2001-2003, núcleo neurótico da memória

por Silvia Adoue1

Esta não é uma lembrança desses anos. É uma reflexão sobre a lembrança desses anos.

Parece hoje que, para a Argentina, encerra-se o ciclo iniciado em 20032 sem que se possa encerrar o ciclo de 20013. Há um núcleo irredutível de dezembro de 2001 que revisitamos para adivinhar seu signo oculto. E buscamos a chave que nos permita conjurar o fantasma desses dias, que nos visita em sonhos ou mesmo despertos. Como é que, de 2001, passamos a 2003? É a pergunta que nos envenena o sangue. É uma urgência para a geração que começou sua militância na última década do século XX, e viu nas jornadas de dezembro de 2001 a concretização de um momento tão desejado quanto inesperado. E também o é para as gerações paridas dessas jornadas.

Apesar de 2001 haver sido um momento sublime da nação, no qual se revelaram as forças sociais recalcadas durante as quase três décadas anteriores, podemos pensar nessa data como uma ferida na memória, que corta irremediavelmente a linha do tempo sem que encontremos sua continuidade causal. Foi um momento fora do tempo da história de alienação, um momento de liberdade sentida como absoluta. E, iniciados no vício da adrenalina e serotonina desses dias, precisamos uma e outra vez uma dose do sonho, de alegria absoluta ainda quando vivida como simulacro, como fé compartilhada na rua, o que a torna verossímil. Muitos viveram 2003 como um substituto desse entusiasmo, ainda que seus efeitos, como fogos de artifício, tenham sido efêmeros. Os viciados precisam de uma dose de emoção. Não uma mística para avançar, mas uma ficção que lhes permita conviver com a paralisia. Como quando sonhamos que despertamos, lavamos os dentes, nos vestimos… mas continuamos dormindo.

As duas gerações precisavam dessas “drogas” para não cair em prostração e para justificar sua existência. Assim como acontece às gerações de militantes das décadas de 60 e 70 com as memórias das lutas de então, sem conseguirem chegar ao núcleo irredutível, mas conservando a memória emocional daqueles dias. Há uma espécie de mandato, de missão que eletriza cada geração: é preciso legar aos que vêm um relato minucioso do vivido. Talvez as novas gerações consigam abrir nesse relato fendas de sentido ainda invioladas. Cada detalhe pode ser portador do signo. É inevitável, porém, que, ao pôr em palavras a memória do vivido, imiscuam-se reflexões inacabadas, tentativas de explicação e recuperação torpe da cadeia causal. Mas, também, o exercício intruso de uma pretensão: a de controlar os sentidos que as novas gerações deem ao que nós vivemos. Uma espécie de autossabotagem da intenção de buscar auxílio externo para iluminar nossos pontos cegos.

A reação inebriada frente ao triunfo eleitoral de Gabriel Boric no Chile parece confirmar a sede de entusiasmo que nos nubla a razão, quando já vivemos 2001-20034, quando já se experimentou a decepção com Rafael Correa no Equador, com Andrés López Obrador no México… e, de todos eles, talvez a pior decepção: a volta de Daniel Ortega à presidência da Nicarágua. Em cada lugar do continente apostam-se as fichas em um “2003”5 que resgate nossos destinos do avanço da direita mais descaradamente retrógrada, quando a “recuperação dos valores republicanos” pelos Kirchner já era um substituto que não podia ser aceito sem uma espécie de resignação, uma amnésia mais ou menos voluntária dos desejos de 2001.

Mas a explosão social de Chubut6 traz todas essas contradições ante nossos olhos. Dá-lhes nitidez e retira da catarata o véu opaco construído à custa de voluntarismo rotineiro, para poder continuar. Está tudo aí, à vista. As novas gerações se dispõem a “curar” nossa neurose. Fazem-no com seus corpos, sem teorizar muita coisa. ”Não é não”7 tem algo de “Que saiam todos”8, do irredutível desses momentos singulares na história. De alguma forma, é um embaralhar e dar as cartas de novo. Sem a mesa viciada pelas cartas lançadas nos últimos vinte anos, sem a “grieta”9 como espetáculo enganador. Todos param para ver. Quem pode, a 20 anos de 2001, sem ficar envergonhado, dizer às populações que compartilham os territórios ameaçados pela mineração que “essa não é a forma”? Todo mundo entendeu que, ainda que agora não se possa fazer nenhuma jogada, não convém ficar de fora neste momento da verdade. O momento da verdade não emerge do nada. Vem se construindo nas lutas parciais dos últimos anos, nas greves, nas recuperações de territórios e nos trawn10 dos povos mapuche- tehuelches, nas assembleias de defesa dos territórios, e que envolvem os povos que convivem neles. Nessas luchas fragmentadas promoveram a mudança da maneira de ver as coisas. Além das acomodações às políticas públicas, da resignação frente à flexibilização das relações de trabalho que se apresenta tão “natural” como a chuva e o vento. E, quando parecia que o poço não tinha fundo, as pessoas saíram às ruas.

