A bolsonarização da ex-esquerda

O combate à extrema-direita no mundo e ao bolsonarismo no Brasil é parte da luta maior da classe trabalhadora contra a burguesia. Hoje tal combate é urgente mas necessariamente deve ser realizado nos marcos da luta de classes, não da democracia burguesa. Recuar nosso programa militante até desvirtuar o socialismo em prol do reformismo progressista (social-democrata ou populista de “esquerda”) não só inviabiliza as transformações revolucionárias de que precisamos, como também pode dar sobrevida à mesma extrema-direita. É certo que o lulismo e o liberalismo podem derrotar Bolsonaro, ainda que o primeiro tenha propiciado – e o segundo tenha apoiado – a ascensão do populismo de direita entre nós. Contudo tal tipo de saída seria apenas transitória, pois a enorme crise capitalista atual persistirá, demandando uma alternativa própria dos trabalhadores, que continuam insatisfeitos com o “sistema” que sempre denunciamos como burguês (e que os extremistas de direita simulam ser “comunista”, embora saibam não ser).

Bolsonaro e a extrema-direita no mundo seguem barulhentos mas progressivamente mais fracos. Seus apoiadores morrem mais de covid que o restante da população,1 sinal indelével da inviabilidade do populismo de direita como saída política para a ordem do Capital. 

E as contradições acumulam-se. Enquanto o Brasil vibrava com nossa melhor participação olímpica na história, Bolsonaro falava da bobajada do (já esquecido?) voto impresso apenas aos seus eleitores, cada vez menos numerosos. Aliás, as Olimpíadas e as Paralimpíadas demonstraram o avanço de valores progressistas pelo mundo: seja como propaganda liberal-burguesa, seja como prova de força das classes populares espalhadas pelo planeta, a camaradagem entre atletas e a ampliação da diversidade sexual nos esportes, contrariaram tanto o nacionalismo de extrema-direita quanto o discurso ilustrado (e apavorado) em torno da “onda conservadora”. 

Esta mesma postura derrotista do lulismo e da ex-esquerda a seu reboque foi negada também pela maior mobilização indígena de nossa história, em Brasília no mês de setembro. As lutas continuam independentemente do calendário eleitoral. Bolsonaro, por sua vez, tendo fracassado nas ruas de agosto, mobilizou o governo federal para seu massivo 7 de setembro, o qual, obviamente, não terminou em golpe, mas numa humilhante cartinha escrita por Temer ao STF. Tendo contra si a Febraban e importantes associações do agronegócio, além do imperialismo estadunidense e a ONU, Bolsonaro é incapaz de fazer o que promete. 

Todavia, no Brasil e no mundo do capitalismo contemporâneo em crise, a política tem sua autonomia sobre a economia. Com o tradicional peso do Estado que diz querer destruir, Bolsonaro insistirá em suas práticas anti-liberais, performando contra as instituições burguesas, colhendo derrotas para si e decepções para seu “gado”. Como ele mesmo reconhece, “hoje em dia não existe país isolado, todo mundo está integrado ao mundo”2. Em outras palavras, o fascismo, tal qual o socialismo, não perdura num só país… 

Repertórios políticos da esquerda, do lulismo e do bolsonarismo

Embora poucos percebam ou admitam, é sabido que o bolsonarismo copia o repertório político da esquerda e do lulismo. O discurso anti-sistêmico é o mesmo com sinais invertidos; Bolsonaro é o homem simples assim como Lula era do povo; os escrachos presenciais contra reaças de ontem foram sucedidos por ataques contra “esquerdistas” nas redes virtuais; os blogueiros progressistas viram-se atropelados pelos youtubers de extrema-direita; as fake news dos marqueteiros Duda Mendonça e João Santana passaram a ter este nome e assumir novo formato nas mãos de Carluxo e seus robôs na internet. 

As roupagens podem ser outras, mas as práticas manipulatórias de populistas de “esquerda” e de direita não resultam, decerto, em politização classista e emancipatória por parte dos trabalhadores. Neste sentido, até os “pós-modernos” são velhos – modernos na acepção burguesa do termo, caso de Boaventura de Sousa Santos, que costuma escrever em prol da progressiva humanização do capitalismo tal qual um social democrata ou marxista reformista do século XX.

E como a roda da acomodação ao status quo continua a girar, não só pós-modernos repetem modernos, como também lulistas e seus asseclas na ex-esquerda imitam as baixarias midiáticas bolsonaristas. Veja-se como muitos vibraram com o photoshop da sunga de Lula, em contraste com a “rachadinha” da falta de virilidade genital de Bolsonaro: a comparação viralizada pela bolha progressista nas redes sociais certamente fortaleceu a misoginia da sociedade brasileira, reproduzindo o conservadorismo que supostamente combate. Ao mesmo tempo, Lula vai “passando a boiada” na narrativa do golpe, negociando com os “fascistas” de hoje em dia3, sem que seus eleitores ou intelectuais paus-mandados reclamem. 

Assim como Trump e Bolsonaro, Lula também sapateia na autonomia intelectual e emocional de seus apoiadores: os três têm liberdade para fazer o que quiserem, a despeito de suas respectivas “ideologias”. A esquerda que segue o lulismo, tornando-se então ex-esquerda, vai pelo mesmo caminho: Boulos parecia aos incautos ser a renovação socialista, mas até curso de formação pago está promovendo (com direito a Luiza Trajano, o “Véio da Havan” do lulismo), igualando-se a qualquer neoliberal de carteirinha no mundo do empreendedorismo na internet. Com progressistas e ex-esquerdistas comportando-se como uma direita “civilizada”, ainda que com discurso anti-liberal, o retrocesso é garantido.  

