A fala escrota de Jair e a escrotidão do capitalismo

Desculpem-me pelos termos chulos, mas às vezes a realidade se impõe ao nosso pudor. No dia 4 de março de 2021, em meio à escalada de mortes pela Covid-19 e pelo colapso hospitalar, em meio a clamores cada vez mais generalizados por uma política de contenção profunda e abrangente do vírus, Jair escreveu o seguinte em seu perfil do Twitter: “Atividade essencial é toda aquela necessária para um chefe de família levar o pão para dentro de casa!”. Tudo em caixa alta, como se estivesse gritando.

Muito foi dito em reação a esse rompante. Foi dito que se trata de um destempero de um presidente pressionado. Que foi manobra (entre outras declarações ainda muito piores) para desviar a atenção das indiscrições imobiliárias de um de seus filhos. Que a preocupação com os “chefes de família” (sic) é insincera. Que o dilema entre economia e vidas é um falso dilema. Que o pão poderia ser garantido por políticas de Estado que criassem a possibilidade de trabalhadoras e trabalhadores permanecerem em casa. Ao que tudo indica, tudo isso está correto. 

Quero, no entanto, provocar vocês com uma outra avaliação (que não exclui as outras): a afirmação de Jair também está correta. Calma, não desista do texto ainda. Me acompanhe no raciocínio, que vai dar uma volta pelos primeiros meses da pandemia e por alguns elementos teóricos para a compreensão do capitalismo até retornarmos à diarreia verbal de Jair.

Como todas as pessoas ainda lembram vividamente, os primeiros meses da pandemia foram marcados, no mundo inteiro, por políticas de diferentes graus de confinamento ou de restrições aos movimentos das populações. Aviões ficaram no chão, escolas fecharam, restaurantes e bares fecharam, academias fecharam, repartições públicas fecharam. Em alguns lugares, proibiu-se a circulação de pessoas. Em outros, foram impostas apenas restrições mais leves. Supermercados e farmácias, em geral, permaneceram abertos. Em alguns lugares, a indústria parou. Em outros, foi das poucas coisas que não parou. O traço comum entre essa variedade de restrições é que as políticas precisaram envolver em alguma medida considerações a respeito do que era essencial e do que não era. Ou seja, considerações a respeito do que poderia parar e do que não poderia.

Não é difícil lembrar que o público em geral, intuitivamente, acompanhou esse tipo de impasse sempre tendo em mente o caráter útil das atividades. Em outros termos, sempre ponderando se o produto ou serviço da atividade em questão era realmente imprescindível ou se poderia ser temporariamente dispensado, em favor do objetivo maior de controlar a disseminação do vírus. Essa primeira aproximação intuitiva, contudo, certamente veio frequentemente acompanhada de outra intuição perturbadora: “mas se quase tudo parar, a economia quebra; e se a economia quebrar, nos faltará até o que é indispensável”. 

Como críticos desse tipo de sobrevalorização do econômico, nosso primeiro impulso pode ser rejeitar abstratamente essa segunda intuição, atribuindo-a a algum erro de compreensão (no melhor dos casos) ou a algum tipo de perversão moral (no pior dos casos). Notem, porém, que se fosse completamente fantasiosa, dificilmente essa preocupação exagerada com a economia seria tão ubíqua. Quero argumentar que, ao contrário de um mero equívoco, ela é manifestação de um aspecto bastante real e concreto da nossa realidade.

Antes de qualquer coisa, percebam que não chamamos esta formação socioeconômica atual de capitalismo por acaso. Ela é adequadamente denominada capitalismo porque o capital é a categoria estruturante central da dinâmica social. Dito de outro modo, o capital e o tipo de racionalidade que lhe é próprio presidem a maneira como esta sociedade se reproduz (i.e. se mantém) ao longo do tempo. E o aspecto mais saliente da lógica do capital é sua natureza expansiva. Nenhum capital é posto em movimento para decrescer. Nenhum capital é posto em movimento para terminar no zero a zero. Todo capital é posto em movimento para crescer. A racionalidade compatível com essa lógica, portanto, é aquela que se volta, incansavelmente à promoção do crescimento. Percebam, ademais, que, nesse ímpeto expansivo, não importa tanto por quais meios se obtém o crescimento. Importa, na verdade, que o crescimento seja obtido por todos e quaisquer meios possíveis.

