A suposta dialética de Proudhon sempre foi uma forma derrotista de ver o mundo. Por jamais superar o fariseísmo pequeno-burguês, apesar do enorme prestígio que gozava entre os trabalhadores franceses, nunca foi capaz de leva-los a uma importante vitória, mesmo quando condições favoráveis a isso se apresentaram. Seu limite estava posto, de antemão, no entendimento prático de que todas as coisas têm um lado positivo que pode ser aproveitado na superação das contradições sociais. Ironizando esta falsa dialética, Marx, em carta a Annenkov, observa, primeiramente que a incapacidade de Proudhon em compreender a economia política é o fundamento dessa sua maneira ridícula de ver o mundo para, mais adiante, perguntar qual seria o lado positivo da escravidão e, com acidez ainda maior, dissecar o papel desta na formação e desenvolvimento do capital na Europa: sem escravidão na América, sem o algodão produzido pelos negros, não haveria desenvolvimento capitalista na Inglaterra. Marx tinha uma visão do todo que sempre faltou a Proudhon.
Lembrei-me disso em decorrência do inevitável convívio ontem e hoje com a euforia que provocou em seus seguidores mais ou menos próximos a libertação de Lula. Não por conta de seus seguidores religiosos, daqueles que gaguejavam há dez dias ao dizer que o fascismo tinha vencido no Brasil e que agora, num passe de mágica, o mesmo fascismo desapareceu derrotado pelo povo brasileiro que libertava Lula. Nem por aqueles que inundaram as redes sociais com um sem número de gracejos do nível da mamadeira de piroca, tomar uma cachacinha, choro é livre, Lula tá solto, babaca e coisas semelhantes o que simplesmente demonstra a impressionante vacuidade de ideias e a crença irracional de que Lula, uma vez livre, conduzirá o Brasil por caminhos completamente diferentes. Com esses, sem meias palavras, é tão difícil conversar como com qualquer bolsonarista. Não são, evidentemente, repulsivos como os são, de maneira geral, estes últimos. Mas, a estatura giletiana da argumentação é a mesma.
Refiro-me a um outro tipo de amigos que petistas ou não, lulistas ou não, tentam justificar a vã euforia falando de como a vida era melhor nos anos de governo petista. É aqui que o velho Proudhon entra na prosa: tomam sempre a parte para justificar o todo e mesmo quando a parte não cumpre este papel tomam a parte da parte para justifica-la, tentando chegar ao todo. É o que poderíamos chamar de dialética do pelo menos, ou dialética da capitulação.
O grosso dos governos Lula e Dilma foi desastroso para os trabalhadores. Foi uma continuidade da política liberal de FHC, sem que em algum momento tangenciasse qualquer reforma de alguma significância. Nada, nenhum esboço, nenhuma tentativa. Em nenhum momento ouvimos o apelo aos trabalhadores para que se organizassem em defesa de um projeto nacional ou em defesa dos interesses de sua classe. Nunca, durante os governos do PT sequer ouviu-se o desejo de acabar com o superávit primário, auditar a dívida pública, pôr fim à execrável lei de responsabilidade fiscal ou a qualquer outra alavanca de acumulação do capital rentístico. Nunca aprofundou as contradições indicando aos trabalhadores a possibilidade de sua superação, ao contrário, fez ao largo de todo esse tempo o joguinho tacanho do operário nordestino que conseguira superar os entraves que a vida lhe impusera e que agora chegava ao posto máximo da Nação, em um claro projeto de sua legitimação política. O espírito proudhoniano de Lula sempre foi o de arrumar o quarto dos patrões na esperança de que sobrasse algo a ser levado às dependências dos empregados. Ou, para usar uma expressão que agrada a muitos petistas, encerava o chão da casa grande e, com o que sobrava, dava um trato na senzala. O desarme ideológico que promoveu nas classes trabalhadoras faz parte da gênese da tragédia bolsonariana.
Não há espaço aqui para as outras críticas que precisam ser feitas aos anos petistas. O que quero salientar é que contra elementos fáticos, dados da realidade, a fantasia petista, quando não deixa atropelar por delírios pura e simplesmente, tece considerações sempre pautadas na lógica do pelo menos. Dentro dessa lógica, na segunda metade dos anos oitenta do século XIX, os negros não teriam porque se rebelar contra a escravidão, porque, pelo menos, tinham uma habitação e comida. E deveriam comemorar a lei do Ventre Livre ou do Sexagenário.
Assim, não importa que trinta milhões não tenham sido retirados, de fato, da miséria, mas apenas tivessem sua miséria administrada porque as condições favoráveis da economia mundial assim permitiram. Esta fantasia tem que ser exaustivamente repetida até que se torne verdade. Defensor que sou do bolsa família, reconheço que para quem foi beneficiado pelo programa nestes anos, de forma a atenuar sua fome, não pode ser cobrada qualquer postura crítica, mas para quem faz da miséria do povo, a qual nunca combateu de verdade, seu modo de sobrevivência política a única palavra que resta é hipocrisia.
Lula tentará reviver seus melhores momentos em condições completamente diferentes daquelas que foram o pano de fundo econômico dos seus governos. Tem folego para fazer isso, reforçado pelo jogo que ele e seus supostos adversários Bolsonaro e Moro, ou quem sabe um outro jogador que espera sua hora de entrar em campo, fazem um da demonização do outro de forma a impedir a emergência de qualquer força política que extrapole as regras estabelecidas pelo capital rentístico para esta grande economia periférica.
Mas, as condições reais da vida, que vão para muito além das suas “entrevistas históricas” dadas na cadeia, não deixam se moldar por frases de efeito como “colocar o povo no orçamento”, e outras quimeras. Vão exigir mais, muito mais de quem queira permanecer no espectro da luta política. Lula, a menos que realize sua sempre aguardada guinada à esquerda, coisa que nada indica que fará, será tragado pelas novas condições em que se apresentam no processo de valorização do capital. O preço que os trabalhadores pagarão por isso será inversamente proporcional à sua capacidade de se libertar de uma vez dessa caricatura proudhoniana.