A nova fase da ditadura do capital financeiro na Argentina: Javier Milei e os cantos da cigarra

A ultradireita latino-americana ganhou força com a eleição de Javier Milei na Argentina, um presidente que se diz “libertário”, mas que, na verdade, irá criar as condições para o aprofundamento da ditadura do capital financeiro na região.

Já havíamos assistido à fabricação de presidentes, como a que ocorreu nos estúdios da TV Globo, que criou Fernando Collor de Melo, um “tipo alto, branco, bonito, caçador de marajás e limpinho para combater a corrupção”. Vimos também a ascensão de Jair Bolsonaro, criado pelos robôs das Alianças Liberais Internacionais que disparam propaganda em massa.

Javier Milei é o novo tipo fabricado pela mídia argentina e mundial, que foi testado no último ano e conseguiu derrotar a esquerda da ordem argentina no 2º turno. Criaram um personagem “revolucionário” com sua motosserra, que iria supostamente combater a “classe política”, destruir o “papá Estado”, fechar ONGs que criaram a emergência climática, combater os comunistas, inclusive o presidente Lula e o presidente da China, e retomar a Grande Pátria, tal como Mussolini também evocava para o caso italiano, ou Hitler com a criação de um império ariano.

Estamos assistindo às primeiras cenas de uma “revolução”, na verdade uma contrarrevolução que só irá aprofundar a ditadura do capital financeiro na Argentina. Sua posse foi bastante simbólica. De costas para o Congresso, falou para um público relativamente pequeno, se comparado às posses massivas dos presidentes anteriores na Argentina. Seu apoio no congresso é pequeno, seu partido nanico, tendo por trás as forças lideradas por Maurício Macri e Patrícia Bullrich. Seria Milei um fantoche de Macri?

Mas é preciso voltar um pouco no tempo. Num dos clássicos do pensamento marxista, Gyorgy Lukács procura responder à seguinte pergunta: “Por que a Alemanha se tornou o centro da ideologia reacionária?”. A pergunta pode ser atualizada: Por que a Argentina deve se tornar o centro da ideologia reacionária na América Latina?

Lukács procurou observar as condições materiais que levaram à ascensão de Mussolini e à forma mais acabada de ideologia reacionária: Adolf Hitler e a ascensão do nazismo. Lukács destaca, dentre outros determinantes, as imposições dadas à Alemanha no final da 1ª Guerra Mundial, o desemprego em massa e o papel da burguesia alemã, como burguesia retardatária, na tentativa de construir um império alemão. Diante da grave crise, as massas não aderiram às propostas da esquerda, mas sim ao supernacionalismo da direita.

A ascensão da ultradireita na América Latina tem incomodado os intelectuais, que não chegaram a uma conclusão sobre este novo fenômeno. Conceitos como neofascismo, processo de fascistização, extrema direita e direita ultraliberal estão “competindo” entre si, para denominar esta nova fase da direita que emergiu nos últimos 20/30 anos, uma nova fase da decadência ideológica que impede o surgimento de novos Vargas ou Peróns, mas permite o surgimento de presidentes de extrema direita.

O paralelo com o fenômeno observado por Lukács nos parece bastante interessante, a ponto de podermos caracterizar o período atual como uma nova fase da decadência ideológica da burguesia. Podemos dizer que as burguesias latino-americanas não têm mais nada, absolutamente nada, a oferecer ao povo! Somente ideologias reacionárias!

Diante de uma crise estrutural do capital, as soluções apresentadas pelas classes dominantes distanciam-se bastante das soluções do período 1920-1970. É preciso lembrar que a sociedade argentina neste período criou teatros, praças públicas, um sistema de saúde pública razoável, educação como direito, universidades públicas massificadas e sem vestibular. Criou prédios monumentais e um sistema de metrô e de ferrovias de fazer inveja na América Latina. Tudo isso foi possível em razão de uma conjuntura internacional favorável e de rápidos processos de industrialização que permitiram o emprego “estável” à classe trabalhadora e algum tipo de ascensão social, além de condições de vida razoáveis, às camadas médias.

De 1976 para cá, quais as propostas das classes dominantes argentinas? Baseando-nos em Lukács novamente, poderíamos chamar esse período de nova fase da decadência ideológica da burguesia argentina. Naquele momento, o povo pedia mais direitos, pedia um “Estado de bem-estar social”, mas as classes dominantes argentinas, em parceria com a ditadura empresarial-militar brasileira (operação Condor) e Estados Unidos, produziram a ditadura mais sanguinolenta da América Latina. Construíram os pilares do caso mais perfeito de ditadura do capital financeiro no continente americano, que agora Javier Milei certamente vai aprofundar.

Em poucas linhas, a ditadura do capital financeiro nas mãos dos militares levou à destruição da indústria argentina, a um novo ciclo de dependência econômica e a um avanço significativo de todas as formas de reprodução do capital financeiro, conforme veremos adiante.

István Mészáros – outro importante marxista do final do século XX – se pergunta sobre quais têm sido as respostas dadas pelo capital para sua grave crise de reprodução no final do século XX. Ele afirma que a solução capitalista para os graves problemas criados pelo capital tem sido “empurrar as contradições sociais para a frente”, com “soluções” que sequer triscam os graves problemas humanitários gerados pela autovalorização do capital.

