2020 apud 2016

2020 começou com Bolsonaro avançando em seu projeto político de fechamento do regime de democracia restrita por meio de um golpe fascista, radicalizando o processo de transição autoritária iniciado com o golpe de 2016. Apesar do “pibinho” de 2019 e da popularidade relativamente baixa, mas estável e com viés de alta, Bolsonaro conseguiu unificar o governo em torno de sua direção politica, submetendo os pólos políticos alternativos à sua liderança por meio da acomodação com o “partido financeiro” em torno da entrega total da política econômica à condução de Guedes, do suborno do “partido militar” com cargos, verbas, privilégios corporativos e apoio aos seus projetos estratégicos e, finalmente, por meio da chantagem sobre o “partido do judiciário”, revelando o acordo que levou Moro ao ministério da Justiça e tornando-o refém da blindagem presidencial diante das revelações da “Vaza Jato”. Paralelamente, enquanto continuou o processo de fascistização do aparelho de Estado com ampliação da presença de “bolsonaristas” convictos ou aderentes em setores importantes da burocracia não-eleita e das forças repressivas, Bolsonaro acirrou o confronto com prováveis “concorrentes” na disputa presidencial de 2022 (Dória, Witzel), tentou criar seu próprio partido e conseguiu manter suas hordas fascistas mobilizadas e ativas nas redes sociais e nas ruas. Apesar da ameaça cesarista representada pela ofensiva fascistizante de Bolsonaro os setores hegemônicos do bloco no poder (grande capital) e as forças políticas de centro-direita mantiveram uma postura de “morde e assopra” diante do presidente, afinal seu impeachment colocaria o próprio golpe de 2016 e sua pauta neoliberal extremada em xeque, com o apoio tácito das forças de centro-esquerda, completamente rendidas à nova “chantagem do mal menor” (ruim com o centro-direita, pior com Bolsonaro!). A ofensiva de Bolsonaro é o resultado necessário da própria instabilidade politica inaugurada pelo golpe de 2016 e pela transição autoritária em curso desde então, mas ao invés de estabilizar o regime político e permitir a reconfiguração da hegemonia burguesa em novas bases, o instabiliza ainda mais. Daí que para o grande capital a ameaça cesarista representada pela ofensiva fascista de Bolsonaro se configura como um risco politicamente desnecessário dada a atual correlação de forças entre capital e trabalho e diante dos próprios mecanismos de controle do conflito social disponibilizados pela democracia restrita vigorante desde 2016.   