Nesse registro, para o capital, essencial é tudo aquilo que o faz crescer. Nada que proporciona crescimento é dispensável ou adiável para o capital. Assim, se a dinâmica social é regida por essa lógica, essencial é tudo (ou quase tudo); e portanto nada pode parar! As considerações que possamos vir a ter sobre o caráter útil das diversas atividades, dos diversos produtos e dos diversos serviços são absolutamente secundárias (a não ser para nós mesmos). No capitalismo, as necessidades que devem ser satisfeitas, antes de qualquer outra, são as do capital. 

Antes de voltarmos à fala do Jair, mais um breve comentário sobre a estrutura dessa sociedade. Conforme sabemos (mesmo que nunca tenhamos parado um segundo sequer para pensar nisso), na sociedade capitalista, a única relação social realmente inescapável é a relação de troca. Salvo exceções implausíveis, precisamos comprar e vender o tempo todo para sobrevivermos. Essa exigência devém do fato de sermos todos produtores de mercadorias. Isso é verdade mesmo para aqueles de nós que “produzem” e vendem apenas uma mercadoria: sua própria força de trabalho.

Essa estrutura mercantil nos torna todos produtores daquilo que não consumimos. Ao mesmo tempo, virtualmente tudo o que consumimos é produzido por outrem. Ou seja, todas aquelas coisas de que necessitamos para sobreviver são obtidas no mercado. Mas o mercado não faz caridade. Só tiramos dele as mercadorias que podemos pagar. E, no caso da classe trabalhadora, os recursos que nos permitem pagar vêm da venda de nossa mercadoria especial, a força de trabalho.

Vejam o quadro que começa a se desenhar. Se tudo que eu preciso é obtido pela compra, e se a compra só é possibilitada pela venda anterior da força de trabalho, então quando eu não consigo vendê-la (i.e. quando não consigo emprego), minha vida se encontra em risco. Nessa estrutura mercantil que caracteriza o capitalismo, eu não trabalho por ser um membro legítimo da sociedade. Ao contrário, eu apenas sou um membro legítimo, digno de ser mantido vivo ou em boas condições, se existir capital disposto a absorver a minha força de trabalho.

É por isso que a fala cretina de Jair cala fundo até mesmo entre muitos integrantes da classe trabalhadora. É por isso que muitos deles preocupam-se sinceramente com a saúde do capital, com as oscilações da bolsa ou com a “confiança dos investidores” (sic.). 

Quando afastamos apressadamente a sobrevalorização do econômico, perdemos de vista que o econômico paira, de fato, sobre nossas cabeças, subordinando quaisquer outras aspirações ou necessidades que tenhamos. Não podemos negar que existe, em nossa época, um dilema entre economia e vida. É necessário reconhecer que esse dilema existe, sim. Na verdade, esse dilema se manifesta em inúmeras instâncias. Quando a vocação exploratória do capital é contida apenas com legislações trabalhistas, temos um sintoma de que, na ausência dessa legislação, o capital sugaria até a última gota de suor e sangue dos trabalhadores. Vemos um exemplo de como, no capitalismo, o econômico expolia a vida. Quando todo o clamor mundial relacionado às mudanças climáticas demonstra-se incapaz de frear a voracidade do business as usual, vemos como o econômico é inconciliável com a vida. Quando o auxílio emergencial é colocado em xeque porque o “mercado ficou nervoso” (sic), vemos como o econômico vem objetivamente antes da vida. Quando o equilíbrio fiscal tem precedência sobre o financiamento da saúde, da educação e da ciência, em um período em que milhares de nós tombam sufocados todos os dias, nos é revelado que a saúde financeira dos credores do Estado vale mais do que a vida de cada um de nós.

Admitir tudo isso não nos torna cúmplices deste governo, ou do mercado, ou das políticas neoliberais. Isso porque admitir não é aceitar. Mais que isso, é possível demonstrar que essa realidade deplorável que acabo de ilustrar telegraficamente é específica do capitalismo. Há um outro mundo possível. Para construí-lo, é necessário antes reconhecer que o mundo atual precisa ser superado. É necessário passar da crítica às falas do Jair para a crítica à sociedade capitalista. É necessário passar da rejeição abstrata ao que essa falas representam para a rejeição prática da realidade que as tornam (mais ou menos) verdadeiras.

Eduardo Sá Barreto

Professor de Economia, pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro "O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas"

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