Michel Goulart da Silva1
No mês de outubro, celebra-se o centenário de publicação do primeiro manifesto surrealista. Em uma das passagens desse documento, o poeta francês André Breton exalta a palavra “liberdade”, afirmando que ela
“[…] atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível”.
BRETON, André. Manifestos do surrealismo. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 35.
O poeta francês faz, nessa passagem, a defesa da liberdade e da imaginação na criação artística. Essas ideias estavam entre os elementos que aproximaram Breton e outros poetas surrealistas, como Benjamin Péret, da corrente trotskista, especialmente por conta da crítica ao stalinismo e ao autoritarismo estético imposto pelo realismo socialista. Em 1938, Breton e Trotsky escreveram o manifesto de fundação da Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente (FIARI), intitulado Por uma arte revolucionária independente. Esse trabalho conjunto se deu em uma conjuntura marcada pela proximidade de uma guerra mundial, pela ação política do governo nazista e pela política do aparato stalinista que dominava as principais organizações de esquerda do mundo, influenciando também artistas e intelectuais na defesa da burocracia que governava a União Soviética.
Embora algumas partes do manifesto da FIARI tenham sido superadas pela dinâmica histórica, como a não iminência de uma guerra mundial ou suas críticas mais conjunturais ao fascismo e ao stalinismo, que não possuem nos dias de hoje uma força política e ideológica igual à que tinham na década de 1930, muitos dos elementos discutidos no documento mostram-se ainda atuais.
O encontro entre o poeta francês e o revolucionário russo exilado não se deu por acaso. Breton e Trotsky tinham mostrado uma profunda convergência política e teórica nos anos anteriores. Em 1935, Breton escrevia que “a atividade de interpretação do mundo deve continuar a estar ligada à atividade de transformação do mundo”, sendo função do poeta ou do artista “aprofundar o problema humano sob todas as suas formas”. Essa “conduta ilimitada de seu espírito” carrega “um valor potencial de mudança do mundo”, reforçando “a necessidade da mudança econômica deste mundo”.2
O entendimento da atividade do artista como ação de transformação da sociedade também foi defendido por Trotsky.
“o homem expressa na arte a sua exigência da harmonia e da plenitude de existência – quer dizer, do bem supremo do qual é justamente a sociedade de classe que o priva. Por isso, a criação artística é sempre um ato de protesto contra a realidade, consciente ou inconsciente, ativo ou passivo, otimista ou pessimista”.
TROTSKY, Leon. A arte e a revolução. In: FACIOLI, Vicente (org.). Breton & Trotsky. São Paulo: Paz e Terra/Cemap, 1985, p. 91.
Outro ponto de convergência entre Trotsky e Breton parece ser a crítica ao stalinismo, incluindo seu modelo imposto para a arte. Trotsky dizia que “a arte da época stalinista permanecerá como a expressão mais crua da profunda decadência da revolução proletária”, onde “os artistas dotados de caráter e talento são, em geral, marginalizados”.3 O poeta francês, por sua vez, afirmava:
“Nós nos levantamos, em arte, contra toda concepção regressiva que tenda a opor o conteúdo à forma, para sacrificar esta àquela. A passagem dos poetas autênticos de hoje para a poesia de propaganda inteiramente exterior, como é definida, significa para eles a negação das determinações históricas da própria poesia”.
BRETON, 1985, p. 184.
No período de redação do manifesto com Breton, Trotsky, exilado no México, era um dos articuladores de uma nova internacional, com o objetivo de organizar os militantes revolucionários que rompiam com os partidos comunistas em todo o mundo. Breton, por sua vez, bem como os escritores que permaneciam fiéis aos princípios do surrealismo, tinham sido desligados do Partido Comunista Francês.
O manifesto da FIARI fez o chamado à construção de uma organização internacional que reunisse artistas, intelectuais e cientistas, independentes do fascismo, do imperialismo e do stalinismo. Trotsky e Breton propunham uma plataforma internacionalista com independência de classe na arte e na política, ao mesmo tempo que alertavam para o perigo do nazismo e da burocracia stalinista para as artes. Trotsky e Breton entendiam que o nazismo e o stalinismo tinham como objetivo eliminar os artistas que ousavam expressar em alguma medida a defesa da liberdade, transformando-os em seguidores das diretrizes defendidas pelo Estado. Na Alemanha e na União Soviética procurava-se eliminar ou cooptar movimentos e artistas independentes, principalmente aqueles que estivessem associados às correntes de vanguardas.
Na União Soviética não havia espaço para que as correntes artísticas independentes pudessem se consolidar, uma vez que os artistas eram coagidos a aceitar as formulações estéticas que cumprissem o papel das ideologias de Estado. Como afirma o manifesto da FIARI,
“[…] o fascismo hitlerista, depois de ter eliminado da Alemanha todos os artistas que expressaram em alguma medida o amor pela liberdade, fosse ela apenas formal, obrigou aqueles que ainda podiam consentir em manejar uma pena ou um pincel a se tornarem os lacaios do regime e a celebrá-lo de encomenda, nos limites exteriores do pior convencionalismo. Exceto quanto à propaganda, a mesma coisa aconteceu na URSS durante o período de furiosa reação que agora atingiu seu apogeu”.