A chegada da pandemia do covid-19 ao país criou as possibilidades de alteração deste cenário político, permitindo aos setores econômicos e políticos que protagonizaram o golpe de 2016 tentar “recolocar as coisas nos trilhos”, afastando (até quando?) a ameaça do fascismo bolsonarista e consolidando o regime da democracia restrita. Isto significa que para os setores hegemônicos do bloco no poder e seus representantes políticos do centro-direita interessa consolidar a criminalização politica e judicial das lutas e movimentos sociais, reduzir legal e politicamente o espaço político e institucional dos partidos de esquerda e sindicatos, respaldar a violência policial como mecanismo de controle do conflito social, demonizar cultural e ideologicamente os valores do comunismo, do socialismo, e mesmo da social-democracia, e esmagar econômica e juridicamente os aparelhos privados de hegemonia ligados a esta perspectiva, além de aprofundar a pauta neoliberal extremada de destruição dos direitos sociais e trabalhistas, privatização dos recursos públicos e naturais e eliminação dos controles políticos à movimentação do capital. Porém, não interessa a eliminação do espaço político e institucional dos partidos de esquerda e dos sindicatos, não só porque ela é desnecessária no atual período de crise estratégica, organizativa e mobilizatória da esquerda brasileira, mas porque é preciso preservar mecanismos de passivização do descontentamento popular e de canalização das lutas sociais para dentro da lógica autocrático-burguesa da institucionalidade. Também não interessam a subordinação completa do parlamento e do judiciário ao poder executivo, ou mesmo seu fechamento, e menos ainda a abolição do pluralismo partidário, da rotina eleitoral e da autonomia (relativa) entre os poderes, pois é preciso preservar os mecanismos de legitimação politica oriundos da democracia burguesa, mesmo que restrita, e de representação politica e burocrática dos variados e divergentes interesses das classes e frações que compõem o bloco no poder e de seus aliados entre as classes subalternas. Ou seja, é preciso preservar o sistema de representação política, o processo eleitoral e a “neutralidade seletiva” do rito judiciário ainda que redimensionados pela democracia restrita. A predominância da pauta cultural e de costumes baseada no fundamentalismo religioso, no culto à violência, no racismo, no machismo, na homofobia, etc., também é problemática, pois além de negar abertamente a pretensa universalidade dos direitos civis, mais divide a sociedade do que unifica e é péssima para determinados negócios. Em suma, se já não serve mais aos interesses estratégicos do grande capital a democracia de cooptação oriunda da transição democrática que criou a Nova República, permitiu a “integração passiva à ordem” das principais organizações do mundo do trabalho, anulando sua perspectiva anti-autocrática, e possibilitou a política de conciliação de classes dos governos petistas; tampouco um regime fascista liderado por Bolsonaro permite atender esses mesmos interesses sem colocar em xeque a própria perspectiva de atualização da hegemonia burguesa nos marcos inaugurados com o golpe de 2016. Daí que foi fundamental para os setores econômicos e políticos que protagonizaram o golpe de 2016 aproveitar a ocasião aberta com a chegada da pandemia para “colocar o guizo” em Bolsonaro.

Combinada a uma crise econômica e social profunda que se arrasta desde 2015 e à postura negacionista e descompromissada de Bolsonaro e do próprio governo, a chegada da pandemia, com o crescimento vertiginoso dos casos de contaminação e de mortes pelo país inteiro, teve o dom de desencantar setores sociais que votaram nele em 2018, e ainda o apoiavam, e de acirrar os ânimos dos setores antibolsonaristas. Os panelaços pelo “Fora Bolsonaro” tornaram-se cotidianos e foram ouvidos em todo o país, enquanto prefeitos e governadores passaram a agir por conta própria no enfrentamento da pandemia, desautorizando abertamente a conduta presidencial. A alta do dólar e as trapalhadas diplomáticas com a China também geraram descontentamento entre empresários bolsonaristas, fragilizando ainda mais a posição de Bolsonaro. As fissuras nas bases de apoio ao governo se ampliaram com a saída de Moro e a passagem da maior parte do “lavajatismo” para a oposição. Bolsonaro então “apostou no caos”, intensificando o negacionismo e a inação criminosa diante da pandemia ao mesmo tempo em que mobilizava suas hordas pelo golpe fascista.

Diante deste cenário o centro-direita desencadeou uma ofensiva contra Bolsonaro obrigando-o a abandonar a “guerra de movimento” pelo golpe fascista em favor de uma “guerra de posição” e da pacificação, até que chegue o “momento certo”! Processos e investigações já em curso contra o presidente, o clã Bolsonaro, ministros do governo e as hordas bolsonaristas foram acelerados dando origem às prisões e indiciamentos enquanto outros foram abertos, colocando o presidente e o bolsonarismo “contra a parede”. No Congresso, e em aliança com setores do STF, o centro-direita assumiu o combate ao negacionismo governista suspendendo ou alterando medidas do governo, aprovando outras à sua revelia e isolando-o ainda mais, enquanto na grande mídia oposicionista o levantamento diário do número de contaminados e mortos tornou a pandemia assunto cotidiano obrigatório, tornando a postura criminosa do governo ainda mais evidente.

