2020 vai terminando com grandes perdas humanas por conta do genocídio conduzido caoticamente por alguns governos de extrema-direita e gerido tecnocraticamente por muitos governos neoliberais mundo afora sob a pandemia. Os trabalhadores se cuidaram na medida do possível durante as quarentenas, promoveram a solidariedade de classe e foram às ruas – negros, mulheres, entregadores de aplicativos, funcionários dos correios, torcidas organizadas, etc – contra Trump, Bolsonaro e cia.
Do lado de “cima” do mundo real dos “de baixo”, nas bolhas conservadoras e progressistas da política oficial, muita gente ainda vive conforme suas narrativas, algo cada vez mais difícil pois a realidade continua negando os discursos de reacionários, centristas, lulistas e outros. A última desmoralização da tese do “golpe” de 2016 configura-se no provável apoio da ex-querda ao candidato neoliberal (de Maia e Temer) contra o do Centrão na eleição da presidência da Câmara de Deputados. Algo extensamente discutido nas redes anti-sociais – pelo menos até Bolsonaro fazer alguma canalhice para chamar atenção na passagem do ano (e que depois deverá ser derrubada judicialmente)…
Nos EUA Trump vai dando adeus à vida pública seguindo a cartilha incel: chora, esperneia, toma medidas estapafúrdias, mas nada de golpe como imaginam a esquerda da ordem e o marxismo ortodoxo, que vêem fascismo e ultraliberalismo no reinventado populismo nacionalista de extrema-direita. O mesmo quadro se dá no Brasil, onde não há condições para o fechamento do regime – seja pela incapacidade congênita do bolsonarismo, seja pela força da sociedade civil em geral, desde a burguesia progressista até o campo popular. Diversos intelectuais e aficcionados da nociva política do pânico profetizaram o fechamento de sindicatos e movimentos sociais como MST e MTST: obviamente, nada disso ocorreu, pelo contrário, Boulos chegou até o segundo turno das eleições paulistanas.
O capital internacional vai fechando o cerco contra a extrema-direita que mal lhe serviu momentaneamente. Biden e europeus preparam a reação “civilizatória” do capitalismo verde contra negacionismos e terraplanismos que representariam o “atraso” (na velha chave analítica dualista). Em reunião de trabalho relativa ao aquecimento global, a ONU silenciou as vozes trolladoras dos poucos governos populistas-nacionalistas, exigindo como pré-requisito para participação o que eles mais temem: trabalho burocrático sofisticado. Tudo que remete à engenharia complexa de dominação social está fora do alcance de trumpistas e bolsonaristas, que só sabem fazer agitprop de efeito espetacular mas duração curta.
Entre nós, diante do cotidiano de assassinatos racistas e feminicídios, sob pressão negra e feminista, empresas e instituições correm para reconhecer os históricos racismo e machismo brasileiros. Ao mesmo tempo em que não os concebem como estruturais, surfam no discurso assumidamente preconceituoso do governo federal, mostrando-se assim ilustrados e progressistas. Suas idéias persistem em ficar fora do lugar – a distância entre teoria e prática permanece – apesar dos quixotescos esforços em contrário do bolsonarismo. A explicitação discursiva da exploração de classe, praticada pela extrema-direita, é mal-vista por nossa cultura política, o que evidencia o quanto Bolsonaro é inorgânico da burguesia brasileira, a qual o aproveita apenas conjunturalmente.
Não por acaso, Paes foi eleito prefeito do Rio de Janeiro com o apoio envergonhado da ex-querda, que esqueceu o seu “fascismo” das grandes remoções urbanas de pobres na época de ouro do lulismo. Transferiu-se a etiqueta ideológica para Crivella, ex-senador de Lula e ex-ministro de Dilma (logo depois merecidamente preso e solto) – o mesmo que anos atrás dizia que o Evangelho era comunista… Já em Recife a disputa no segundo turno consistiu em querela interna à oligarquia progressista dos Arraes, reproduzindo a máxima marxista de que a história (nordestina em versão estereotipada, no caso) repete-se como farsa.
Uma esquerda “fora do lugar” como essa – crente ingênua nas afiliações ideológicas proferidas instrumentalmente, ao sabor da variação da conjuntura, pelos políticos tradicionais de todos os matizes – nunca terá a mínima confiança de amplos setores da classe trabalhadora. É preciso, com urgência, retomar a tese da indeterminação da política de Chico de Oliveira, de maneira a nos posicionarmos sob o ponto de vista das camadas populares, para além dos clichês narrativos que nos mobilizam desde a crise terminal do lulismo.
A opção deste progressismo decadente continua sendo os velhos nacionalismo e desenvolvimentismo,1 (beco sem) saída que implica renovação da dominação de classe burguesa e postergação da emancipação dos trabalhadores. Em seu lugar, deve ser colocada para nós socialistas e revolucionários a tarefa do combate e superação da desigualdade estrutural inerente ao nosso capitalismo periférico, desafio evitado pelo populismo lulista. Ironicamente, algo bem denunciado por Piketty, quando ouvido pela bolha universitária progressista no Rio de Janeiro.2
O capitalismo não construiu um novo caminho para a superação de sua atual crise. Tampouco a atual esquerda mostra fôlego e inventividade para uma solução anti-capitalista. Mais uma vez na história brasileira e mundial, trabalhadores e juventude terão que erigir – por meio de lutas desde baixo – movimentos sociais originais, partidos classistas autênticos, bem como novas camadas intelectuais perfiladas à esquerda. Disposição das massas para a revolta popular certamente não falta. Que venha 2021!