BRETON, André; TROTSKY, Leon. Por uma arte revolucionária independente. In: FACIOLI, Vicente (Org.). Breton & Trotsky. São Paulo: Paz e Terra/Cemap, 1985, p. 37.
Muitos elementos do manifesto da FIARI permanecem bastante atuais. Apesar das mudanças na conjuntura social e política, a forma capitalista de produção da vida ainda persiste e é dominante em todo o mundo. O manifesto da FIARI não se limitava a prever que a guerra se aproximava; também apontava que a burguesia ameaçava o mundo com suas armas e modernas técnicas de morte, que ainda permanecem sendo utilizadas nos campos de batalha. Portanto, mesmo que o manifesto tenha sido escrito em uma conjuntura diferente, contemporaneamente persiste uma sociedade dominada pelo capital e, ainda que mudem os governos ou mesmo os regimes políticos, persiste a dominação de classe que a cada conjuntura pode assumir as mais variadas faces.
Por outro lado, embora seus aparatos estatais tenham ruído, o stalinismo não perdeu sua atualidade, pois persiste ainda uma de suas políticas mais poderosas, que são os governos de colaboração de classes. Esses governos, baseados na unidade política de partidos operários com setores da burguesia, no que diz respeito à arte, têm assumido a postura de eleger uma cultura “popular” para transformá-la em mercadoria. Sob o discurso de preservar a “tradição” – mesmo que esta seja machista, sexista, racista –, esses governos traçam uma política que privilegia manifestações culturais que supostamente expressam o “povo” e as formas locais de “cultura”. Contudo, essa cultura escolhida como tradicional expressa muito mais uma dominação política e econômica de classe do que manifestações culturais do conjunto desses grupos sociais. Como consequência, valoriza-se uma cultura escolhida como “popular”, criando-se artificialmente identidades comuns ao “povo” e ideologias de justificação da dominação, e transformando patrimônios culturais em chamariz turístico, portanto, em mercadoria.
Outro elemento relacionado à FIARI que permanece atual é a defesa da liberdade da arte, opondo-se a qualquer coerção externa. No manifesto, afirma-se que “a arte não pode consentir sem degradação em curvar-se a qualquer diretiva estrangeira e a vir docilmente preencher as funções que alguns julgam poder atribuir-lhe, para fins pragmáticos, extremamente estreitos”4. Reivindica-se para o artista a livre escolha de temas, sem restringir o campo de exploração de sua criatividade: “em matéria de criação artística, importa essencialmente que a imaginação escape a qualquer coação, não se deixe sob nenhum pretexto impor qualquer figurino”5. Além disso, diante das pressões para que o artista consinta que a arte seja “submetida a uma disciplina que consideramos radicalmente incompatível com seus meios”, no manifesto opõe-se “uma recusa inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à fórmula: toda licença em arte”6.
Esse é o único caminho para se chegar a uma arte que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade. Para os fundadores da FIARI, essa arte precisa ser revolucionária, “tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade”, mesmo que seu objetivo seja apenas “libertar a criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os gênios isolados atingiram no passado”.7
O capitalismo não permite essa liberdade para a arte. Sua lógica interna, de intensa valorização de mercadorias e reprodução da mais-valia, permite às dissidências apenas que se adaptem e se tornem produto vendável:
“[…] na época atual, caracterizada pela agonia do capitalismo, tanto democrático quanto fascista, o artista, sem ter sequer necessidade de dar a sua dissidência social uma forma manifesta, vê-se ameaçado da privação do direito de viver e de continuar sua obra pelo bloqueio de todos os seus meios de difusão”.
BRETON & TROTSKY, 1985, p. 44.
O capitalismo em decadência é incapaz de oferecer condições mínimas para o desenvolvimento de correntes artísticas. Como consequência, na sociedade capitalista, o que a arte conserva de individualidade, “naquilo que aciona qualidades subjetivas para extrair um certo fato que leva a um enriquecimento objetivo”, tudo isso “aparece como o fruto de um acaso precioso, quer dizer, como uma manifestação mais ou menos espontânea da necessidade”.8 Em resposta a essa situação da arte na sociedade capitalista, Breton e Trotsky afirmam:
“[…] a arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade, mesmo que fosse apenas para libertar a criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os gênios isolados atingiram no passado”.
BRETON & TROTSKY, 1985, p, 37-8.