A manobra foi bem sucedida, pois além de desmantelar parte dos esquemas de comunicação bolsonaristas e a mobilização fascista nas ruas, não sem o apoio das manifestações antifascistas, forçou Bolsonaro e seu governo a abandonar temporariamente a perspectiva golpista e buscar recompor suas bases políticas por dentro do sistema de representação politica. Também esvaziou o protagonismo de Bolsonaro dentro do governo em favor da direção política dos militares, que passaram a assumir a interlocução politica com o Congresso, o STF, o “Centrão” e a “apagar os incêndios” causados pelo presidente e pela “ala ideológica” do ministério. A pá de cal na “guerra de movimento” bolsonarista foi a tentativa frustrada de golpe em maio, desaconselhada até mesmo pelo general Heleno, um dos ministros mais comprometidos com as manifestações golpistas, sob a alegação que aquele “não era o momento certo”. As negociações com os partidos do “Centrão” em torno de cargos no governo e verbas em troca de apoio no Congresso, já iniciadas, se intensificaram e a verborragia presidencial contra as instituições e a “velha politica” diminuiu, enquanto militantes bolsonaristas indiciados ou presos eram abandonados à própria sorte. O aumento da popularidade trazida pelo auxílio emergencial fez Bolsonaro controlar um pouco mais sua verborragia, sonhar com o avanço institucional do bolsonarismo nas eleições de 2020 e com sua própria reeleição em 2022.

Em contrapartida os pedidos de impeachment foram parar na mais funda das gavetas da presidência da Câmara, a “Lava Jato” foi esvaziada para o bem de todo o campo golpista, os processos contra Bolsonaro e o clã voltaram ao “banho-maria”, enquanto as classes burguesas “fizeram a festa” no primeiro ano da pandemia. Além de lidarem com a enorme recessão econômica deste ano sem abrir mão do neoliberalismo extremado como eixo da política econômica e nem do ajuste fiscal, pois o “orçamento de guerra” vale até o final deste mês, as classes burguesas saíram ganhando com a pandemia de um modo ou de outro. Em nome da ampliação do crédito para as empresas o capital financeiro foi contemplado pelo maior programa de transferência de recursos públicos para a especulação financeira de que se tem notícia, pois apenas 5% de todo o montante foi efetivamente emprestado. Em nome da preservação dos empregos o conjunto das classes burguesas se beneficiou diretamente de mais um ataque aos direitos trabalhistas com a autorização para a redução de salários, benefícios e jornadas de trabalho durante a pandemia. Ainda assim o desemprego aumentou, porém, os ganhos obtidos com a redução dos custos salariais foram tão grandes, que setores do capital reivindicam abertamente que tal autorização seja permanente. Enquanto isto, governos estaduais e municipais promoveram uma “quarentena de araque”, que garantiu o funcionamento dos principais segmentos econômicos porque “a economia não pode parar”. Não à toa neste ano de pandemia a concentração de renda aumentou e o patrimônio dos super ricos cresceu ainda mais.

Apesar de toda a tragédia econômica, social e sanitária, no plano político, a pandemia pôs a nu não só a impotência politica e mobilizatória das forças de esquerda, mas particularmente a rendição do centro-esquerda à nova chantagem do “mal menor” e à pacificação com Bolsonaro conduzida pelo centro-direita. Enquanto no Chile, na Bolívia, na Guatemala, no Equador e nos EUA as massas trabalhadoras saíam às ruas em plena pandemia para enfrentar o fascismo e o neoliberalismo, aqui os partidos de centro-esquerda e as principais centrais sindicais optaram abertamente pela moderação, recusando a perspectiva da mobilização de massas e preferindo se recolher em casa, à espera das eleições municipais e/ou da absolvição de Lula (caso de PT, CUT e PC do B).

