A Libra e a equalização dos poderes do futebol brasileiro

A Inglaterra não é propriamente o “país do Futebol” (nenhum país é!) e nem deve ser considerada o primeiro lugar a se praticar futebol, pois, onde houve algo como uma bola e alguém se divertindo chutando-a, houve Futebol. Mas certamente é na Inglaterra que, a partir de 1863, começou a se formar o que viria a ser o Esporte mais querido do mundo. E a primeira liga que organizava até mesmo as “regras” (coisa que os ingleses adoram!) foi a English Football League, que congregava times das mais diversas regiões e, hoje, divisões do futebol da rainha. Ainda hoje a Copa da Inglaterra (o campeonato de Futebol mais antigo do mundo) é organizada por esta antiga entidade associativa. 

Há muitas questões ligadas ao surgimento de outra entidade, a Premier League, que não poderemos tratar aqui – elas envolvem o Hooliganismo, crises e uma tentativa de elitizar os espaços do esporte. Há farta literatura sobre o tema das torcidas organizadas, particularmente a produção acadêmica de Bernardo Buarque de Holanda, o maior especialista em torcidas organizadas no Brasil.1 Mas a Premier League, dizíamos, “modernizou” o futebol inglês, fez de seu campeonato um “modelo” de sucesso e competitividade. Não é à toa que legiões de atletas de todo o planeta migram para o futebol inglês, garantindo o sucesso esportivo do campeonato. Coincidência ou não, o Brasil se vê às voltas com a criação de uma Liga com o nome sugestivo de LIBRA.2

Até o momento (10/05/2022), nove clubes assinaram pela criação da Liga: Bragantino, Corinthians, Cruzeiro, Flamengo, Palmeiras, Ponte Preta, São Paulo, Santos e, por último, o Vasco.3 Mas não foram apenas esses clubes que participaram da reunião e das discussões sobre a LIBRA – 40 clubes ao todo estão em conversas, e, certamente, há divergências, embates, interesses… o de sempre! O principal ponto de discórdia é a divisão dos “direitos de transmissão”, maior receita da maioria dos clubes brasileiros. Os times da Série B reivindicam que haja também maior divisão do poder de decisão, e, pelos documentos até agora apresentados, os clubes da série A têm maior poder de decisão, o que parece um complicador para uma maior adesão dos clubes intermediários. É preciso que se tenha em mente que uma Liga faz as vezes de um Sindicato entre os clubes, defendendo os interesses de todos e não de uma parte! É uma instância de democracia, mesmo na luta (de todos contra todos) do esporte.

Sobre a divisão de receitas, é preciso que se observe o modelo inglês. Vinda de um país de forte tradição associativa, terra das primeiras formas sindicais, das “Trade Unions” que remontam à época de Marx, a Premier League reparte de forma equalizadora os recursos. Metade fica para todos os associados, a outra metade é repartida por “resultados” nas competições e audiência dos jogos, de modo que, para usar a nomenclatura que consagramos aqui no Brasil, não há um grande abismo entre os times grandes e os pequenos(na distribuição dos recursos da liga). É certo que há outras receitas, próprias de cada clube, mas o fato é que, no modelo inglês, os grandes clubes irrigam todas as divisões, fazendo com que existam as 6 divisões que compõem o sistema de futebol inglês. O modelo inglês é seguido, com alterações, nas principais ligas da Europa.4 Serão capazes os dirigentes de nossos clubes de tal ato de grandeza? 

A experiência anterior no Brasil poderia nos ensinar algo? Embora tenha sido um avanço a criação dessa “Liga”, pois o campeonato de 1986 havia sido uma verdadeira bagunça (com incríveis 80 clubes), o que resultou no colapso da competição, e da própria CBF em 1987. Esse colapso acabou resultando na criação do CLUBE DOS 13.Não obstante o clube dos 13 fosse melhor que a CBF, era ainda uma “Liga” tributária da tradição elitista brasileira, que durou certo tempo e, também por isso,  não temos saudades. O problema é que agora o mesmo elitismo pode travar a criação da LIBRA. A Liga não pode servir para cristalizar assimetrias econômicas e de poder! É preciso que os clubes de maior torcida, e consequentemente recursos, se preocupem com o “ecossistema” do futebol e não apenas com o próximo campeonato ou a próxima remessa de recursos de TV. É obvio que uma boa situação do futebol como um todo favorece a todos. Quando um time como a Portuguesa sucumbe, sucumbe o futebol brasileiro! Só não percebe isso o dirigente e o torcedor descuidado. Portanto, é preciso que as torcidas se mobilizem para que a discussão não seja feita no sentido de garantir apenas que os clubes grandes continuem grandes (isso não está em questão! Quem é grande por si mesmo não vai diminuir!), mas para que se equalizem os poderes, que se fortaleçam todos os clubes e divisões, que se profissionalizem as séries C e D, que hoje são uma várzea! Que haja preocupação em preservar os clubes tradicionais, a história do Futebol nacional, e que haja investimentos e solidariedade com o Futebol Feminino, que não é bem cuidado pela CBF. 

É obvio que é da natureza do esporte a competição e a busca de vencer o adversário, mas isso é dentro de campo; fora dele, deve haver por parte dos dirigentes um pensamento estratégico e que preserve o esporte para que a guerra (legítima) dentro de campo não vá para os bastidores, não seja reposta no campo financeiro e nas tomadas de decisão. Os grandes clubes brasileiros parecem agarrados aos seus lucros imediatos e aparentam não enxergar que, se todos forem mais fortes, podem ter um campeonato melhor, que aí sim será decidido pelo mérito esportivo! Todo apoio à criação da Liga! FORA CBF! PAZ ENTRE AS TORCIDAS E GUERRA AOS PATRÕES!

Referências

  1. Do hooliganismo inglês às torcidas brasileiras, veja em: https://ludopedio.org.br/arquibancada/do-hooliganismo-ingles-as-torcidas-brasileiras/
  2. Libra: conheça todos os detalhes sobre a criação da nova Liga Brasileira de Clubes, veja em: https://www.lance.com.br/brasileirao/libra-conheca-todos-os-detalhes-sobre-a-criacao-da-nova-liga-brasileira-de-clubes.html
  3. Vasco se junta à Liga de Futebol Brasileiro, que agora tem nove clubes associados, veja em: https://ge.globo.com/futebol/times/vasco/noticia/2022/05/09/vasco-se-junta-a-liga-de-futebol-brasileiro-que-agora-tem-nove-clubes-associados.ghtml
  4. De Premier League a LaLiga: como é feita divisão do dinheiro de TV nas grandes ligas da Europa que inspiram clubes brasileiros, veja em: https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/10346840/premier-league-laliga-como-feita-divisao-dinheiro-tv-grandes-ligas-europa-inspiram-clubes-brasileiros

Hélio Ázara de Oliveira

Doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor de Filosofia, lateral do Ponta Firme FC (time de futebol amador de João Pessoa-PB).

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