A desgraça do arrendamento de terra indígena

A demanda de commodities agrícolas tem levado à pressão para o arrendamento de Terras Indígenas (Tis). As famílias acuadas pela insuficiência da terra demarcada para a prática do modo de vida tradicional veem-se obrigadas a enviar seus membros para trabalhar fora do território, em condições de semiassalariamento, para sobreviver. Não poucas comunidades ficam divididas diante das propostas de fazendeiros de diferentes portes que querem arrendar as terras para uma agricultura que destrói os territórios.

A dinâmica das cadeias de commodities agrícolas relativiza o interesse na propriedade da terra. As operadoras e parte importante dos segmentos interessados na exportação não querem imobilizar capital na propriedade da terra que será explorada até o esgotamento – preferem usar de outros dispositivos para controlar seu uso flexível, de acordo com as flutuações da demanda dos mercados. Um desses dispositivos é o arrendamento.

A Constituição Brasileira de 1988 previa a demarcação das terras indígenas, para reprodução do modo de vida das comunidades1. Depois de um pequeno impulso, os processos demarcatórios praticamente foram paralisados. A lei interdita o arrendamento de terras indígenas, mas a falta de demarcação e uma série de práticas amparadas pelo poder judiciário vêm contornando essa proibição. Com a desculpa da necessidade de um período de recuperação dos territórios destruídos pela ação civilizatória, aprovam-se Termos de Ajuste de Conduta (TACs) de efeito transitório que permitem o arrendamento. Na maioria das vezes, e graças à ação sistemática de certos órgãos do poder judiciário e à omissão de outros órgãos do Estado, esses TACs são renovados quase que automaticamente. Em certos casos, realizam-se contratos que utilizam a figura da “associação” ou da “parceria” entre TIs e “agricultores” ou empresas. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Ministério Público costumam fazer vista grossa, com a desculpa de que os contratos são expressão da vontade dos indígenas.

A paralisia dos processos demarcatórios, a redução de indígenas em reservas, a deterioração e insuficiência das áreas já demarcadas não são levadas em consideração. Também não se considera o impacto dos cultivos e as tecnologias utilizadas nas terras arrendadas que aprofundam a destruição dos biomas. Na verdade, a prática do arrendamento a empresários, que muitas vezes empregam a própria força de trabalho da TI, conspira contra o modo de vida tradicional e a sociabilidade comunitária, favorecendo alguns membros da TI com renda e deteriorando as condições de vida dos outros.

Não poucas vezes, o mediador do arrendamento, escancarado na forma de TAC ou nos contratos que usam eufemismos em sua letra, na TI, ou mesmo na reserva2, é o capitão. A figura legal da capitania indígena foi criada pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), antecessor da FUNAI. O capitão era indicado pelo Estado para mediar as relações com as comunidades.

Por outra parte, a ação sistemática das igrejas cristãs, cuja presença nas reservas e TIs vem sendo crescentemente estimulada pelo Estado brasileiro e não raro patrocinada por empresários “irmãos”, é uma cunha na espiritualidade e economia comunitárias. Os valores do empreendedorismo individual vêm sendo introduzidos e celebrados. Outras práticas civilizatórias colonizam as relações internas das comunidades, que resistem por intermédio de seus líderes espirituais e, em particular, das mulheres. A obtenção de renda monetária, seja pelo assalariamento seja pelos contratos de arrendamento, consolida a desigualdade entre parentes e propicia uma relação de consumo em detrimento do metabolismo do território.

Parte dos episódios de violência contra os povos indígenas que testemunhamos nos últimos tempos vem acompanhada da prática do arrendamento. É o caso da morte de Kaigáng pelo capitão da TI de Serrinha3 no ano passado. Também a recente repressão e despejo, no mês passado, da retomada de Guapo’y, em Amambai, re-retomada três dias depois4.

Mas o motor deve ser procurado na dinâmica das cadeias exportadoras de commodities, cujos elos inferiores agem retirando riquezas por espoliação. A violência, o terror, o medo são condição para que a espoliação aconteça. O aumento da espoliação nesses elos permite a aceleração da acumulação que mais favorece os fundos de investimento, muito distantes dos territórios que destroem.

Referências

  1. Ver artigos 231 e 232 da Constituição Brasileira de 1988.
  2. As reservas indígenas foram criadas juntamente com o Serviço de Proteção ao Índio, a partir de 1910, e no contexto das políticas de “desindianização”, que propositalmente aumentavam a densidade populacional, para forçar o assalariamento e/ou a transformação dos indígenas em pequenos agricultores que, em minifúndios, lançassem mão de técnicas convencionais.
  3. Ver: <https://catarinas.info/povo-kaingang-sofre-violencia-latifundiaria-na-ti-serrinha-rs/>
  4. Ver: <https://desinformemonos.org/sarambi-re-retomada-de-la-tierra-indigena-en-guapoy/>

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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