A ditadura argentina conseguiu “empurrar essas contradições para a frente”, mas ao mesmo tempo criou outra ordem de problemas sociais, que vão aparecer com maior intensidade nos anos 1980-1990 e levar a uma grande rebelião popular em dezembro de 2001. Problemas como o desemprego e subemprego em massa, falta de casas, ausência de saneamento básico, privatização direta e indireta de escolas públicas, multiplicação de favelas e pobreza nas cidades, asfixia orçamentária de universidades públicas, destruição da escola pública, aumento da dívida externa, dentre outros, passaram a fazer parte da sociedade argentina nos governos Alfonsin, Menem, de la Rúa. Em dezembro de 2001, com o corrallón e o corralito, a ditadura do capital financeiro mundial expropriou massas de poupanças, salários, etc., promovendo um grande saqueamento das riquezas das classes trabalhadoras e de parte das camadas médias.

Cumpre lembrar também que a transição “democrática” argentina não conseguiu – no plano econômico – acertar as contas com a ditadura do capital financeiro, mas conseguiu acertar as contas com os militares. Diferentemente do Brasil, a Argentina encarcerou os militares (que agora a vice-presidenta eleita, Victoria Vilarruel, quer perdoar).

O pêndulo político argentino ganhou novos ares a partir dos anos 2000, com a ascensão dos governos populares de Nestor Kirchner (2003-2007), Cristina Kirchner (2007-2015) e Alberto Fernandez (2019-2023).

A esquerda da ordem argentina aliviou parcialmente os graves problemas sociais, mas, assim como o PT no Brasil, não tem e não quer ter na manga uma alternativa radical e abrangente ao capitalismo. Na melhor das hipóteses, a esquerda latino-americana pregou um leve keynesianismo na região, tentou recompor algumas das paredes levantadas no período 1930-1970, mas não apresentou à sociedade uma alternativa radical anticapital. Tornou-se, portanto, uma boa gestora dos problemas do capitalismo na região, sem sequer cutucar a onça com sua varinha curta.

No mundo do trabalho, a reestruturação produtiva latino-americana criou as condições “perfeitas” para a ascensão de trabalhadoras e trabalhadores individualizados, terceirizados e quarteirizados, que não vivem e não se enxergam como classe, mas como seres individuais – “empreendedores”. Os jovens que votaram em Milei, em boa parte, nunca pisaram num sindicato, não são trabalhadores coletivos; são, portanto, uma massa de trabalhadoras e trabalhadores subempregados ou desempregados, passível de manipulação por salvadores de plantão. Para piorar, o novo dicionário do capital os chama de “empreendedores” e “colaboradores”, justamente para apagar a possibilidade de se verem como classe.

É dentro deste caldo social, econômico e político que assistimos à ascensão de Javier Milei, filho da propaganda das classes dominantes argentinas. Sua estratégia midiática deu certo – foi eleito com uma vantagem expressiva no 2º turno.

Em 10 dias de governo já iniciou uma “revolução”: um pacotaço de 336 alterações profundas no papel do Estado na sociedade e na economia. Criou o medo-pânico na população, justamente para esta aceitar passivamente o remédio amargo da contrarreforma do Estado. O pacotaço de Milei inclui a privatização de empresas estatais, uma ampla reforma trabalhista, a regulação do aluguel, dentre outras. Feito por meio de “Medidas provisórias”, que na Argentina se chamam DNU – Decreto de Necessidade e Urgência –, este tipo de ação muito provavelmente pode se enquadrar numa espécie de estado de exceção típico das novas ditaduras do capital financeiro.

Tudo indica que o estado de medo-pânico criado por Milei – no estilo “não protestem nos próximos 4 anos, o remédio é amargo, mas essencial, pois os peronistas quebraram o país” – não surtirá muito efeito, quando o movimento operário e popular argentino perder a paciência com as consequências sociais das medidas de presidentes autocratas como Milei. E “Como a cigarra”, de Maria Elena Walsh e Mercedes Sosa, seguiremos cantando:

Tantas veces me mataron, tantas veces me morí
Sin embargo, estoy aquí, resucitando
Gracias doy a la desgracia y a la mano con puñal
Porque me mató tan mal
Y seguí cantando

Cantando al sol como la cigarra
Después de un año bajo la tierra
Igual que el sobreviviente
Que vuelve de la guerra

Tantas veces me borraron, tantas desaparecí
A mi propio entierro fui sola y llorando
Hice un nudo en el pañuelo, pero me olvidé después
Que no era la única vez
Y seguí cantando

Cantando al sol como la cigarra
Después de un año bajo la tierra
Igual que el sobreviviente
Que vuelve de la guerra

Tantas veces te mataron, tantas resucitarás
Cuántas noches pasarás desesperando
Y a la hora del naufragio y la de la oscuridad
Alguien te rescatará
Para ir cantando

Cantando al sol como la cigarra
Después de un año bajo la tierra
Igual que el sobreviviente
Que vuelve de la guerra

Henrique Tahan Novaes

Professor da FFC e do PPGE Unesp, autor de “O fetiche da tecnologia - a experiência das fábricas recuperadas” entre outros títulos, pesquisado da área produção destrutiva, cooperação, autogestão, agroecologia e escolas de agroecologia.

Um comentário sobre “A nova fase da ditadura do capital financeiro na Argentina: Javier Milei e os cantos da cigarra

  • 8 de janeiro de 2024 at 12:23 am
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    Uma observação de uma amiga argentina.
    Mercedes Sosa é a intérprete da música e não autora da música. Parece ser só da Maria Elena.
    Ótima análise..abraços

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