Essa arte define-se em sua relação com a revolução. A “oposição artística”, segundo o manifesto, é “uma das forças que podem com eficácia contribuir para o descrédito e ruína dos regimes que destroem, ao mesmo tempo, o direito da classe explorada de aspirar a um mundo melhor e todo sentimento da grandeza e mesmo da dignidade humana”.9 Nesse sentido, para Trotsky e Breton, a “tarefa suprema da arte”, na sociedade capitalista, seria a participação consciente e ativa na “preparação da revolução”, mas alertam:
“[…] o artista só pode servir à luta emancipadora quando está compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior”.
BRETON & TROTSKY, 1985, p. 43.
Essas formulações expressam algumas das teses de Trotsky acerca da literatura, apresentadas em 1924, em Literatura e revolução. Trotsky afirmava que a arte não pode permanecer
“[…] indiferente às convulsões da época atual. Os homens preparam os acontecimentos, realizam-nos, sofrem seus efeitos e se modificam sob o impacto de suas reações. A arte, direta ou indiretamente, reflete a vida dos homens que fazem ou vivem os acontecimentos”.
TROTSKI, Leon. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 35.
Contudo, para Trotsky, essa compreensão não significa a defesa de uma arte aos moldes do realismo socialista ou mesmo de uma cultura proletária, defendidos pelo stalinismo. Era “falso opor a cultura e a arte burguesas à cultura e à arte proletárias”, na medida em que o regime proletário é transitório. Para o revolucionário russo, “a significação histórica e a grandeza moral da revolução proletária residem no fato de que ela planta os alicerces de uma cultura que não será de classe, mas pela primeira vez verdadeiramente humana”.10 Essas afirmações desdobram-se no entendimento de que
“[…] a arte da revolução, que reflete abertamente todas as contradições de um período de transição, não deve se confundir com a arte socialista, para a qual as bases ainda não existem. Não se pode esquecer, entretanto, que a arte socialista surgirá do que se fizer nesse período”.
TROTSKI, 2007, p. 180.
Essa compreensão do desenvolvimento da arte no socialismo também é expressa por André Breton, especialmente no Segundo manifesto do surrealismo, publicado em 1930. Breton afirma não acreditar “na possibilidade de existência atual de uma literatura ou de uma arte exprimindo as aspirações da classe operária”. Para Breton, “em período pré-revolucionário o escritor ou o artista, de formação necessariamente burguesa, é por definição incapaz de traduzi-la”.11 O poeta surrealista, no mesmo sentido de Trotsky, afirma que seria falsa
“[…] toda iniciativa de defesa e ilustração de uma literatura e arte ditas ‘proletárias’ numa época em que ninguém pode reivindicar a cultura proletária, pela excelente razão de não se ter ainda podido realizar esta cultura, mesmo em regime proletário”.
BRETON, 1985, p. 130-1.
Retornando ao manifesto da FIARI, pode-se apontar como outro aspecto de relevante atualidade a questão da organização dos artistas. Os autores do manifesto partiam da compreensão de que “milhares e milhares de pensadores e de artistas isolados, cuja voz é coberta pelo tumulto odioso dos falsificadores arregimentados, estão atualmente dispersos no mundo”.12 Naquele contexto, o fascismo, por um lado, difamava como “degeneração” toda tendência progressista que reivindicasse a independência da arte, e, por outro, o stalinismo declarava como fascistas essas mesmas tendências. Diante dessa situação, os autores do manifesto afirmam ter como objetivo
“[…] encontrar um terreno para reunir todos os defensores revolucionários da arte, para servir à revolução pelos métodos da arte e defender a própria liberdade da arte contra os usurpadores da revolução. Estamos profundamente convencidos de que o encontro nesse terreno é possível para os representantes de tendências estéticas, filosóficas e políticas razoavelmente divergentes”.
BRETON & TROTSKY, 1985, p. 45.
O manifesto faz um chamado à arte revolucionária independente para se unir contra as perseguições, em defesa de seu direito de existir, sendo tal união a proposta central de organização da FIARI. Realista ou abstrata, surrealista ou concreta, subjetiva ou descritiva, para Trotsky e Breton não havia qualquer limite estético para a arte que se colocasse ao lado da revolução. Não caberia à revolução selecionar e censurar as escolhas estéticas feitas pelos artistas, numa postura autoritária e burocrática, como a do stalinismo e sua imposição da estética do realismo socialismo. Como se afirma no manifesto da FIARI, “a revolução comunista não teme a arte”.13
Referências
- Michel é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).
- BRETON, 1985, p. 184.
- TROTSKY, 1985, p. 95.
- BRETON & TROTSKY, 1985, p. 40.
- BRETON & TROTSKY, 1985, p. 41.
- BRETON & TROTSKY, 1985, p. 42.
- BRETON & TROTSKY, 1985, p. 37-8.
- BRETON & TROTSKY, 1985, p. 36
- BRETON & TROTSKY, 1985, p. 39.
- TROTSKI, 2007, p. 37.
- BRETON, 1985, p. 130.
- BRETON & TROTSKY, 1985, p. 45.
- BRETON & TROTSKY, 1985, p. 39.