Irrompendo através de camadas e mais camadas de resignação sedimentada, como antes em Mendoza11, saiu o povo de Chubut, que não se conforma… e não sabe se é suficientemente forte para ganhar, mas não lhe importa. Como não importou às pessoas em 2001. Porque “o caminho se faz ao caminhar”. E só sabemos a força que temos quando a pomos em ação. E os responsáveis de cima, acostumados à resignação dos de baixo, até agora confiantes nos quadros dos movimentos organizados, hoje tornados mediadores de conflitos, ficam caladinhos. Não é o momento de falar. Não é coisa para a qual se tenha que ir em um helicóptero12. “Não há tanto perigo por ora, Chubut fica longe de Buenos Aires”, pensam, não muito convencidos.

Desta vez é, novamente, de verdade, ainda que localizado. Mas quebramos nossa cabeça para não deixar que nossa sede de liberdade e de verdade se dilua em novas retóricas. E para que não façamos da memória das lutas passadas um substituto das que se nos apresentam. O retorno neurótico e espetacularizado do passado, de seus momentos de verdade abortados na fadiga da luta. Uma força que não alcançou o que queríamos, e nos resignarmos a aceitar o que nos deram ou permitiram é nossa história desde a invasão há mais de 500 anos. O que faltou para perfurar o teto do possível? É a pergunta que se restaura depois de cada decepção. A neurose é, afinal, a insistência em repetir enredos com desenlace de fracasso. E os repetimos com a esperança de que, desta vez, o resultado será diferente.

Como diz Calle 1313: Si quieres cambio verdadero/Pues, camina distinto.

Tradução: Marlene Petros

Referências

  1. Silvia é professora da Unesp e editora do Contrapoder
  2. Em 2003 começou o ciclo dos governos kirchneristas na Argentina.
  3. Em 19 de dezembro de 2001, depois do “corralito bancário” (confisco dos depósitos bancários) e da declaração do estado de sítio pelo governo Fernando de la Rúa, houve uma rebelião popular que derrubou vários governos numa semana.
  4. 2001-2003: da rebelião do “que se vayan todos” à “restauração das instituições republicanas” dos governos Kirchner.
  5. Neodesenvolvimentismo com políticas sociais patrocinadas pela exportação de commodities.
  6. Ver: https://agenciatierraviva.com.ar/historico-triunfo-de-la-movilizacion-social-en-chubut-el-gobernador-arcioni-deroga-la-ley-de-zonificacion-minera/
  7. “Não é não” é a palavra de ordem dos povos da província argentina de Chubut contra a lei de zonificação mineira.
  8. “Que saiam todos” é a palavra de ordem da insurreição de 2001 na Argentina.
  9. A “grieta” (literalmente: “racha”, nesse caso: “racha social”) é o “fla x flu” entre o kirchnerismo e o macrismo, equivalente ao nosso Lula x Bolsonaro.
  10. Encontros deliberativos entre comunidades, em mapuzungun, língua dos Mapuche.
  11. Província na qual já houve um grande movimento contra a privatização da água.
  12. O presidente Fernando de la Rúa teve de sair da casa de governo rodeada por manifestantes em helicóptero, durante a rebelião de 2001.
  13. Trio porto-riquenho de música. Escutar La vuelta al mundo: https://www.youtube.com/watch?v=v_zZmsFZDaM

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

Um comentário sobre “2001-2003, núcleo neurótico da memória

  • 6 de janeiro de 2022 at 5:04 pm
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    Quantas questões dentro de uma só! O título calçou justo, e a analogia com o vício é muito interessante.

    “Se há um vício, ele não está na “alma” do
    indivíduo e sim na “alma” do meio”

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