A copa do mundo de 2019 foi um divisor de águas para o futebol feminino, seja pela visibilidade alcançada [1], seja pela tomada de posição das mulheres contra a discriminação financeira nos prêmios e demais formas de opressão. A copa vencida pela seleção feminina norte americana, conduzida pela excepcional Megan Rapinoe, foi vista por um bilhão de pessoas ao redor do mundo e pautou a igualdade de gênero no esporte, de um modo até então inédito no futebol. Mesmo não tendo um desempenho satisfatório na competição, a seleção nacional, comandada por Marta, Cristiane e Formiga, deu um passo importante na direção da equiparação financeira entre atletas e deu o seu recado.
Com a visibilidade conquistada na Copa do Mundo cresceu a exposição das atletas e com ela a luta por igualdade. O Campeonato brasileiro de 2020 tem transmissão e audiência inéditos. A competição, hoje liderada pelo Santos, é transmitida pela tv Bandeirantes e tem média de público expressiva e já desperta a cobiça de outras emissoras. A visibilidade, ao que tudo indica, veio pra ficar! Já reforçada pela excelente técnica sueca Pia Sundhage, a seleção Feminina deu um passo fundamental na direção da igualdade financeira entre atletas [2]. Desde março a CBF paga “diárias e prêmios” iguais para as modalidades feminina e masculina. Esse é evidentemente apenas um passo, pois no que diz respeito ao futebol de clubes [3], a modalidade ainda dá seus primeiros passos e para se viabilizar teve de ser “obrigatória”.
Os esportes em geral devem colher frutos em 2020, um ano histórico para o esporte. Do basquete dos EUA à Fórmula 1, as manifestações contra o genocídio negro e por justiça tomaram conta de diversas modalidades e espaços esportivos, antes marcados por um silenciamento imposto. A NBA vive uma temporada de exceção, desde os protestos contra o assassinato de George Floyd e já incomoda os organizadores das próximas temporadas, uma vez que, até então, os protestos eram proibidos. De nada adiantaram as reclamações de Trump. O mesmo ocorre com a FIA. Lewis Hamilton chegou a ser ameaçado de punição, mas o temor de uma repercussão ainda maior deteve a sanha punitiva dos donos do poder no esporte mais capitalista de todos, a Fórmula 1. A Luta por igualdade de Marta, Cristiane e cia chegou até a entidade que coordena o futebol nacional. A CBF, pela primeira vez em sua história, tem uma diretora mulher. Alline Pelegrino, coordenadora de competições femininas, ao lado de Duda Luizelli, coordenadora da seleção feminina. As duas dirigentes e a técnica Pia Sundhage dão as cartas agora na modalidade nacional, uma vitória em comparação com anos anteriores, mas ainda um primeiro passo rumo à equidade esportiva.
A convivência, quase secular, do futebol masculino com o racismo gerou o mito de que “dentro de campo racismo é recurso” para desestabilizar o adversário, de que “pertence ao futebol” para usar a expressão de Wanderley Luxemburgo, defensor de tal “teoria”. O Racismo chegou até o “menino Neymar”. Mesmo que ele, há dez anos atrás, tenha minimizado o racismo, quando afirmou: “Nunca, até porque não sou negro”, (Neymar em 2010). Ninguém precisa ser fã de Neymar para odiar o racismo [4]. Mas a FIFA ainda tolera o racismo e recorrentemente pune quem se revolta contra práticas e xingamentos racistas. Um tabu ainda maior no futebol masculino é a homofobia. Desde os cantos das torcidas organizadas até a “proibição velada” a qualquer atleta que queira se assumir homossexual. Falta muito para assistirmos na modalidade masculina um discurso que possa se comparar ao histórico discurso de Megan Rapinoe no prêmio de melhor jogadora do mundo na temporada 2019-2020 [5].
Encerro essa coluna abrindo aspas para Megan Rapinoe: “eu ia dizer algumas das histórias que mais me inspiraram neste ano: Raheem Sterling e (Kalidou) Koulibaly, seus desempenhos incríveis no campo, mas a maneira como eles enfrentaram o racismo nojento que eles têm que enfrentar, não só neste ano, mas provavelmente por toda a vida deles.
A jovem iraniana que acabou se incendiando porque não conseguiu ir ao jogo. O único jogador da MLS abertamente gay, o sr. (Collin) Martin, e as incontáveis outras jogadoras LGBTQ que lutam tão duro todos os dias para, primeiro, apenas praticarem o esporte que amam, mas, segundo, também para combater a homofobia desenfreada que temos. Essas são todas as histórias que me inspiram tanto, mas que também me deixam um pouco triste e um pouco decepcionada.
Sinto que, se realmente quisermos ter uma mudança significativa, o que acho que é mais inspirador seria se todos, mais do que Raheem Sterling, Koulibaly, ficassem tão indignados com o racismo como eles. Se todos os outros fossem assim. Se todos estivessem tão indignados com a homofobia quanto os jogadores LGBTQ. Se todo mundo estivesse tão indignado com a igualdade de remuneração ou a falta dela ou a falta de investimento no esporte feminino além das mulheres, isso seria a coisa mais inspiradora para mim. Sinto que esse é o meu pedido a todos. Temos uma oportunidade incrível de sermos jogadores profissionais de futebol. Temos tanto sucesso, financeiro e outros, que temos plataformas incríveis.
Peço a todos aqui – porque acho que todos neste salão provavelmente têm uma coroa que carregam – para que emprestem a sua plataforma para outras pessoas. Ergam as outras pessoas. Compartilhem o seu sucesso. Temos uma oportunidade única no futebol, diferente de qualquer outro esporte do mundo, de usar este belo jogo para realmente mudar o mundo para melhor.
Então, essa é a minha cobrança a todos. Espero que vocês levem isso a sério e façam alguma coisa. Façam qualquer coisa. Temos um poder incrível neste salão. Muito obrigado. É uma grande honra.”
3 – https://www.torcedores.com/noticias/2019/09/qual-a-disparidade-dos-salarios-de-messi-e-rapinoe
5 – https://trivela.com.br/discurso-megan-rapinoe-the-best-premiacao-fifa/