Os resultados das eleições municipais de 2020 indicam que a estratégia de esvaziamento do golpismo bolsonarista e de consolidação da democracia restrita tem sido bem sucedida, pois indica que está em curso um processo de reconfiguração do sistema de representação política que tende a superar sua crise. Em primeiro lugar é preciso considerar que a derrota acachapante do conjunto dos partidos de esquerda mostra o “acerto”, em termos de controle do conflito social, das medidas políticas e eleitorais de restrição de seu espaço político. Isto porque tais medidas dificultaram ainda mais a constituição de uma frente de esquerda; limitaram enormemente a participação da esquerda socialista na disputa eleitoral, contribuindo para uma campanha em grande medida despolitizada e alheia às grandes questões nacionais, e favoreceram a redução da inserção institucional dos partidos de esquerda no plano municipal, mesmo diante do desempenho já ruim de 2016. Em segundo lugar, há o crescimento eleitoral e o avanço institucional dos partidos de extrema-direita que ampliaram sua presença nas prefeituras e câmaras de vereadores mesmo com a derrota relativa do bolsonarismo, o que indica sua maior autonomia diante do governo e da figura de Bolsonaro e sua incorporação ao sistema de representação politica não mais como uma força marginal, subordinada ao centro-direita e dependente de conjunturas bastante específicas para polarizar o debate político, mas como um dos seus principais protagonistas. Por fim temos a vitória dos partidos tradicionais de centro-direita, particularmente daqueles oriundos da velha matriz arenista, que apostam na sua inserção institucional tanto para se colocarem de maneira competitiva na disputa eleitoral de 2022, quanto para barganharem com o governo. O que as eleições de 2020 indicam é que a configuração do novo sistema de representação politica passa pela restrição do espaço político e eleitoral das forças de esquerda, com sua secundarização no plano da disputa geral, e pelo surgimento de uma nova polarização política. Não mais entre centro-direita e centro-esquerda, como durante a Nova República, em que pontificaram PSDB e PT, com o PMDB funcionando como força aliada incontornável de um lado ou de outro; mas entre centro-direita e extrema-direita, com o centro-esquerda funcionando como força auxiliar mobilizável pelo centro-direita caso o risco de vitória da extrema-direita signifique uma ameaça de fascistização do regime. A confirmar-se esta nova configuração a manutenção da institucionalidade política da democracia restrita mantém sua funcionalidade para o controle do conflito social e político e a legitimação da perspectiva burguesa. 

Apesar de tudo, é preciso considerar que o aprofundamento das crises gêmeas (econômica e sanitária) coloca em risco a tentativa de estabilização politica do regime político tal como descrevemos acima. Isto porque o segundo ano da pandemia se inicia com a segunda onda de contaminação em pleno vapor e num cenário exasperante de fim do auxilio emergencial, radicalização do ajuste fiscal, novas “reformas” neoliberais, aumento do desemprego e recusa por parte dos governos até mesmo da “quarentena de araque” vigorante meses atrás. Em nome do imperativo burguês de que “a economia não pode parar” e apoiada numa combinação criminosa entre o negacionismo e o “ilusionismo” fabricado pelos governos e pela mídia de que a pandemia está no fim com a chegada a vacina, quando na verdade a imunização de toda a população só deve terminar em meados de 2022, o desamparo das massas trabalhadoras pelo Estado e pelo mercado vai se aprofundar. Nestas condições a crise social tende a se agravar ainda mais, acirrando a luta de classes e colocando em xeque a estratégia de consolidação da democracia restrita conduzida pelos setores hegemônicos do bloco no poder e pelo centro-direita em favor de uma saída ainda mais autoritária e cesarista, de tipo militar ou propriamente fascista. Cabe aos trabalhadores organizados e a uma esquerda desperta do torpor da nova chantagem do “mal menor” se levantar contra essas duas variantes da solução burguesa para as crises gêmeas e construírem uma alternativa efetivamente democrática e socialista. Feliz Ano Novo de lutas!

David Maciel

Doutor em história, prof de história, membro da coordenação da escola de formação socialista, membro da editoria de marxismo21, e da coordenação nacional do GT história e marxismo da ANPUH.

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