Gangsterismo sindical vence na ADUFRJ e na ADUNIRIO

O autoritarismo político e sindical lulista é óbvio e já antigo: na eleição para a ADUFRJ, recém-realizada, o sistema de votação remota foi interrompido por um erro e depois retomado, mesmo com os devidos protestos da chapa da oposição, sem que nenhuma verificação fosse realizada quanto à segurança do pleito. Nada estranho a uma gestão que faz a Seção Sindical funcionar como assessoria de imprensa da reitoria da UFRJ e que é favorável à privatização dos hospitais universitários via EBSERH (criada pelo lulismo, mantida pelo bolsonarismo).

Por seu turno, a derrocada político-ideológica e ética da direita do PSOL, em consonância com sua adesão ao lulismo, se manifesta de várias formas. No plano sindical e popular, militantes da Revolução Solidária (tendência psolista interna artificialmente criada por Boulos) já adotam práticas autoritárias e espúrias: na recente eleição da ADUNIRIO, sua diretoria, certamente em conluio com a chapa petista da situação, escondeu da oposição, até a véspera do pleito, a lista de filiados – prática antiga do stalinismo e do gangsterismo sindical pelego vendido aos patrões. Este foi mais um exemplo da conversão da ex-esquerda ao progressismo burguês lulista, ciclo de traição de classe que se completou para boa parte do PSOL – e que inclui as parlamentares Renata Souza e Talíria Petrone, que apoiaram a chapa do PT contra a identificada com seu próprio partido (nada estranho à postura liquidacionista do neopsolismo boulista). No plano intelectual, este abandono da perspectiva militante em favor da acomodação à vida acadêmica por parte de lulistas e neolulistas expressa-se no seu próprio insulamento social: enquanto estudam “criticamente” o programa democrático-popular, a ele aderem desde 2016; enquanto analisam a “barbárie” neoliberal, passam pano para as barbaridades lulistas (encarceramento em massa, continuidade do genocídio nas favelas, agravamento do racismo estrutural, etc), etc. No caso de Boulos, do MTST e da tal Revolução Solidária, a situação se reveste de ainda maior gravidade, pois configuram um cabresto eleitoral de trabalhadores sem-teto, dirigidos politicamente por um filho – homem branco – das elites intelectuais paulistanas. Tudo a ver com a proposta anti-socialista de fazer “trabalho de base” imitando os mafiosos evangélicos neopentecostais, bolsonaristas de ocasião (o que só pode resultar em mais variações do mesmo neocoronelismo urbano), nada a ver com a emancipação e o protagonismo dos próprios trabalhadores, tal qual se deu com o PT e a CUT das origens nos anos 1970/80. Lula, Olívio Dutra e outros sindicalistas de então jamais admitiriam um movimento popular “liderado” por um arrivista profissional que não pertencesse efetivamente à própria base social (não podemos dizer o mesmo hoje em dia).

De qualquer forma, as expressivas votações do sindicalismo classista na ADUFRJ e na ADUNIRIO mostram que é possível resistir ao anti-sindicalismo, aos seus golpes e manobras, ao racismo e misoginia estruturais nas universidades os quais são compartilhados pela geração que agora deixa de ser militante. Tais práticas conservadoras e anti-sindicais, convertidas em votos para chapas nas seções sindicais do ANDES-SN, cada vez mais constituem-se no “programa” defendido pelo PT e agora pela direita do PSOL junto a professores que não se vêem como parte da classe trabalhadora, mas como uma intelligentsia da democracia burguesia no Brasil – especializada em fingir lutar contra “golpes” no país enquanto compactuam com golpes e reitores interventores nas universidades.

Emulando o repertório da extrema-direita, que ainda está na moda, a ex-esquerda se bolsonariza; esperando colher frutos do seu imediatismo, deixa de construir hegemonias políticas consistentes, para além das eleições; abandonando a perspectiva revolucionária, terminará a ex-esquerda, como gerações reformistas anteriores, no clichê da “lata de lixo da história”.

Referências

  1. Não vacinados são 99% dos mortos por Covid nos EUA, e muitos se arrependem tarde demais, ver em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/08/nao-vacinados-sao-99-dos-mortos-por-covid-nos-eua-e-muitos-se-arrependem-tarde-demais.shtml
  2. Bolsonaro rebate pressão de apoiadores após recuo em pautas golpistas: “Não pode ir pro tudo ou nada”, ver em: https://www.atarde.uol.com.br/politica/noticias/2190083-bolsonaro-rebate-pressao-de-apoiadores-apos-recuo-em-pautas-golpistas-nao-pode-ir-pro-tudo-ou-nada
  3. Líderes que apoiaram impeachment de Dilma ganham afagos de Lula no Nordeste, ver em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/08/29/golpistas-contra-dilma-em-2016-lideres-ganham-afagos-de-lula-no-nordeste.htm

Marco Antonio Perruso (Trog)

Professor de Sociologia; pesquisador na área de movimentos populares, esquerda e teoria marxista.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *