O automóvel como símbolo da industrialização esteve presente por mais de um século no imaginário geral da população mundial. No Brasil não foi diferente. Mesmo que durante todo o período em que ocorreu o Processo de Industrialização por Substituição de Importações (PSI) houvesse a internalização dos mais variados tipos de indústria, iniciando com a indústria de bens de consumo não-duráveis – cujo exemplo maior eram as Indústrias Matarazzo – até a indústria de base e de bens de capital, a indústria automotiva manteve seu império simbólico. A comoção e o debate gerado pelo encerramento das plantas da Ford e outras montadoras no Brasil atualmente apenas vem a confirmar o simbolismo desse ramo da produção.
De fato, a opção por determinado padrão de transporte, no caso, o rodoviário, moldou de forma indelével, o caráter do país, bem como sua topografia. Desde o presidente Dutra, com seu slogan “Governar é construir estradas”, que os traçados do desenvolvimento econômico seguem esse padrão. Até mesmo o setor predileto da atualidade, o agronegócio, padece as consequências dessa opção, uma vez que tem que escoar safras enormes por meio de caminhões que deixam pelas estradas, muito mal conservadas, uma quantidade significativa de grãos. Tivéssemos algum lampejo de projeto de burguesia nacional, algum nível de planejamento estratégico teria ocorrido há um século. Não foi o caso.
Neste momento, a crise do setor no Brasil suscita reações díspares, desde os neo-desenvolvimentistas, até os neoliberais. Os primeiros denunciam a desindustrialização e procuram, desesperadamente, por uma inexistente burguesia nacional que venha nos redimir do atraso. Os segundos, mais em linha com os reais interesses burgueses realmente existentes, pregam a eterna necessidade de reformas que significam, sem mais delongas, precarização das relações de trabalho e fim dos investimentos públicos na área social. O fato é que nenhuma dessas opções promoverá qualquer alternativa saudável ao país.
O que realmente importa para analisar a estrutura setorial de transporte não está nestas alternativas, mas sim em outros padrões tecnológicos desenvolvidos nos países asiáticos, capitaneados pela China. A indústria automotiva continua importante, mas seu peso relativo vai diminuindo na medida em que outras formas de transporte, principalmente ferroviário, avançam. Mesmo no setor de automóveis, as mudanças operadas com o carro elétrico – em que a China, mais uma vez é líder absoluta -, veículos autônomos, os mini-carros, etc., deixam aos museus o saudosismo de automóveis do tipo que se produz e ainda é muito apreciado no Brasil, ou seja, carros com alto consumo de combustível, muito poluentes, pesados, enfim, ultrapassados. A Ford é o modelo mundial desse tipo de carro. Não é à toa que está revendo mundialmente suas estratégias.
Ainda assim, muitos argumentarão que esse setor representa uma importante parte da produção interna e gera empregos. É verdade, principalmente no que se refere aos empregos, por mais que tenham se degradado com as contrarreformas que prejudicaram todos os trabalhadores. No entanto, não se pode esquecer, a colaboração de alguns sindicatos dessa indústria com a lógica da “parceria-conflitiva” com o patrão que contribuíram para a precarização do trabalho. Destarte tudo isso, esse setor ainda oferece bons empregos, em relação ao restante do emprego privado. Só para se ter uma idéia, em 1983 a indústria empregava 104 mil e produziu, durante o ano, 830 mil veículos; em 2003 o emprego caiu a 79 mil trabalhadores e a produção foi de 1 milhão e 680 mil veículos, atingindo o auge em 2013 com a produção de mais de 3,7 milhões de veículos e empregando mais de 137 mil trabalhadores.
É evidente que nessas quase quatro décadas muitas mudanças ocorreram, tanto na política econômica do país quanto no número e tipo de empresas automotivas que operaram por aqui. No entanto, uma coisa não mudou significativamente, o padrão de negócios que essa indústria representa. A indústria automotiva, bem como a maioria das multinacionais que se instalou no Brasil, só o fez por conta das vantagens de curto prazo que o país ofereceu: em primeiro lugar, e desde sempre, as mais diversas formas de subsídio – desde taxas de câmbio privilegiadas, ainda na época da SUMOC, até empréstimos e regimes fiscais especiais, nos últimos tempos; mercado interno robusto e disposto a adquirir, a preços até bem elevados, automóveis já bastante depreciados em outras áreas; sindicalismo “colaborativo” sempre disposto a participar de diversos formatos de “câmaras setoriais” para salvar essa indústria – como se ela tivesse que ser resgatada.
Até o início da década de 1990, a cadeia produtiva do setor automotivo também representou o símbolo do modelo de desenvolvimento econômico-produtivo do PSI. O chamado tripé desse processo de industrialização era composto pelo capital estatal, nos setores que demandavam alto investimento e prazos muito elevados de depreciação, como na indústria de aço e petroquímica; o capital internacional investiu na produção de bens de consumo duráveis aproveitando a tecnologia das matrizes e os benefícios fiscais e legais anteriormente mencionados; e o capital privado nacional foi alocado de forma subsidiária, completando as cadeias produtivas no fornecimento de componentes e serviços demandados pelas empresas multinacionais. Assim, surgiram empresas de autopeças e componentes automotivos nacionais que alcançaram relevância no cenário empresarial brasileiro. No entanto, esse grupo burguês não só não procurou dinamizar a própria atividade industrial com internalização dos demais elos da cadeia produtiva, como, assim que houve mudança nas estratégias internacionais e na política econômica em geral, desapareceu.
Os brados neodesenvolvimentistas atuais lamentam a perda desse setor da burguesia interna e apontam as medidas macroeconômicas adotadas pelos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso – seguidos pelos governos petistas – como responsáveis pelo desmonte e desaparecimento da indústria nacional ligada à cadeia produtiva do setor automotivo. No entanto, foram os próprios empresários internos desse setor que apoiaram esses governos e suas medidas. As grandes famílias que dominavam a indústria de autopeças (Mindlin, Gerdau, Kasinski – as mais famosas) não se manifestaram contra as medidas de “desnacionalização” provocadas pelas políticas econômicas a partir dos anos 1990, muito ao contrário, encontraram vantagens em se desfazer de seus rentáveis e bem sucedidos negócios para se alojarem confortavelmente no ganho fácil da financeirização.
As vantagens oferecidas pelo Regime Automotivo Brasileiro, de 1996, impulsionaram a reestruturação do setor com a entrada de novas marcas de montadoras e incrementou desnacionalização do setor de autopeças. Em 1994, o capital nacional representava 51,9% no setor de autopeças e caiu para 22,8% em 2001. Enquanto o capital externo passou de 48,1% para 77,2% no mesmo período. O índice de nacionalização dos veículos, que chegou a 95% até os anos 1990, baixou para 55% com o plano Inova-Auto de 2012. Vale lembrar que o índice de nacionalização não representa capital nacional, mas sim o quanto do veículo é produzido no país, independente da nacionalidade do capital da empresa.
O programa Inova-Auto, instituído em 2012, procurava incentivar, por meio de isenção fiscal, a internalização da inovação tecnológica. Todavia, de acordo com os resultados apresentados pelo programa, o que ocorreu, na prática, foi a substituição dos investimentos em inovação feitos pelas empresas automotivas que, antes do programa, utilizavam recursos próprios para os gastos com inovação e passaram a utilizar recursos públicos, chegando até a diminuir o volume. Segundo os dados, em 2011 as empresas investiram cerca de R$ 4,7 bilhões em inovação, caindo para R$ 3,6 bilhões em 2014. No mesmo período, o setor público (por meio de incentivos tributários e barreiras alfandegárias) aumentou sua participação, passando de 13,5% para 24,1% dos recursos utilizados pelas empresas para inovação.
O panorama geral que podemos enxergar diante do itinerário do setor automotivo no país, em comparação com outros países semelhantes (como a Coreia do Sul, a China e a Índia), é que essa indústria, na medida em que representa o símbolo da industrialização brasileira, demonstra bem o processo geral pelo qual o Brasil atravessa. Não internalizou processos produtivos, não contribuiu para a formação de um parque industrial-tecnológico nacional, e apenas mantém atividades mediante incentivos públicos, tanto diretamente, quanto na manutenção da renda interna que sustente o mercado para seus produtos. Além disso, demonstra também o papel desinteressado da burguesia interna no que se refere a qualquer projeto de desenvolvimento.
O fechamento das fábricas representa um pesado ônus sobre os milhares de trabalhadores envolvidos, no entanto, não será o apelo a alguma burguesia interna que resolverá o problema do desenvolvimento e da industrialização em nosso país. A única alternativa é a construção de um projeto de autonomia operária, que tenha sido concebido pelo Poder Popular e que supere o capitalismo realmente existente no Brasil.
No curto prazo, diante desse quadro e para a construção do Poder Popular, o caminho é a ocupação das plantas da Ford pela classe trabalhadora.