Uma das fantasias mais exploradas no cinema é a do resgate da história. Em geral, esse resgate funciona em via de mão dupla: apaga o papel dos sujeitos reais na construção da história ao mesmo tempo em que coloca no lugar de sujeito um herói idealizado que jamais existiu e, no mais das vezes, sequer poderia ter existido, porque, no plano histórico, os sujeitos idealizados jamais fariam o que os sujeitos reais que foram apagados fizeram.
Por isso, todas as fantasias revisionistas revelam alguns aspectos em função de esconder outros, pois trata-se de recontar a história de modo a evidenciar quem são os protagonistas desejados dos acontecimentos e quem são as vítimas, isto é, quem deve aparecer como vítima de catástrofe ou de castigo da história, para usar as palavras de Octavio Paz.
Nesse sentido, um exercício muito elucidativo é entender como o mito de Tiradentes é contado. O alferes Joaquim José da Silva Xavier é comumente imaginado como mártir traído. Cantada e decantada em prosa, verso e músico popular, sua figura já foi usada politicamente como símbolo da soberania nacional pelos discursos oficiais, bem como de liberdade e luta contra o autoritarismo. Mas, no cinema nacional, sua imagem oscila entre o herói e a vítima, em permanente disputa.
Na década de 1970, dois filmes trataram de resgatar o mito. Os Inconfidentes (Brasil-Itália, 1972), dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e co-roteirizado por Eduardo Escorel, Cecília Meireles e o próprio diretor, toma a Inconfidência Mineira como alegoria para falar do autoritarismo do regime militar da época. Misturando a poesia de Cecília Meireles e dos próprios inconfidentes com os documentos históricos dos Autos da devassa, o filme mostra um Tiradentes libertário ou, conforme então se dizia, um subversivo. Nesse filme, é importante observar que Tiradentes (José Wilker) é o principal dos inconfidentes, mas não é o único. Interessa mais ao diretor mostrar o caráter coletivo e sobretudo dúbio da Inconfidência Mineira, um movimento organizado por poetas e gente de alta estirpe que muito conjuraram e pouca responsabilidade assumiram, mesmo que réus confessos. Tiradentes, singular membro das classes populares ali representado, é também o único que confessa sua participação nos atos conspiratórios, assumindo a responsabilidade que lhe cabe. Revolucionário traído pelas intrigas de seus próprios companheiros, sua punição servirá como exemplo a quem ousar imitá-lo.
Cinco anos mais tarde, outro filme volta a representar a personagem, dessa vez como um popular herói, mas não exatamente como um herói popular, digamos assim. Em O mártir da Independência: Tiradentes (Brasil, 1977, dir. Geraldo Vietri), mais interessa a biografia mítica que uma interpretação da história. Apesar de sua baixa patente, o alferes é representado nesse filme como protagonista da luta pela independência do país. Sem deixar de representar Tiradentes como o único que tem consciência de sua responsabilidade, a narrativa, no entanto, é construída em torno a dicotomias simples e bastante comuns: liberdade x prisão, bem x mal, interesses públicos x interesses privados. Assim, a insurreição nesse filme é indubitavelmente uma revolta justa, à qual o traidor Joaquim Silvério dos Reis (Chico Martins), movido por interesses bem pouco republicanos, opõe-se como um inimigo interno ou infiltrado. Sem as nuances de cinismo que filme de Joaquim Pedro de Andrade confere à sua própria narrativa, mais do que às personagens, o filme de Geraldo Vietri reforça o mito do mártir que morre por sua nação, mais do que por seu povo. Além disso, o filme pode ser considerado um exercício de didatismo do diretor, cuja técnica televisiva é evidente na escolha dos planos e cortes de edição. Não é fortuito, então, que o papel principal tenha sido dado ao então galã de novelas Adriano Reis, tampouco que a narrativa seja linear e, em certo sentido, até mesmo lenta. Nesse filme, Tiradentes é um sobretudo um herói moral, alguém que desde a infância enamorou-se de uma liberdade que não tem exatamente um conteúdo social definido. O quanto de alegoria há nesse filme é algo que não se diz de imediato, mas é certo que a narrativa busca mais corresponder a certa imagem popular do mito do Tiradentes do que problematizá-la ou confrontá-la.
