomes foi correta, embora desastrada. Correta porque não se trata de uma greve reivindicatória apenas, mas uma ação tipicamente fascista, levada a cabo por grupos ou milícias que atuam dentro da PM cearense sob a direção bolsonarista e buscam se apropriar de espaços de poder. Nesse sentido, também foi correta a declaração de Ciro Gomes, que defendeu a ação do irmão como um ato de coragem contra as milícias e criticou a esquerda ao dizer que não se combate o fascismo com flores. É o extremo oposto, por exemplo, do que fez Renato Rosseno, do PSOL, que exigiu serenidade das partes para superar a crise. De fato, o fascismo não se enfrenta com flores nem com serenidade.

Desastrada porque Cid se limitou a mobilizar um pequeno grupo para enfrentar a quartelada, quando, na verdade, a situação exigia a mobilização de todo o povo, principalmente os setores que foram diretamente prejudicados com a ação, como os comerciantes, estudantes, trabalhadores, etc. Mas este não foi um erro de cálculo exatamente. Trata-se de um limite que não pode ser superado pela corrente dirigida pelos irmãos Gomes, pois, embora afirmem corretamente que o fascismo deve ser enfrentado com a violência proporcional a utilizada pelas milícias, eles, assim como PT, a maioria do PSOL e das “forças progressistas” do país, também representam uma posição conservadora em relação à Nova República. Todos eles lutam, em vão, para que tudo volte a se estabilizar como antes.

Além de ousadia e coragem para enfrentar as ameaças fascistas, é necessário agitarmos para as massas uma saída para além do arranjo da Nova República, sob a ótica dos trabalhadores e que seja capaz de acaudilhar consigo as classes médias da sociedade. Isto é, é necessário um verdadeiro programa para a revolução brasileira que, além de dar respostas concretas às tarefas inconclusas da revolução burguesa, ponha em questão a disputa pelo poder e do controle da sociedade organizada sobre as estruturas do Estado, inclusive das forças de segurança. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que travamos a luta contra as ameaças fascistas representadas pelo bolsonarismo, devemos lutar também pela mudança revolucionária da sociedade. São lutas indissociáveis, que se travam no mesmo tempo histórico, e que justificam a atualidade da revolução hoje.

Deste modo, visto que os acontecimentos no Ceará têm potencial de tomar proporções nacionais e de estar direta ou indiretamente ligadas a disputa pelo poder, temos não só de estar atentos para interpretar os fatos, mas armados para atuar diante deles. A rebelião na PM cearense coloca na ordem do dia alguns eixos que devem nortear a agitação e propaganda da esquerda revolucionária.

A primeira é a defesa da mais ampla unidade de todas as forças democráticas para enfrentar as ameaças fascistas e o bolsonarismo. A carta de princípios desta unidade deve se concentrar no enfrentamento de todas as medidas que apontem para a apropriação da estrutura do Estado pelo bolsonarismo, como parece ser a rebelião da PM cearense, o ato que permite a militarização dos serviços públicos, e as ações das milícias e do crime organizado que têm se apropriado de espaços abandonados pelo Estado em decorrência da implementação dos projetos liberais. Este é o limite justo da ampla unidade a ser defendida pelos revolucionários, que deve ser construída de forma a não limitar a sua ação autônoma frente as demais forças da social democracia ou do liberalismo democrático.

Segundo, a esquerda revolucionária deve lançar para a sociedade uma campanha que responda aos problemas mais concretos e imediatos da classe trabalhadora, como desemprego, precarização do trabalho, endividamento, etc., combinada com a propaganda de necessidade de reestruturação do Estado, dos serviços públicos, da estrutura produtiva do país, e a necessidade de que o povo organizado que assuma a direção dos negócios do Estado. É evidente que essa campanha deve ser elaborada através de medidas concretas, que não cabem ser desenvolvidas aqui, mas que lançam as bases para elaboração de um programa efetivamente revolucionário, calçado no movimento real. A partir desta campanha é que se fará a crítica aos limites da social democracia no movimento.

Terceiro, mais especificamente em relação ao movimento das PM, devemos defender a justeza de qualquer reivindicação salarial, mas que devem ser desenvolvidas conjuntamente com todas as categorias de trabalhadores, do serviço público ou não. Neste viés, devemos defender o combate frontal contra qualquer tentativa do bolsonarismo de se apropriar destes movimentos, ou se utilizarem de uma reivindicação corporativa para se apropriar de espaços na estrutura do Estado e promover quarteladas para viabilizar a implementação do programa ultraliberal de Guedes/Bolsonaro. Além disso, se coloca na ordem do dia a bandeira de desmilitarização das polícias, ainda mais diante de toda a discussão sobre anistia, que é uma contradição da defesa de hierarquia militar. Junto à desmilitarização das polícias, devemos propagandear a necessidade de controle popular sobre as forças de segurança que, embora abstrata ainda, coloca a questão num patamar revolucionário.

Avalio que estes três eixos armam a ação revolucionária diante dos fatos que estão acontecendo no país. Se, de fato, o movimento da PM cearense for apenas de reivindicação salarial, sem viés político, as coisas tendem a permanecer como estão. Contudo, se estiverem sendo impulsionadas pelo bolsonarismo, ou que estejam tentando empalmar com esse movimento, podemos estar diante de uma mudança radical na situação do país. É para isso que os revolucionários devem estar preparados.

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