Por Fernando de Oliveira Lúcio1
Num bar nova-iorquino amplamente frequentado por gays, lésbicas, bissexuais e pessoas trans, a polícia aparece para fazer uma de suas revistas habituais. A homossexualidade era crime então na maioria dos países, incluindo os EUA, e ser descoberto LGBT era sinônimo de ostracismo permanente. Via de regra, as rondas policiais intimidavam o público do bar Stonewall e os frequentadores iam embora após a revista. No dia 28 de junho, eles não foram. Juntaram-se do lado de fora e contra-atacaram, acuando a polícia. A rebelião deu início ao movimento LGBT como o conhecemos hoje. Havia coletivos em defesa da legalização da homossexualidade antes, é verdade, mas a Gay Liberation Front, fundada após a revolta do dia 28 levou a luta a um outro nível. Paradas em defesa da diversidade explodiram pelo mundo e agora os ativistas faziam questão de expressar seu afeto proibido em público durante as manifestações. Um dos panfletos distribuídos pela GLF dizia “Você acha que homossexuais são nojentos? Pois pode apostar essa bundinha linda que somos mesmo”. Ninguém estava mais disposto a ser discreto e baixar a cabeça.
A luta pela diversidade sexual e de gênero emergiu no ano seguinte ao levante estudantil-operário de maio de 68 na França e durante uma enorme explosão da luta antirracista com o Partido dos Panteras Negras, nos EUA.
A burguesia foi tomada de surpresa com a ruptura da tranquilidade social que parecia reinar até então. O capitalismo vinha florecendo lindamente nos anos 50 e 60. O estabelecimento do Estado de bem-estar social parecia ter apaziguado a luta operária. As economias cresciam, a renda se redistribuía, a classe média se expandia e vivia com certo conforto. Pois eis que explode uma série de levantes, dizendo à burguesia e aos seus governos que essa paz era falsa. Em sociedades marcadas pelo conservadorismo, sem respeito à diversidade, amplas franjas da população continuavam a viver à margem. Subcidadãos excluídos, condenados a uma vida nos esgotos apenas por serem como eram. Foram esses subcidadãos escondidos, humilhados e superexplorados que deram o pontapé inicial na luta pela diversidade.
Passados estes 52 anos, o mundo parece ter sido virado no avesso. Homossexuais podem se casar em diversas nações ocidentais, a discriminação sexual e de gênero é crime, a cultura pop celebra a diversidade como sua mais nova ferramenta comercial. E, em meio a tantas conquistas, a comunidade LGBT parece cada vez mais fragmentada e confusa.
Lutas internas sempre nos dividiram. A feroz briga entre o movimento trans e as lésbicas feministas radicais se estende desde os anos 70 até hoje. As últimas recusam-se a reconhecer mulheres trans como aliadas, acusam-nas de serem homens que se apropriam e ridicularizam a identidade feminina, como “atores usando blackface”. Chamam-nas de “homens privilegiados”, ignorando a imensa fragilidade sócio-econômica em que se encontram as pessoas gênero-diversas. A verdade é que, sem ter seu gênero reconhecido, essas pessoas são efetivamente tolhidas do convívio social real e notoriamente excluídas do mercado de trabalho. Mais de 90% desse grupo se veem obrigados a prostituir-se para sobreviver.
Há também a complexa situação dos bissexuais: privilegiados por poderem ter relações hétero ou vítimas de apagamento numa sociedade que só entende binarismos? E, claro, há sempre as exaustivas discussões sobre o que se convencionou chamar “privilégio gay”, a ideia simplista de que nós gays seríamos mais bem aceitos pela sociedade por sermos homens, ao contrário das lésbicas, e por nos encaixarmos no binarismo excludente, amando apenas um gênero, ao contrário dos bissexuais. Esta análise míope curiosamente ignora o fato de que, todos os anos, sem exceção, homens gays são a letra da sigla mais vitimada por espancamentos e assassinatos movidos a ódio. Digam o que quiserem, sobre nosso “privilégio de gênero”, homens gays são homens que “traíram” a masculinidade, o que é considerado um crime tão grave quanto ter nascido no “gênero inferior”.
Em meio à miríade de lutas internas e disputas para eleger o mais oprimido, o que tenho a dizer é: não se enganem, o verdadeiro privilégio que perpassa o nosso mundo é o privilégio de classe. Seja a sua identidade gay, lésbica, bissexual ou trans, o fato é que, num mundo capitalista, respeito e cidadania se compram. Reivindico aqui o icônico discurso de Sylvia Rivera. Prostituta, moradora de rua, pessoa trans, socialista, Rivera enfrentou resistência da direção do movimento, que tentou impedi-la de discursar durante a Parada do Orgulho de Nova York em 73, por acreditar que pessoas como ela manchavam a imagem pública da comunidade. Indignada com a hipocrisia de um movimento que almejava lutar pela diversidade mas não sabia lidar com a própria pluralidade interna, ela agarrou o microfone e denunciou furiosa os “HOMENS E MULHERES de classe média” que se apoderavam cada vez mais da causa e promoviam o apagamento de seus integrantes menos “socialmente aceitáveis”. São esses, os socialmente excluídos, sem nada a perder, os primeiros a se levantar contra o sistema. E, no entanto, são eles também os primeiros a ser esquecidos pela luta. É esse o privilégio que realmente divide a comunidade e merece nossa atenção.
Viva Stonewall! Viva a diversidade! Viva a luta dos excluídos e humilhados!