Mais recentemente, no contexto do cinema da retomada, alguma ambiguidade retorna na maneira como Tiradentes (Brasil, 1999, dir. Oswaldo Caldeira) imagina o mito. Partindo de ampla pesquisa histórica, o diretor apresenta um homem que oscila entre a masculinidade poderosa, para o que contribui a presença física de Humberto Martins, e certa ingenuidade quixotesca, com o mito cavalgando em câmera lenta ao som de uma música de Bob Dylan. Ao mesmo tempo, a montagem paralela dos acontecimentos funciona para misturar à vista do espectador elementos do cotidiano com as ações políticas, dando a entender que o protagonismo das pessoas comuns na Inconfidência não necessariamente envolvia grandiosos ideais de libertação e autonomia num projeto cívico de tomada do poder ou de independência nacional. De fato, colabora para essa interpretação a opção por representar a morte do Claudio Manoel da Costa como um assassinato sem assassino evidente, e não como suicídio, conforme registrado oficialmente. E também nesse sentido, a personagem mais interessante do filme não necessariamente é o Tiradentes, mas pode ser Joaquim Silvério dos Reis (Rodolfo Bottino), que a todo momento olha diretamente para o espectador, como a chamá-lo como cúmplice de seus atos, numa clara e tradicional provocação cinematográfica (que quase pode ser eleita característica definidora do cinema da retomada, de tão explorada foi pela produção nacional de 1995 a 2005).
A mais recente representação cinematográfica de Tiradentes é Joaquim (Brasil-Portugal, 2017), dirigido por Marcelo Gomes. O roteirista de Madame Satã (2002) e diretor de Cinema, aspirinas e urubus (2005) dá uma guinada na maneira de recontar essa história tão conhecida do alferes alçado a herói nacional. A começar que a Inconfidência Mineira não aparece no filme. É a trajetória do homem Joaquim antes de se tornar o mito Tiradentes que interessa imaginar. É claro, trata-se igualmente de uma idealização, uma vez que pouco sabemos da biografia da personagem, mas o que o filme faz é sobretudo humanizar o mito, desconstruindo algumas idealizações, como é comum dizer hoje em dia.
Nesse sentido, o filme de Marcelo Gomes aproxima-se do de Joaquim Pedro de Andrade, pois recusa contar a história do Brasil como uma marcha coletiva em busca da liberdade e conduzida por grandes líderes. Ao contrário: um olhar menos ufanista da nossa história revelará que mesmo os heróis nacionais são pessoas sem caráter definido, e mesmo sem qualquer caráter, pois movidas principalmente por interesses pessoais e uma vontade de melhorar de vida de qualquer maneira, sem qualquer responsabilidade por um ideal coletivo ou mesmo solidariedade popular. Muito menos que um Marechal Rondon, o Tiradentes do filme (interpretado por Julio Machado) parece mais um Macunaína, sem deixar de ser ele também um traidor de seu fiel ajudante Januário (Rômulo Braga). Como os outros membros do povo comum do país, Joaquim é despolitizado e só se preocupa mesmo em sobreviver. Sua indignação só assume um claro teor político depois que suas tentativas de enriquecer dão em nada e seus desejos amorosos são destruídos.
Em vez de educá-lo, a bruteza dos fatos leva Joaquim a ter ideias distorcidas. Suas palavras sobre a Independência da América do Norte revelam sua ingenuidade acerca da Inconfidência. Contrastadas com a fala do fidalgo anfitrião ao padre, elas revelam, ao fim, a ausência de um projeto popular de independência. A Inconfidência seria mais um projeto de classes dominantes locais, motivadas pela queda no padrão econômico e insatisfeitas com os altos impostos cobrados pela coroa, e não uma revolta política genuinamente transformadora, um movimento originado de baixo e que poderia agregar insatisfações populares.
O filme, assim, não idealiza propriamente a personagem do Tiradentes, mas mostra como ele, sem muito pé na realidade, é tomado por idealizações e se lança a voluntarismos. Levado à Inconfidência pelo poeta sem nome (Eduardo Moreira), ele interpreta radicalmente o que lê, mas não consegue concretizar essa leitura em ações coletivas. Seus iguais são despolitizados; as pessoas mais cultas e mais bem favorecidas que ele só o enxergam como instrumento de cooptação popular, um rude e ridículo popular útil. Ele mesmo passa à política de maneira delirante – suas palavras são essa gente bem vestida, cada vez mais rica, cercada dessa corja, os diamantes pendurados, roubando nossa riqueza, a independência nacional e a liberdade individual são seu delírio. O raccord final sugere o lugar desse delírio na imaginação nacional.
Não cabe, aqui, tentar alinhavar esse percurso além de uma pergunta: daqui a algum tempo, que mitos restarão em nossa imaginação – os que protagonizam a história, os que a sofrem ou os que sequer se preocupam com ela?
Cordiais saudações.